Better Call Saul (2015-) é o spin-off da aclamada série Breaking Bad (2008-2013) que retrata, resumidamente, como o sagaz e trambiqueiro advogado Jimmy McGill se tornou quem ele é em Breaking Bad: o famoso Saul Goodman (Bob Odenkirk), advogado da dupla Walter White/Heisenberg (Bryan Cranston) e Jesse Pinkman (Aaron Paul), defensor de todo o tipo de criminosos, cheio de contatos duvidosos, telefones celulares ilegais e soluções irreverentes para as mais diversas complicações de seus clientes. Em Better Call Saul acompanhamos toda a formação da carreira de Saul e de outros importantes personagens de Breaking Bad, como Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) e Gustavo Fring (Giancarlo Esposito). Mas a personagem que torna a série tão boa quanto Breaking Bad (há quem diga, melhor) é o par romântico de Saul Goodman: Kim Wexler (Rhea Seehorn). Por serem duas grandes produções sobre o mesmo universo ficcional, as comparações são muitas e uma simples pesquisa na internet nos mostra críticas e resenhas do público sobre Kim representar a Skyler White ou, até mesmo, Kim ser o próprio Walter White em sua escalada de mocinho se transformando em vilão. Aqui defendo que Kim não é análoga a nenhum outro personagem exatamente pela relação de parceria peculiar e intensa que tem com Saul.
Atenção: este texto contém spoilers!
Kim Wexler é uma bonita e inteligentíssima advogada, dita como uma das melhores, que trabalha na firma de advocacia do irmão de Saul, Chuck McGill (Michael McKean). Séria, independente, responsável e sempre com um rabo-de-cavalo apertadíssimo e bem feito, possui uma carreira promissora pela frente. Conhece Saul na empresa em que trabalha e os dois vão tendo um caso, sem muitas demonstrações de afeto e carinho públicas. O que chama mais atenção no relacionamento deles no início é que enquanto Kim é vista como brilhante no que faz, Saul é lido por todos como um fracassado. Independente disso, o casal segue junto, dando pequenos golpes em ricaços para pagarem suas contas caras em restaurantes chiques, entre outros trambiques e golpes, de escalas diferentes. Esses momentos são sempre retratados em cenas de tensão e adrenalina, e Kim parece gostar muito apesar dos riscos. Como se na construção de pequenos olhares e histórias falsas para enganar terceiros, os dois se sentissem mais vivos e conectados do que em todos os outros momentos da sua relação. Essa é a característica mais marcante da relação Wexler-Goodman.
Na quinta e última temporada lançada até então, as coisas começam a ficar um pouco mais sérias quando Kim vai aos poucos — e, no início, com relutância — incorporando os métodos moralmente duvidosos de Saul de resolver seus casos e defender seus clientes. Já morando juntos, Saul virou oficialmente o advogado de pequenos criminosos enquanto Kim se divide em dois trabalhos: um em uma renomada firma de advocacia e também casos pro bono, onde atua como defensora pública. Essa divisão de Kim em dois trabalhos distintos mostra as reflexões que os dois personagens sempre fazem sobre os usos da justiça e a moralidade, sobre o que é certo e o que é errado. Na firma de advocacia que a sustenta com um bom salário, o maior cliente de Kim é um banco que precisa de Kim para, por exemplo, tirar velhinhos de suas casas e construir seus centros comerciais, de forma legal. Em seus casos pro bono, Kim defende jovens pais de família acusados de vender eletrodomésticos roubados. São esses casos, de pessoas desassistidas pelo Estado e que mostram como a lei nem sempre é justa, que fazem Kim se sentir uma grande advogada e não defendendo os direitos de grandes corporações bancárias. Enquanto isso, Saul está com muitos clientes e se envolvendo cada vez mais com o cartel de drogas da região.
O casal não compartilha muito sobre os casos em que estão trabalhando: no final de dias pesados de trabalho, os dois terminam na varanda dividindo um cigarro e bebendo cerveja, sem muita conversa. Mas a partir do quarto episódio da quinta temporada, “Namastê”, a escalada de Kim para se tornar oficialmente parceira de Saul nos usos tendenciosos da lei vai começando a ficar mais nítida. Assistindo Saul no tribunal conseguir salvar a pele do seu cliente com mais uma das suas artimanhas, Kim parece gostar do que vê. É nesse momento que ela decide trabalhar em conjunto com Saul na encruzilhada moral que se encontrava: precisava defender os direitos do seu cliente, o banco chamado Mesa Verde, mas não queria tirar da sua casa um velho veterano de guerra que se recusava a aceitar a indenização e ceder o seu terreno. Não conseguindo convencer seu cliente a desistir do terreno, os dois montam um plano, com Saul se tornando o advogado do velho, o veterano de guerra, e Kim representando seu cliente, o banco Mesa Verde. Com o plano todo elaborado, baseado em chantagens e ameaças de difamações públicas, e pronto para ser colocado em prática, Kim se arrepende e pede para que Saul o cancele. Ignorando o pedido de Kim, Saul faz suas chantagens e ameaças na frente de Kim e toda a equipe jurídica, conseguindo um valor altíssimo para o velho veterano de guerra que representava. O emblemático episódio da disputa entre os dois brilhantes advogados é chamado “Wexler contra Goodman”. No final do episódio, vemos uma grande briga do casal. Kim acusa Saul de ser mentiroso e diz que não há como continuar daquele jeito, pois não confia nele. Os dois se desesperam e Kim sugere uma inesperada solução para uma briga que parecia o fim do casal: que os dois se casem. Na cena, na sala escura da casa dos dois, há em destaque um quadro de um filme de faroeste norte-americano chamado Outlaw Justice.
No início do episódio seguinte, vemos Kim e Saul acordando os pontos do casamento e esclarecendo um para o outro os motivos de estarem se casando: em uma união legal baseada um acordo jurídico perante o Estado, não poderão testemunhar um contra o outro. Acordam também que, a partir de então, os dois precisam contar tudo um para o outro e, assim, se casam, tensos e felizes. Sem alianças, lua-de-mel ou um almoço de comemoração, mas combinando de chegarem cedo em casa. Depois de casados e cumprindo o acordo de contarem tudo um para o outro, os perigos se tornam cada vez maiores para o casal. Saul está cada vez mais envolvido com o cartel e, ao contar para Kim, a coloca dentro do jogo. Nos três últimos episódios da série, Kim lida diretamente com um figurão do cartel, defendendo Saul após dias no deserto em uma missão quase suicida. No último episódio, Kim propõe a Saul que criem uma emboscada ao ex-colega de trabalho dos dois, o bem-sucedido e esnobe advogado Howard Hamlin (Patrick Fabian). Kim parece querer ir além de todos os pequenos golpes que a dupla dava, sugerindo a armação de um esquema que acabaria com a carreira de Howard, deixando o próprio Saul impressionado. Terminamos o episódio como Saul, surpresos e ansiosos com as próximas jogadas de Kim.
Independente do final que terá Kim Wexler, o casal Wexler-Goodman não é comparável com o casal White porque os dois se constituíram juntos e são parceiros para muito além das regras implícitas de um casamento. Na vida pessoal, escolheram ficar juntos porque se gostam; na vida profissional, aos poucos, foram realizando pequenos esquemas moralmente duvidosos até unirem as duas nuances da relação em um acordo oficial: se casaram para protegerem um ao outro das consequências dos próprios esquemas que realizam, utilizando a própria lei, que sempre cavam brechas para driblar, para se protegerem. Completamente oposto do casal White, no qual Skyler sempre deu indícios de que entraria no jogo de Walter (tanto que em algum momento entrou e lavou o dinheiro sujo na lavanderia), mas nunca foi inserida nos planos do inconsequente Heisenberg.
Os telespectadores de Better Call Saul formam um grupo de ansiosos para saber o destino de Kim Wexler, já que esta não aparece e nem é mencionada em Breaking Bad, continuação cronológica da série sobre Saul Goodman. O fim do relacionamento Wexler-Goodman será na próxima aguardada temporada, já em gravação. Esperamos que seja à altura da personagem e do casal que além de toda a parceria na vida profissional, também divide momentos fofos comendo comida chinesa e vendo filmes antigos, dividindo cigarros e cervejas.
** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!