Em 1992, Paul Dini e Bruce Timm criaram uma personagem secundária para ser a namorada do Coringa em Batman: A Série Animada. Ela tinha o rosto pintado de branco e usava uma roupa semelhante a de bobo da corte. Era engraçadinha e violenta, do jeito que o interesse amoroso do Palhaço do Crime deveria ser. Harley Quinn, a Arlequina, deveria aparecer em apenas um episódio da animação, mas se tornou tão popular de uma hora para outra que seus criadores resolveram incluí-la também nas páginas dos quadrinhos. Hoje, Harley é tão querida e rentável quanto a chamada Trindade da DC Comics, composta por Mulher-Maravilha, Batman e Superman.
Atenção: este texto contém spoilers!
Depois de protagonizar a história de centenas de enredos nas HQs, participar de diversos filmes animados, aparecer em jogos de videogame e fazer dinheiro nas telas do cinema, Harley ganhou sua própria animação. Intitulada simplesmente como Harley Quinn, a série teve o primeiro episódio lançado em novembro de 2019, no DC Universe, serviço de streaming da DC Comics.
Uma nova emancipação (e uma questão incômoda)
A grande semelhança entre a série animada e Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa é a busca pelo distanciamento do Coringa. A DC Comics vem trabalhando nisso há algum tempo. A popularidade de Harley atrelada à evolução do pensamento coletivo em questões feministas impulsionou a gigante dos quadrinhos a buscar novos rumos para ela, longe do relacionamento abusivo que lhe serviu como ponto de origem. Isso se intensificou ainda mais em Os Novos 52, de 2011, que marcou o relançamento da linha editorial da DC, trazendo novas origens e histórias para os personagens da casa.
Enquanto a Harley Quinn interpretada por Margot Robbie de Aves de Rapina foge dos vilões de Gotham City que querem sua cabeça, a Harley animada de Kaley Cuoco, que dá voz à personagem, faz praticamente o oposto. Ela quer se provar como uma vilã que pode fazer suas maldades sem o apoio e respaldo do Coringa. Na história, o feito máximo da vilania é fazer parte da Legião do Mal, uma organização quase contrária à Liga da Justiça, que reúne os maiores super-vilões do Universo DC. Mas rapidamente Harley descobre que fazer parte da equipe liderada por Lex Luthor (Giancarlo Esposito) não é uma tarefa nada fácil, já que, agora que está sozinha, ela é pouquíssimo respeitada.
Os outros vilões não acreditam no potencial de Harley. Depois de tanto tempo com o Coringa (Alan Tudyk), todos a enxergam apenas como uma menininha fraca e incapaz, que jamais poderia sobreviver sem o comando de alguém nos becos obscuros do crime de Gotham. Essa descrença faz com que ela sinta cada vez mais vontade de controlar seu destino e conquistar sua independência. Depois de perceber que realizar tudo absolutamente sozinha seria quase impossível, já que até os maiores vilões do mundo têm seus capangas para facilitar o serviço, Harley também decide que deve formar seu próprio time.
Os membros da equipe de Harley, assim como ela própria, são rejeitados no eixo dos vilões. Tubarão-Rei (Ron Funches), apesar de todo o seu tamanho e força, não é tão malvado quanto aparenta. Cara-de-Barro (também interpretado por Tudyk) se diz ator, e aproveita sua habilidade de mudar de forma para praticar seus personagens. Sy Borgman (Jason Alexander) é um idoso que tem o corpo fundido a uma cadeira de rodas — e que pode se transformar em um carro com armas poderosas. Doutor Psycho (Tony Hale) é um telepata com a imagem completamente queimada depois de chamar a Mulher-Maravilha, sua declarada arqui inimiga, com termos tão ofensivos que nem mesmo a Legião do Mal ficou do seu lado.
A presença do Doutor Psycho no grupo de Harley — ou até mesmo na série — é, no mínimo, interessante. Escrito por William Moulton Marston, o próprio criador da Mulher-Maravilha, em 1943, Doutor Psycho sempre existiu para ser inteiramente antagônico à Diana Prince. Ele é extremamente violento e sustenta um ódio especial por mulheres, utilizando de seus poderes telepáticos para pregar uma ideologia misógina. O personagem foi inspirado por homens que eram vocalmente contra a igualdade de gênero na época da explosão do movimento sufragista, e já protagonizou histórias em que apresenta comportamento abusivo em relação às mulheres, seja psicológico ou sexual — Diana o chama de estuprador na sexta edição de Sensation Comics Featuring Wonder Woman, de 2014. Talvez sua presença na série seja justamente para satirizar o machismo, já que ele é um alvo constante de piadas em relação a isso. Ou talvez ele sirva no enredo para mostrar que até mesmo a pior das pessoas têm algum conserto, considerando que sua característica odiosa vai perdendo intensidade ao longo dos episódios. De qualquer forma, sua presença em uma produção tão abertamente girl power é, sim, questionável.
Sobre o relacionamento Harlivy
O relacionamento mais importante de Harley é com Pamela Isley (Lake Bell), a Hera Venenosa (Poison Ivy, em seu nome original). Mesmo que Pamela tenha certa resistência e dificuldade em socializar com as pessoas, já que considera os humanos como uma praga para a natureza, ela não esconde o quanto se importa com Harley. Quando ainda era apenas a Dra. Harleen Quinzel, Harley participou de seu tratamento no Asilo Arkham, e as duas cultivaram uma forte amizade desde então. Pamela sempre faz o máximo para elevar Harley e fazê-la acreditar no quanto é capaz de conquistar o que quiser por conta própria. Ela sempre abominou a relação com o Coringa, e faz o possível para ajudar a amiga a perceber que não precisa dele ou de qualquer outra pessoa para ser uma vilã bem-sucedida.
Mas apesar de todo o suporte que dá a Harley, Pamela não é uma mera escada narrativa para a protagonista. Assim como nos quadrinhos, ela é complexa e inteligente, provavelmente uma das personagens mais poderosas do Universo DC. A completa devoção por aquilo que ela chama de O Verde é sua maior prioridade, e faz o necessário para proteger a causa em que acredita. Seu envolvimento com a natureza e traumas do passado fazem com que Pamela seja um tanto quanto ignorante quando se trata de sentimentos. É por isso que o começo do relacionamento que tem com o Homem-Pipa (Matt Oberg) é um tanto quanto confuso.
A propósito, o relacionamento com o Homem-Pipa é inteiramente confuso. É inevitável estranhar a ligação desses dois personagens cuja única semelhança é a inimizade com o Batman (Diedrich Bader). Vilão de baixo-escalão na série e no cânone da DC Comics, o Homem-Pipa é falastrão e vaidoso, mas tem sentimentos verdadeiros por Pamela, que até corresponde, mas não na mesma intensidade que ele. Hera Venenosa é um nome conhecido e temido em todo o mundo, e ser vista por aí com alguém cuja habilidade especial é voar em uma pipa gigante presa às costas seria vergonhoso. Eventualmente, ela consegue superar esse bloqueio e assume o relacionamento, mas sempre de maneira tímida e cautelosa.
Enquanto Pamela é muito mais que um suporte narrativo para outro personagem, é provável que o mesmo não possa ser dito sobre o Homem-Pipa. Ele não apenas serve para alavancar o lado mais humanizado de Pamela, mas também para anteceder o possível futuro relacionamento com Harley.
Desde que foi introduzida nos quadrinhos, há mais de 20 anos, a conexão de Harley e Pamela sempre foi cheia de sugestões. A relação só foi verdadeiramente assumida a partir d’Os Novos 52 e confirmada por Jimmy Palmiotti, um dos escritores da HQ solo de Harley, em 2015. “Sim, elas são namoradas sem o ciúme da monogamia”, ele escreveu no Twitter oficial da DC Comics. Elas também são mostradas assumidamente juntas nos quadrinhos Bombshell, Injustice, Heroes in Crisis e em edições na última linha editorial Renascimento.
Harley fica claramente incomodada quando descobre o relacionamento de Pamela com o Homem-Pipa. Além disso, a série frequentemente mostra cenas carregadas de subtextos românticos. O carinho que uma tem com a outra pode ser facilmente interpretado como algo que vai além da amizade, e Harley é a única pessoa que Pamela diz amar. Os fãs se mostraram insatisfeitos em relação ao namoro dela com o Homem-Pipa, e questionaram a falta do ship Harlivy (Harley + Ivy). Justin Halpern, o showrunner da série, diz que as personagens precisavam passar por certo amadurecimento antes de um relacionamento amoroso. “Eu não quero dar spoilers, então só vou dizer que acho que chegamos onde as pessoas querem que a gente chegue, mas fazemos isso cuidadosamente. Não estamos tentando enganar ou provocar ninguém”, ele conta ao site Geeks WorldWide sobre os planos para a segunda temporada, que estreia no DC Universe em abril.
Sem medo do quadrinesco
É fato que as animações têm mais liberdade e possibilidade do que o live-action. Projetos “reais” encontram maiores dificuldades burocráticas, orçamentárias e técnicas. Reunir os principais vilões e heróis do Universo DC em um único filme com atores reais seria bastante complicado por uma série de razões. Tudo seria caro e trabalhoso demais até mesmo para os grandes estúdios e profissionais do cinema moderno. Em Aves de Rapina, Harley tem apenas uma hiena porque os custos com computação gráfica para criar um animal realista seriam muito altos, assim como gravar com uma hiena de verdade seria perigoso demais. Em Game of Thrones, os lobos-gigantes foram cortados de grande parte das cenas porque também custaria muito para criá-los digitalmente. Na animação, as limitações são muito menores.
Isso ajuda ainda mais a manter o fator quadrinesco no enredo. Histórias em quadrinhos são, essencialmente, absurdas. Parte dessa absurdidade não poderia ser traduzida totalmente nas telas em uma produção com atores de carne e osso. A graça da série é que o enredo não tem medo de assumir que vem das HQs. Assim como nas páginas, os personagens agem em suas versões máximas, e não precisam se esconder por trás das barreiras causadas por divergências da relação criador-estúdio, restrições financeiras ou a tentativa de retratar uma Gotham City realista. As animações da DC são conhecidas por sua alta qualidade e por seguir a natureza das revistas. Com Harley Quinn não é diferente.
Outro ponto positivo é que a série foi, notavelmente, criada por pessoas que de fato compreendem os fundamentos estruturais das histórias em quadrinhos. Além de abraçar o ridículo sem medo, os criadores entendem que existem centenas de personagens que podem ser aproveitados. Os episódios contam com diversos nomes pouco trabalhados. Homem-Pipa, Cara-de-Barro, Tubarão-Rei e a Rainha das Fábulas (Wanda Sykes) não são personagens que o grande público conhece, o que traz um ar novo e refrescante à produção. As narrativas do Batman já estão cheias do Coringa, Pinguim (Wayne Knight), Bane (James Adomian) e Charada (Jim Rash) — também presentes na série. Nada mais adequado que as participações da animação de Harley Quinn sejam tão surpreendentes e desajustadas quanto ela mesma.
Para maiores: as múltiplas cores de Harley Quinn
Ao explicar o motivo pelo qual Aves de Rapina é um filme para maiores, Margot Robbie disse ao AMC Scene que muitos dos personagens da DC são bastante obscuros, lidando com traumas de infância e sérias doenças mentais. A censura para se encaixar nos padrões de uma produção com uma classificação indicativa mais baixa impede que a narrativa se aprofunde na vivência de suas trajetórias. É pelo mesmo motivo que Harley Quinn é uma série adulta.
Harley é uma personagem explosiva e difícil de conter, então faz muito mais sentido que ela possa ser violenta e insolente do que apenas a vilã jocosa e levemente provocativa de Esquadrão Suicida, que obteve classificação para 14 anos. A Harley Quinn da série animada fala palavrões e faz piadas obscenas, além de se segurar na hora de usar seu taco de basebol, a famosa marreta gigante ou qualquer outro tipo de arma. Os episódios são mais agressivos do que outras produções da DC, com muito sangue, mutilação, ossos quebrados e linguagem chula.
A classificação indicativa também serve para mostrar, com mais profundidade, como Harley não é apenas uma vítima. Sim, ela viveu um relacionamento tóxico com o Coringa. Sim, ela sofreu inúmeros tipos de abusos durante muito tempo. Mas nada disso significa que Harley seja uma criatura inocente que simplesmente passou por uma lavagem cerebral. Ela é uma personagem carismática e engraçada, e por isso conquistou uma legião de fãs apaixonados por sua personalidade, mas essas características não excluem o fato de que Harley não é uma boa pessoa. Ela pode não ser tão cruel quanto alguns outros vilões, e pode ser capaz de criar laços afetivos muito profundos e verdadeiros com aqueles que ama, mas continua sendo uma pessoa que não se importa em tomar atitudes moralmente erradas para conseguir o que quer.
Mesmo que a DC Comics, visando sua crescente popularidade, tenha levado Harley a rumos de redenção e momentos de heroísmo, ela continua fazendo parte da galeria de “caras maus” do universo em que está inserida. Suas ações não condizem com alguém que seja puro e bondoso, como alguns leitores, telespectadores e até a própria editora às vezes fazem parecer. Em Aves de Rapina, Harley admite isso. “Eu sou apenas uma pessoa horrível, eu acho”, ela diz a Cassandra Cain (Ella Jay Basco) em uma cena do filme. Na série, mesmo que exista alguns limites que não esteja disposta a ultrapassar, Harley também nunca negou o que é: uma vilã.
Mas a verdade é que Harley é uma personagem de extrema complexidade, e classificá-la apenas como boa ou má não parece justo — e tampouco correto. Ela é uma vilã que faz coisas cruelmente brutais, mas que também é perfeitamente capaz de sentir empatia e amor. É justamente por isso que a indicação para maiores é tão necessária para ela. Além de não reprimir a história e permitir que a narrativa trabalhe muito bem com seu humor ácido, é ideal para entender quem ela realmente é. Desde sua primeira aparição em um programa infantil, sua jornada sempre foi marcada por violência. A animação explora ainda mais de seu passado, focando em elementos que vão além do envolvimento com o Coringa, como a relação conturbada que tem com sua família. Em um momento, Harley troca declarações carinhosas com seus amigos, e no outro comete uma série de graves crimes para ser aceita na Legião do Mal. Essa quase incapacidade de determiná-la em apenas um molde é o que faz dela tão interessante e humana e, consequentemente, popular. Não existe apenas preto e branco para defini-la, mas um espectro inteiro de cores, texturas, contextos e camadas que estabelecem suas ações muitas vezes questionáveis. E não existe nada mais Harley Quinn do que isso.
Eu estava em busca de referências pra escrever uma matéria sobre Harley Quinn e acabei me deparando com esse artigo. Fiquei muito feliz com tudo o que li aqui e achei suas análises muito pontuais. Além disso, aproveitei pra dar uma conferida nos demais conteúdos do site e curti bastante a iniciativa. Enfim, só gostaria de dizer que achei seu texto incrível. Obrigada.
É uma excelente animação, uma ótima contextualização que vc fez, apesar de que eu não concordo com a “emancipação”, não tem lacração, homens não precisaram ser reduzidos aqui para mostrar o potencial feminino muito pelo contrário ela apanha muito até aprender a trabalhar em equipe, uma animação sem frescuras sem mimimi, eles não masculinizaram as personagens femininas, não tiraram sua sensualidade e eu adorei isso, já estou saturado de séries com mulheres “macho”.