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Crítica: Poderia Me Perdoar?

Quando pensamos em Melissa McCarthy, o que vem primeiro à memória? Sookie St. James, a adorável e destrambelhada chefe de cozinha de Gilmore Girls, Mullins, a policial boca suja de As Bem Armadas ou a cientista Abby Yates de As Caça-Fantasmas? Seja qual for o papel, é provável que você se lembre da atriz interpretando uma personagem cômica, versões de Melissa que marcaram o imaginário dos fãs de cultura pop. O fato é que em seu filme mais recente, Poderia Me Perdoar?, Melissa McCarthy mostra que é uma atriz tão completa para o drama quanto sempre foi para a comédia, o que lhe rendeu sua segunda indicação ao Oscar — a primeira como Melhor Atriz.

Atenção: este texto contém spoilers!

Poderia Me Perdoar? é baseado na história real de Lee Israel, uma biógrafa que vê sua já difícil vida ir de mal a pior quando perde o emprego em uma editora. O livro em que está trabalhando, uma biografia de Fanny Brice, não é de interesse de sua agente literária, e Lee se encontra em dificuldades para pagar o aluguel e os medicamentos de sua gatinha de doze anos, Jersey. É a partir desse momento que Lee decide vender alguns de seus pertences como forma de arrecadar dinheiro para pagar suas dívidas e a consulta de Jersey no veterinário. Lee tenta, primeiro, vender alguns de seus livros, mas nenhuma loja demonstra interesse por eles. Embora tenha figurado por semanas na lista de mais vendidos do The New York Times com suas biografias (ela escreveu sobre Katharine Hepburn, estrela dos clássicos O Leão no Inverno e Núpcias de Escândalo, e Tallulah Bankhead, de Um Barco e Nove Destinos, por exemplo) há anos Lee Israel não consegue escrever um livro capaz de repetir o sucesso alcançado anteriormente, culminando em sua falta de dinheiro e ânimo para produzir.

Situações desesperadas pedem por ações desesperadas, e assim Lee decide se desfazer de uma carta que Katharine Hepburn escreveu a ela, agradecendo pela biografia. A escritora não imaginava o valor que poderia receber ao vender uma carta como aquela, assinada pela famosa atriz, e logo entende ter descoberto uma mina de ouro. Após encontrar por acaso uma carta de Fanny Brice enquanto pesquisava para a biografia que pretendia escrever, Lee decide também vender a carta, adicionando algumas frases para aumentar o valor da missiva, dando início a um negócio que, se não a deixaria rica, pelo menos a manteria à superfície. A partir de então, ela começa a criar as próprias cartas, falsificando conteúdo e assinaturas de famosos, entre eles Nöel Coward e Dorothy Parker. Escrever as missivas, incorporando as personalidades das celebridades escolhidas, mostra o talento de Lee Israel como escritora, fazendo com que ela consiga enganar um sem número de colecionadores — durante seu período como falsificadora, ela chegou a escrever 400 cartas, forjando histórias, datas e assinaturas, e enganando especialistas a respeito da autenticidade do material.

Poderia Me Perdoar?, longa baseado no livro de memórias escrito por Lee e que se tornou best-seller quando da sua publicação, tem direção de Marielle Heller e roteiro de Nicole Holofcener em parceria com Jeff Whitty. Muito mais do que contar a história da ascensão e queda do esquema de fraude criado por Israel, o filme também é capaz de retratar a solidão e melancolia de uma mulher que parece ter a vida toda de cabeça para baixo. Lee foi deixada por sua companheira Elaine (Anna Deavere Smith), perdeu seu emprego, não consegue fazer com que sua agente lhe adiante o pagamento pela biografia de Fanny Brice (enquanto o autor Tom Clancy recebe três milhões de dólares para escrever mais um livro sobre “homens brancos”), está com o aluguel atrasado e tem uma gatinha idosa e doente. Lee é uma mulher solitária, alguém com quem a vida nunca foi muito gentil, e não consegue ver outra saída de sua espiral de má sorte senão seguir falsificando cartas de celebridades. Enquanto sua agente literária pede que ela se conecte mais com o público e até mesmo mude sua aparência para vender mais livros — algo que ela se nega terminantemente a fazer —, a biógrafa segue com suas falsificações, que ficam cada vez melhores e mais ambiciosas. Enquanto para Tom Clancy surge um adiantamento de três milhões de dólares, para Lee Israel, uma mulher fora do padrão e que não liga para aparência, resta um apartamento sujo e vazio e muitas contas a pagar.

É nesse ínterim que Lee conhece Jack Hock (Richard E. Grant), alguém que vive ao sabor do vento e dos golpes que dá. Entre os dois surge uma parceria inusitada, algo próximo de amizade mesmo que Lee não conceda deixá-lo se aproximar tanto assim dela. Quando o FBI começa a rondar os passos de Lee, rastreando as cartas que surgem no mercado de colecionadores, a escritora recorre ao charme e cara de pau de Hock: enquanto Lee tenta ficar fora do radar, forjando as cartas em seu apartamento usando máquinas de escrever diversas e envelhecendo os papéis timbrados em seu forno, é Hock quem vai às lojas de antiguidades vender histórias e cartas imaginárias. A dupla se sai bem por um tempo, mas não demora até que os investigadores cheguem a Lee Israel. Os golpes de Lee são descobertos e ela é então julgada, mas isso não a impede de sentir certo orgulho do que fez.

Poderia Me Perdoar? parece, em um primeiro momento, a confissão de culpa de Lee Israel, mas isso, a culpa, é algo que a biógrafa não sentiu. Ao emular celebridades, escrevendo como se fossem elas, Lee sentiu que seu talento era real, que era realmente boa naquilo que fazia. Cartas forjadas por ela chegaram a ser incluídas na biografia de Nöel Coward, por exemplo, e a maneira como escrevia era capaz de deixar em dúvida os melhores autenticadores. Lee Israel era capaz de captar a mente da pessoa que queria imitar e fazia isso com maestria, buscando a voz da celebridade em questão e tornando-se una com ela — algo que, em contrapartida, não era capaz de fazer com as pessoas de seu convívio, afastando-os com medo do que poderia significar retribuir o afeto que receberia ao deixá-los cruzar sua muralha.

Lee poderia facilmente cai no tropo da “mulher difícil”, sempre ranzinza, desbocada, impaciente e desagradável com todos ao seu redor, alguém que só dedica amor e carinho a sua gatinha Jersey, mas a personagem foge desse estereótipo quando não segue em uma narrativa de redenção — ela é o que é, e não vai mudar apenas para agradar alguém. Lee sabe que seu modo de ser afasta as pessoas, ela sofre com a solidão que se impôs, mas prefere ser verdadeira a si mesma a mudar para satisfazer o status quo ou preencher as caixinhas sociais que esperam que ela preencha. Não há nada de errado em ser uma “mulher difícil”, principalmente quando as produções da cultura pop são as primeiras a enaltecer os “homens difíceis” de suas histórias, vide Don Draper de Mad Men e Walter White de Breaking Bad, apenas para citar dois exemplos.

Poderia Me Perdoar?, no entanto, não caminha por esse lado: tanto a câmera de Marielle Heller quanto o roteiro de Nicole Holofcener mostram com verdade o que é ser essa mulher solitária e abandonada, alguém cuja voz não é ouvida quando é ela mesma, mas apenas quando incorpora a voz de uma celebridade. Assim como Lee Israel desaparecia ao escrever sobre seus biografados, Melissa McCarthy deixa de ser vista quando encarna a protagonista do filme: mesmo que o figurino e a maquiagem ajudem, não teria verdade na Lee de Poderia Me Perdoar? se não fosse a brilhante atuação de Melissa. Ela é capaz de demonstrar a dor, a solidão e o abandono que Lee sente apenas com um olhar; os momentos mais emocionantes do filme, com Jersey e durante o julgamento, são provas de que Melissa McCarthy é o pacote completo quando se fala em atuação: ela é capaz de te levar às lágrimas de riso ou tristeza em questão de minutos.

Mas Melissa McCarthy não brilha sozinha em Poderia Me Perdoar?: Richard E. Grant faz um ótimo trabalho dando vida ao trambiqueiro Jack Hock. Seus trejeitos e modo de falar são capazes de transmitir tanto a inteligência quanto a vulnerabilidade de Jack, que mete os pés pelas mãos e coloca em cheque o esquema de Lee Israel mas que, no final das contas, é praticamente o único amigo que resta à biógrafa. Outro personagem importante em Poderia Me Perdoar? é a própria cidade de Nova York, cenário das idas e vindas do filme, sempre retratada em tons de cinza e que age quase como uma aura do que acontecia à vida de Lee Israel naquele início dos anos 1990. Poderia Me Perdoar? consegue mesclar com maestria seus personagens e suas histórias, mostrando como a solidão é capaz de interferir em suas vidas de maneira crítica. Lee Israel não se arrependeu de seus crimes — algo que ela disse à juíza que deu sua sentença —, descrevendo seu período de falsificações com um dos melhores anos de sua vida, e em momento algum direção e roteiro tentam nos fazer relevar seus crimes, mas o que fica, ao final disso tudo, é até onde você está disposto a ir por dinheiro e ambição, e o que a solidão é capaz de fazer na vida de alguém.

Poderia Me Pedoar? recebeu 3 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Atriz (Melissa McCarthy), Melhor Ator Coadjuvante (Richard E. Grant) e Melhor Roteiro Adaptado (Nicole Holofcener e Jeff Whitty).