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Wendy e Chihiro: as jornadas das meninas rumo ao amadurecimento sob duas perspectivas

Ao assistir ao filme Peter Pan pela segunda vez, diferentes inquietações e questões que passaram despercebidos na primeira experiência recaíram sobre mim nesse “reencontro”. Naquele momento, eu estava frente a frente com o retrato fictício e magistralmente fantasioso do que para nós, mulheres, é real e palpável: o amadurecimento precoce acrescido da responsabilização exaustiva que excede nossos limites e autonomia.

Wendy (Rachel Hurd-Wood) é uma das protagonistas do filme junto a Peter Pan (Jeremy Sumpter), o menino que nunca cresce, encerrado na Terra no Nunca. Logo de cara, o espectador é apresentado a essa figura feminina de lábios estrategicamente carnudos, sorriso grande e olhos azuis brilhantes, que encena uma história para seus irmãos menores. A encenação consiste em ameaças e embates, mimetizando comportamentos típicos de outros seres fantásticos, constantemente provocadores de conflitos com Peter e sua turma: os piratas.

Em meio a essas brincadeiras, chega a tia Millicent (Lynn Redgrave) na casa dos Darling, uma senhora de meia idade que olha com espanto o comportamento arruaceiro das crianças. No entanto, seu olhar tenso e inquisitório parece demorar-se mais tempo em Wendy e na sua predileção por estórias de marinheiros criminosos. Nesse momento, entre piratas, bruxas e inquisições silenciosas, a menina confidencia para todos os presentes na sala que deseja viver grandes aventuras e ser uma escritora.

Logo seus sonhos são tolhidos e descredibilizados pela senhora Milicent, que lhe impõe um destino um tanto precoce para uma criança: o casamento. Wendy é jogada pela primeira vez ao mundo dos adultos e, principalmente, das mulheres, enquanto seus irmãos menores olham com espanto a constatação, afinal, a eles é permitido vivenciar todas as peripécias da infância sem os olhares tortos de julgamentos cortantes. É inadmissível que Wendy, uma mulher segundo Millicent e seus pais, comporte-se como uma criança, ou melhor, como um menino, correndo pelos cantos da grande casa.

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Mas as exigências de adequação aos estereótipos de gênero não para por aí. Quando conhece Peter, Wendy demonstra estar totalmente seduzida por ela e pela possibilidade de vivenciar a aventura que sempre buscara na ficção. No entanto, ao chegar na Terra do Nunca, a menina recebe uma proposta “inesperada” dos meninos perdidos. Ora, é relativamente fácil adivinhar esse pedido: um bando de crianças sujas e carentes de figuras afetivas em suas vidas e uma menina — mulher — que parece num passe de mágica no céu da Terra do Nunca. Eles a querem como mãe. Um ser humano totalmente desconhecido é incumbido dessa tarefa. Uma menina. Só isso.

Depois de todas as confusões que precedem esse episódio, Peter e Wendy começam a performar os papéis de mãe e pai assim como os meninos perdidos querem. E não é pouco o que sabem sobre isso. É deveras revelador esse entendimento, inclusive. A paternidade que Peter mimetiza é violenta e um tanto displicente, enquanto a maternidade encenada por Wendy é amorosa, mas deveras assertiva. Em outro momento, ainda relacionado às performances de gênero ligadas a configuração familiar, Wendy recebe uma proposta do temido Capitão Gancho (Jason Isaacs), arquirrival número um de Pan. Como a menina confessou que sempre quis ser uma pirata, mais especificamente uma bucaneira Jill, nome dado pela própria, Hook lhe oferece a chance de fazer parte do bando.

Wendy quer contar a Peter as novidades, mas ele parece saber de antemão sobre a bucaneira Jill e desdenha totalmente dela, destacando que uma mulher nunca saberia empunhar uma espada ou ser pirata. Ela prontamente revela ser a bucaneira e todos se sobressaltam com o anúncio, parecendo temer a possibilidade da perda materna. Outra questão é que, num determinado momento do filme, Wendy também precisa escolher entre viver eternamente na Terra do Nunca ou voltar para a casa dos pais. Ao afirmar o desejo de terminar com a viagem mágica, Pan praticamente lhe vira as costas. Mulheres estão sempre imersas na necessidade de escolha; ou o amor ou os sonhos; ou o trabalho ou os filhos; alguma dessas batalhas estão previamente perdidas e historicamente definidas. Temos que renunciar, inevitavelmente.

No entanto, sinto que algo passa despercebido aos olhos dos que desdenham da capacidade crítica e filosófica dos contos de fada clássicos ou de suas releituras, como é o caso do filme. Peter foge do amor o tempo todo, só quer diversão e abstém-se das responsabilidades. Wendy, por sua vez, é praticamente obrigada a crescer, é sexualizada e empurrada para a maternidade, mesmo que em nenhum momento tenha confidenciado, nem aos pais ou aos espectadores, o desejo de ser mãe. Coincidentemente ou não, Peter Pan é um menino e Wendy, uma menina. Homens que não são responsabilizados e mulheres responsabilizadas até demais. Ele pode não crescer, apesar de em algum momento desejar; ela precisa crescer e renunciar.

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Existem até “síndromes” associadas aos personagens principais do filme. Nomeadas de Síndrome de Peter Pan e Síndrome de Wendy, elas estão relacionadas, respectivamente, a uma recusa em crescer e ao cuidado excessivo sobre o outro, chegando às vias da infantilização. Particularmente, desprezo, em partes, essas abordagens que visam patologizar comportamentos frutos unicamente da socialização a partir de uma educação pautada no machismo e em questões sociais, ideológicas e econômicas. Numa rápida pesquisa no Google, as matérias sobre a Síndrome de Peter Pan são quase integralmente compostas por imagens de homens, ao passo que as matérias sobre a Síndrome de Wendy são ilustradas por mulheres em posição de cuidadoras, geralmente dos Peter fora da ficção.

É válido destacar que o filme problematiza justamente as questões postas. Essa intencionalidade revela-se nas entrelinhas das falas e das imagens do longa, constituindo-se enquanto subtexto para a trama de Peter e Wendy. Não é uma vil coincidência que um menino impossibilitado de crescer e uma menina compelida a casar desde cedo convivam e se apaixonem ao mesmo tempo. Um irá suprir as demandas e faltas do outro. E, claro, a falta que constitui o sujeito-mulher-menina, nesse sentido, é o casamento, a aprovação masculina. É assim que entendo a jornada de amadurecimento no filme. Todavia, há outra perspectiva sobre o assunto.

Da viagem iniciada na Terra do Nunca, partimos para o outro lado do mundo, onde uma menina percebia com desespero seus próprios pais serem transformados em porcos, situação esta que ela vivia numa terra completamente desconhecida e invisível para o resto da humanidade. A menina é Chihiro, protagonista do filme vencedor do Oscar de Melhor Animação de 2003, A Viagem de Chihiro. Se tia Milicent achava que a maior aventura que uma mulher poderia ter era o casamento, Hayao Miyazaki estava disposto a empurrar, literalmente, Chiriro pela escada e lhe proporcionar  uma viagem cheia de percalços e confusões que definiriam os rumos da construção identitária no cinema e o amadurecimento da personagem.

A trama de A Viagem de Chihiro se inicia em um entediante percurso de mudança de cidade. Digo entediante porque a própria menina encontra-se extremamente aborrecida no banco de trás do carro da família. Porém, a “birra” não duraria muito tempo. Os pais de Chihiro e a própria param em frente a um túnel no meio do caminho. Pela necessidade com que eles querem explorá-lo, parece que algo dentro daquela escuridão os atrai de forma estranha. No final do túnel, um parque abandonado é encontrado e, ao inspecionarem mais os arredores, eles se deparam com locais que servem comida. Chihiro encara com estranheza e resistência as iguarias expostas em pleno ar livre, mas seus pais atacam tudo e, no final, acabam se transformando em porcos.

Sozinha em uma terra desconhecida, o medo e a angústia da pequena garota são quase palpáveis. A partir desse momento, ela sabia que não precisava apenas crescer, mas, principalmente, lutar pela sua vida e pela sobrevivência de sua família. Durante todo esse processo, Chihiro encontra pessoas dispostas a ajudá-la na concretização dos objetivos e na resolução dos desafios que se impõe nesse caminho de autodescobertas. E, mais do que qualquer coisa, na narrativa, não há armas para manusear ou monstros horripilantes para enfrentar. Para ela, os problemas dizem respeito a capacidade de adaptação, a necessidade de tomar decisões, de lutar pelo que acredita e manter-se firme aos seus valores e ideais. Chihiro também transborda sentimentos e isso não é motivo de vergonha nem diminuição, nem de fragilidade.

A jornada da heroína do filme é muito diferente da jornada do herói no que diz respeito ao amadurecimento e enfrentamento das situações. Mais do que lutar contra os outros, Chihiro precisa transpor barreiras impostas pelos seus próprios medos e limitações físicas. Mesmo com a ajuda de Haku, Lin e Kamaji, a menina desengonçada, como a própria Lin pontua algumas vezes, tem que “terminar o que começou”, segundo o velho de seis braços, Kamaji. Não que ela não use a força física para enfrentar ou conter alguém (ela faz isso com o próprio Haku, quando este encontra-se machucado e perturbado depois de ser exposto a um feitiço de Zeniba, irmão de Yubaba). Mas uma decisão que toma, uma atitude que escandaliza ou um gesto de bondade e autenticidade que sensibiliza tem, na história, o poder de levá-la a lugares inimagináveis.

Em sua dissertação de mestrado intitulada “Mulheres e Memória em Miyazaki: o consumo da estética híbrida e transgressora do cinema de animação de Hayao Miyazaki”, Lília Nogueira Horta (2017) pontua que o diretor atribui características positivas às mulheres. Por exemplo, uma mulher vai até o final quando se propõe a realizar uma tarefa, pois há definitivamente uma vontade interior que a impulsiona. O diretor também acredita que as mulheres são mais sábias, pois elas compreendem os inimigos e, por isso, são levadas a tomarem atitudes mais racionais para enfrentá-los. Numa sociedade patriarcal como a japonesa, na qual as mulheres são caracterizadas enquanto frágeis, submissas e possuidores de vocação, Miyazaki subverte essas noções, construindo uma memória diferente para elas.

A Viagem de Chihiro é uma história sobre a aventura que mudou a vida da protagonista-título e a ajudou na transição para a adolescência. Em Peter Pan, Wendy é amadurecida e sexualizada pela socialização, pela repetição de um discurso que lhe (nos) impõe certos papéis e expectativas mais rígidas em comparação com as atribuições dos meninos. Chihiro é retirada do convívio com os pais e de sua mediação para viver uma experiência que mudaria sua vida para sempre. É brusco, mas é só dela. O “amadurecimento” de Wendy é um evento coletivo. Todos olham para a menina, reparam em seus comportamentos, no seu corpo e na sua vida. A conclusão mais óbvia é: definitivamente, a Terra do Nunca não é um lugar para mulheres. Mas confesso: gostaria de me perder e lutar nas terras de Miyazaki.

Clara Morghana Pereira Silva é graduada em Letras (Língua Portuguesa).


REFERÊNCIAS

HORTA, Lília Nogueira. MULHERES E MEMÓRIAS EM MIYAZAKI: O consumo da
estética híbrida e transgressora do cinema de animação de Hayao Miyazaki. 2017.
Dissertação (Mestre em comunicação e práticas de consumo) — Escola Superior de Propaganda e Marketing, [S. l.], 2017.