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Carta à Rainha Louca: o inferno ainda é aqui

O que o Brasil de 1789 tem em comum com o de 2019? Em Carta à Rainha Louca, romance da escritora paulista Maria Valéria Rezende publicado pelo selo Alfaguara da Companhia das Letras, descobrimos que muito mais do que as diferenças, são as semelhanças que conectam o país mesmo passados 230 anos entre um período e outro — entre tais semelhanças estão o machismo, a sociedade patriarcal que amordaça suas mulheres e a misoginia.

No livro, lemos as cartas escritas por Isabel das Santas Virgens, personagem fictícia inspirada em uma mulher real como conta Maria Valéria em entrevista ao Correio Braziliense. Durante uma viagem à Portugal a escritora encontrou, enquanto realizava pesquisas no Arquivo Ultramarino de Lisboa, a história de uma mulher que mantinha, na região das minas brasileiras, uma casa para acolher “sobrantes”, como Maria Valéria chama as mulheres que não faziam parte do sistema colonial, ou seja, não serviam para o casamento por não possuírem dote e não podiam ser escravizadas por terem a pele branca. Essas mulheres sem lugar, descartadas pelo sistema, eram acolhidas na casa da senhora real cujos documentos Maria Valéria encontrou, e foi justamente essa história que a levou a ter a ideia que culminaria em Carta à Rainha Louca, o quinto romance de sua carreira.

Assim como a personagem real, a protagonista de Maria Valéria, Isabel das Santas Virgens, escreve uma carta direcionada à Coroa Portuguesa para contar sua história mesmo que ela saiba de antemão que, por ser mulher, não será levada à sério e sua versão dos fatos não terá credibilidade alguma. No caso da história real, a mulher em questão era acusada de fundar uma ordem religiosa em região de exploração de ouro, algo terminantemente proibido pela Coroa Portuguesa. Para Maria Valéria, a proibição se devia, muito provavelmente, ao medo de que as autoridades portuguesas sentiam de que as mulheres pudessem negociar a venda de ouro de maneira mais inteligente do que aqueles autorizados para o serviço. Embora a senhora em questão não estivesse comercializando ouro e apenas acolhendo mulheres em situação de vulnerabilidade, ela teve que se defender da acusação escrevendo para a Coroa Portuguesa. Ela sabia que não seria lida com seriedade, por ser mulher, então preenche sua missiva com ironias e toques de irreverência, o que inspirou Maria Valéria no momento de construir sua trama.

A história de Isabel das Santas Virgens está entrelaçada à história do Brasil Colônia, de seus engenhos, estradas sem lei, minas de pedras preciosas e os infortúnios das mulheres que ali vivem. Isabel acredita que a Rainha Maria I, na condição de mulher, compreenderá o que ela e tantas outras passam nas mãos dos homens e por meio de suas cartas explica à monarca tudo o que há de errado nas terras brasileiras. Com uma linguagem que reúne o estilo narrativo do século XVIII à história brasileira daquele período, Maria Valéria Rezende nos brinda com todo o conhecimento que ela adquiriu em quase sessenta anos trabalhando com educação popular — primeiro na periferia de São Paulo, depois no meio rural da Paraíba e em João Pessoa, onde vive até hoje.

Carta à Rainha Louca não é uma leitura fácil. Primeiro pela linguagem, que emula o estilo narrativo do século XVIII, e que leva um tempo para se acostumar, e, segundo, pela série de desilusões e dificuldades pelas quais passa Isabel das Santas Virgens e as mulheres com quem ela convive. Já no início do livro sabemos que ela está presa em um convento de Recolhimento da Conceição, na cidade de Olinda, em Pernambuco. Com o passar dos anos — as cartas são separadas entre os anos de 1789 a 1792 —, conhecemos a infância da protagonista em um dos engenhos da Bahia, seus anos reclusa em um convento ao lado de Blandina, sua irmã de criação e sinhazinha de nascimento elevado, até o momento em que ela vai parar nos caminhos de Minas Gerais. A vida não foi gentil com Isabel das Santas Virgens e ela narra em suas cartas à rainha todos os infortúnios pelos quais passou, retratando em cores vivas como ser mulher não é, nem nunca foi, fácil.

“Assim vivo destituída de tudo, senão de meus pensamentos e palavras ditas a mim mesma e a Deus, de minha honra, minha fé e duas cuias de papa de milho a cada dia, ordenadas ao Recolhimento pelo oficial do Reino que aqui me encerrou. Porque nestas colônias que se dizem Vossas, mas são mais do Demônio do que Vossas, é assim que se vive quando não se tem rendas, tratados os cristãos pobres como se fossem menos do que os animais de trabalho.”

Mesmo que repleta de tragédias em sua narrativa, Carta à Rainha Louca também consegue reunir um toque de humor e sarcasmo assim como a carta original que deu à Maria Valéria a ideia para seu romance. Enquanto Isabel das Santas Virgens escreve à Maria I todos os horrores pelos quais passam as mulheres da colônia, ela não se limita e critica abertamente tudo o que há de errado nas colônias apenas para, em seguida, rasurar tais linhas — geralmente as frases que contêm as verdades mais doloridas. Isabel sabe que será considerada louca apenas por pegar papel e tinta para escrever — não era comum que mulheres o fizessem no século XVIII, principalmente se a mulher em questão fosse apenas a filha de um capataz de fazenda —, então a protagonista coloca toda sua raiva no papel, riscando de propósito as passagens mais ácidas na medida em que as acrescentava às cartas.

As cartas fictícias de Isabel, no entanto, mostram apenas que o inferno ainda é aqui. Em entrevista ao Nexo Jornal, Maria Valéria Rezende diz que nada do que está no livro foi inventado por ela. Como pesquisadora da história da mulher, principalmente na América Latina e seu período colonial, a escritora foi em busca de documentos originais que demonstraram como, em matéria de relações sociais, o que acontecia no século XVIII continua existindo atualmente, “com outras aparências, mas é uma coisa que não está superada”. Mulheres ainda precisam lutar contra a estrutura que as prende e amordaça enquanto buscam liberdade e realização pessoal, e o sistema machista reage contra isso — sempre com muita violência.

Carta à Rainha Louca é a história de uma mulher vivendo às margens da sociedade e que luta para sobreviver enquanto reflete sobre a posição em que se encontra — um lugar em que ela não escolheu estar, foi escolhido por ela com base em seu nascimento e seu gênero. Isabel das Santas Virgens não aceita o lugar em que a colocaram — física ou metaforicamente falando — e as cartas que endereça à Rainha Maria I são seu grito contra todo o sistema em que está inserida contra sua vontade. As palavras de Maria Valéria, nas mãos de Isabel das Santas Virgens, escancaram o fato de que as coisas do século XXI não mudaram muito em relação ao século XVIII. Mulheres continuam sendo silenciadas, colocadas à margem, caracterizadas como loucas apenas por erguerem suas vozes. Assim em como seus livros anteriores, Quarenta Dias, vencedor do Jabuti 2015, e Outros Cantos, vencedor dos prêmios Casa de las Américas, Jabuti 2016 e São Paulo, Carta à Rainha Louca retrata a condição da mulher brasileira da maneira que apenas Maria Valéria Rezende é capaz de mostrar.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


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