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Coisa Mais Linda, segunda temporada: a diferença entre ambição e pretensão

Pouco mais de um ano após o desfecho de sua primeira temporada, Coisa Mais Linda retorna ao Rio de Janeiro da agora década de 1960, recuperando as pontas soltas deixadas nas histórias de Malu (Maria Casadevall), Adélia (Pathy Dejesus), Thereza (Mel Lisboa) e Lígia (Fernanda Vasconcellos) durante a fatídica noite de Ano Novo que instaurou a nova década. A tentativa de assassinato de Augusto (Gustavo Vaz) contra Lígia e Malu permanece como ponto de ancoragem para os novos episódios, que se alicerçam na ocorrência do crime e seus muitos desdobramentos, embora não se limitem a eles.

Atenção: este texto contém spoilers!

Desde o princípio, a série responde o que talvez seja a pergunta mais importante deixada pela temporada anterior: o que aconteceu com Lígia e Malu? A resposta chega quando Malu desperta no hospital, em sequência a um período considerável de inconsciência, para descobrir que Lígia não tivera a mesma sorte. É a própria Malu que verbaliza a tragédia, ao vislumbrar os rostos de Adélia e Thereza que, sozinhos, são resposta mais do que suficiente. Mas a falta de surpresa logo se transforma em um estado de apatia, presente no curto período que se segue à sua saída do hospital. “Sobre Viver”, episódio que abre a temporada, acompanha a passividade de Malu diante de uma nova realidade, colocando em xeque o significado de se ter uma segunda chance, mas uma segunda chance que vem a muito custo. Pensar no por quê de ter sobrevivido, e não Lígia, é um movimento inevitável, e que também se mostra infrutífero: não existe uma resposta. Coisa Mais Linda, contudo, não explora mais profundamente a situação, preferindo refugiar Malu em uma vida mecânica de mãe e dona de casa, que coincide com o inesperado retorno de Pedro (Kiko Bertholini), o marido de quem não tinha notícias desde sua chegada ao Rio de Janeiro, mas de quem também não cobra muitas explicações.

Traçado como um homem insuportável e desprovido de nuances, Pedro serve principalmente para ocupar o papel arquetípico do marido interesseiro que retorna na primeira oportunidade de usufruir do sucesso conquistado pela esposa, em um dos muitos exemplos de homens horríveis oferecidos pela série; diferente dos demais, mas apenas o suficiente para não se tornar uma réplica destes. Não há qualquer tentativa de torná-lo minimamente ambíguo, capaz de instaurar dúvida mesmo após errar tão gravemente. Se a primeira temporada trabalha com a perspectiva de uma mulher que sofre pelo fim inesperado do casamento — um casamento que supunha ser perfeito até então —, a personificação de Pedro em seu segundo ano é uma contradição em si mesma. É difícil compreender o que levaria uma mulher como Malu a se casar com alguém como Pedro, mesmo quando sua visão de mundo era limitada pelos círculos sociais da elite paulistana, e a série não parece particularmente empenhada em demonstrar o significado daquele casamento para além das burocracias de ser uma mulher sem marido no século XX.

Observar as tentativas de Pedro de reconquistar Malu são especialmente incômodas não só porque ele é uma péssima pessoa (o que de fato é), mas porque as interações entre eles são tão vazias em química quanto seus pedidos de desculpas são em sinceridade. É uma das muitas oportunidades desperdiçadas pelo roteiro, que não estabelece um pano de fundo suficientemente sólido para os dois. Para além dos muitos diálogos e lamúrias, Malu e Pedro jamais têm a oportunidade de existir como casal, diferentemente do que ocorre com outras relações originadas no passado da protagonista, tornando sua dinâmica pouco crível, e a presença de Pedro, uma variável pouco significativa. Seria compreensível que Pedro, enquanto mero coadjuvante, não obtivesse tanta atenção, ao menos não individualmente e não em uma série com episódios tão limitados (juntas, as duas temporadas somam treze episódios). Mas sua relação com Malu não escapa à mesma regra, e é difícil explicar como o conflito entre eles possa ser tão facilmente resolvido quando há tanto a ser considerado, incluindo um filho, e a inexistência de um divórcio fosse, por si só, motivo de escândalo tanto quanto o próprio divórcio — coisas com as quais a série não parece se preocupar.

Não é uma surpresa que a participação de Pedro seja, em geral, tão irrelevante que, por fim, culmine em uma nova fuga, dessa vez motivada pela (falsa) acusação de vender bebida adulterada e distribuir dinheiro falso — no que tem como resultado aquela que talvez seja uma das cenas mais divertidas da temporada, muito embora também não deixe de ser uma saída simplista do roteiro. Malu, em grande parte, recupera sua autonomia, volta a se envolver ativamente com o clube e enreda-se em um triângulo amoroso com Chico (Leandro Lima) e Roberto (Gustavo Machado). Mas ela continua a ser uma mulher casada, em uma época em que isso significava muito mais do que estar legalmente unida à outra pessoa, e o adultério ainda era considerado crime — o que, no Brasil, seria até 2005. São questões práticas com as quais Malu deveria, se não lidar, ao menos considerar, porque poderiam gerar consequências sérias, e uma extensa rede de apoio pouco poderia fazer para ajudá-la. De certa forma, Coisa Mais Linda recupera essa perspectiva durante o julgamento de Augusto pelo assassinato de Lígia e a tentativa de homicídio contra Malu, quando demonstra que, entre homens e mulheres, a Lei permaneceria ao lado dos homens, independente do mal que estes perpetuassem ao sexo oposto. O momento, no entanto, dura o suficiente para ser esquecido no minuto seguinte, desconsiderando o cenário no qual viviam aquelas mulheres e sua influência sobre essas vidas. Ao contrário de produções como Mad Men e The Marvelous Mrs. Maisel, em que o contexto histórico é um aspecto central à narrativa, Coisa Mais Linda utiliza o Brasil do final da década de 1950 e início da década de 1960 apenas naquilo que lhe é conveniente (lindos figurinos, uma bela fotografia), em uma evidente tentativa de construir um enredo histórico que permaneça atual — uma tentativa, desnecessário dizer, em muito fracassada.

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Existem, é claro, temas abordados pela série que continuam profundamente atuais: racismo e sexismo, por exemplo, não deixaram de existir no decorrer dos 60 anos que separam o Brasil de Coisa Mais Linda do Brasil de 2020. Mas são questões que, mesmo em suas melhores tentativas, se perdem em meio aos frequentes dramas que balançam as vidas das protagonistas e que não necessariamente adicionam nuances ao seu desenvolvimento. No caso de Malu, o romance se transfigura em fio condutor e, por isso, o triângulo com Chico e Roberto ocupa tanto tempo em sua jornada — que, do contrário, poderia se dedicar a questões mais complexas como a perda da melhor amiga de adolescência, a experiência de quase morte e os bastidores do mundo da música, como construir uma carreira de produtora e empresária entre pessoas que não a viam (e talvez jamais a vissem) — como uma igual. Mesmo sua retomada ocorre com demasiada facilidade, retirando o peso de suas experiências, que ficam esquecidas até precisarem ser revividas.

Para uma mulher cuja maior decepção se dá a partir da quebra de expectativas em relação ao ideal romântico, é decepcionante que a série relegue tanto espaço às questões que concernem o romance na vida de Malu, que ela continue depositando tanta fé em algo que tão pouco lhe dá volta e que seu mundo gire tão indiscutivelmente ao redor dos homens com quem se envolve. Roberto, que é também seu sócio, parece mais empenhado em construir uma relação que ultrapasse o estritamente profissional, mantendo-se presente durante seu coma, desenvolvendo relações com sua mãe e seu filho e corrigindo eventuais deslizes. Mas é em Chico que Malu enxerga um verdadeiro amor, ainda que ele seja uma pessoa menos confiável e quase nunca esteja presente, o que se comprova com o óbvio desfecho da temporada, quando sua noiva estadunidense, Sara (Maiara Walsh), sobre quem nunca havia falado, retorna dos Estados Unidos grávida e em busca do amado, que há muito não dava notícias — uma virada frívola que reitera a dificuldade da série em desenvolver narrativas que não sejam estritamente baseadas em conflitos novelescos.

Mas Malu não é a única, uma vez que Adélia e Thereza não fogem ao mesmo destino. A descoberta de que Conceição (Sarah Vitória), filha de Adélia, é, na realidade, fruto do seu relacionamento com Nelson (Alexandre Cioletti), marido de Thereza, implica na criação de uma nova dinâmica familiar, que inclua o pai e a madrasta no cotidiano da menina. Não é uma tarefa fácil, mas a série, em uma escolha acertada, faz com que Adélia e Thereza tornem-se mais próximas a partir do momento em que a verdade vem à tona — algo que, no entanto, não é mantido nos novos episódios. Em seu segundo ano, Coisa Mais Linda conduz a narrativa das duas personagem em paralelo, com escolhas cujas consequências respingam em ambas. Enquanto o passado inevitavelmente paira sobre a cabeça de todos — incluindo Capitão (Ícaro Silva), agora noivo de Adélia —, a nova dinâmica fornece tensões muito próprias, que não demoram a se transfigurar em situações pouco agradáveis em que a aparente boa vontade dos envolvidos se prova bem mais complexa do que sugere em princípio. Há em Adélia o receio de que Conceição passe a preferir a vida com o pai rico e a madrasta, receio este que exemplifica questões mais profundas, embora possam ser inicialmente lidas como o simples ciúme de uma mãe. Quando Conceição chega em casa imitando os trejeitos de Thereza, falando com a mãe em francês ou contando sobre as viagens que fará com o pai e a madrasta, não é tanto sobre não querer que a menina se envolva com aquelas pessoas e tenha oportunidades, mas sobre o temor de que Conceição sofra, ou de que a nova realidade faça surgir um abismo entre as duas. Assim, quando acusa Thereza de ensinar um idioma “secreto” à filha, o problema não é que Conceição fale francês, mas o que a língua significa nesse contexto. Não é a intenção de Thereza que isso aconteça e, quando desculpas são trocadas, ambas percebem que frustrações e receios correm dos dois lados, que aquele arranjo não era — e nem poderia ser — tão simples quanto talvez tivessem imaginado.

As dificuldades, contudo, não impedem que elas continuem a tentar, ao menos por algum tempo, e episódios como “Compromissos” enfatizam que, apesar de tudo, Adélia e Thereza seguem em frente e conseguem encontrar satisfação e felicidade na medida em que lhes é possível. O casamento de Adélia e Capitão é um momento particularmente memorável, que tanto marca uma nova etapa na vida de Adélia quanto revela maiores detalhes sobre sua família. O convite para que seu pai, Duque (belamente interpretado por Val Perré), compareça à cerimônia traz à tona uma imensa carga de mágoas e questões mal resolvidas que não são imediatamente solucionadas. Se Adélia parece mais disposta a perdoar o pai por um erro que acredita que ele cometeu, Ivone (Larissa Nunes), sua irmã mais nova, no entanto, encontra mais dificuldade — e somente quando a verdade sobre o por quê de Duque ter ido embora é finalmente revelada, é que ela se permite perdoar o pai.

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Ivone é uma personagem cativante, que ganha mais espaço e camadas no decorrer dos episódios. Com uma voz poderosa e indiscutível talento, ela passa a perseguir o sonho de se tornar uma grande cantora, primeiro se apresentando no clube de Adélia e Malu para, então, ambicionar voos mais altos. Não é uma jornada sem percalços: a reticência inicial de Adélia em apoiá-la não vem sem algum peso e, mais tarde, quando seu sucesso no clube é sobreposto pela falha em um concurso de talentos, a frustração a leva a desistir momentaneamente do sonho. É somente ao assumir o controle sobre a própria trajetória, reconhecendo a singularidade de seus desafios, que Ivone obtém sucesso, em uma apresentação catártica que lhe rende o prêmio principal de um grande concurso.

Quando isso acontece, Adélia já havia se convencido de que era mais importante apoiar a irmã do que tentar desviá-la de seu sonho, mantendo-a em um emprego seguro, mas um emprego que não lhe trazia contentamento, e se dispõe a guiá-la. A mudança, porém, não ocorre sem uma justificativa: a descoberta de um tumor é o que provoca a mudança na postura de Adélia, que se mantém mesmo após a descoberta de que o tumor era, na verdade, benigno. Coisa Mais Linda propõe uma reflexão sobre a fragilidade da existência humana a partir de uma situação muito distinta daquela que marca Malu, mas que não chega a se concretizar, em um discurso que não vai além da superfície. É evidente que a doença de Adélia só interessa ao roteiro na medida em que a impulsiona na direção de Nelson, adicionando novos dramas, mas não novas nuances, ao desenvolvimento da personagem.

Em entrevista à Glamour, Pathy Dejesus, intérprete de Adélia, afirma que a segunda temporada dá à personagem a oportunidade de fazer escolhas, ainda que essas escolhas, inevitavelmente, causem algum tipo de sofrimento — e ela não está errada. Para uma mulher que sempre teve de assumir, desde muito jovem, a responsabilidade por aqueles ao seu redor, escolher nunca fora uma opção, em especial quando essas escolhas eram movidas por desejos exclusivamente seus. A ascensão profissional permite a ela se desvencilhar desse padrão, ganhando maior autonomia e segurança, e o progresso concomitante na vida pessoal indica que essas realizações (o trabalho, a família, o amor romântico) podem existir de maneira não-excludente. O casamento com Capitão é, ao seu próprio modo, uma reafirmação de que Adélia pode ser bem-sucedida pessoal e profissionalmente, e que o passado é apenas uma parcela de sua existência, que ele não a impede de seguir adiante. Não é uma surpresa que, ao lado de Capitão, Adélia dê vida àquele que é um dos poucos relacionamentos verdadeiramente maduros da série, baseado em um companheirismo que falta aos demais.

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Nelson lhe fornece um outro tipo de vida que representa, ao mesmo tempo, a realização de um sonho e a conquista de novos espaços. Mas a nova realidade tampouco é perfeita. O racismo permanece uma constante, atingindo-a também dentro de casa, com vizinhos que ameaçam expulsar a família do prédio onde moram e a dificuldade de Conceição em se adaptar a uma nova escola, onde as crianças a rejeitam pela cor de sua pele. Em tempo, a mudança também a distancia de suas conquistas, a desconecta daqueles que ama e, consequentemente, do mundo que conhece; fragmentos que, se não a definem, ao menos ajudam a delineá-la como uma mulher tão humana. Que o faça por Nelson, alguém que nunca havia se preocupado em procurá-la, tendo seguido a vida como se nunca a houvesse conhecido, mesmo depois de se tornar um homem adulto e não responder aos mandos e desmandos de seus pais, comprova que há muito não existe — e tampouco deveria — espaço para ele na vida de Adélia, exceto para ser o pai biológico de Conceição. Ao não permiti-la se desvencilhar do próprio passado, Coisa Mais Linda reitera os mesmos padrões que afirma subverter (o conflito com Thereza é particularmente sintomático), levando-a a decisão incoerente de viver em Paris, deixando o clube, a família e as amigas em definitivo, quebrando a promessa de gerir a carreira da irmã e apoiá-la integralmente.

Para Thereza, a separação de Nelson e o fim da amizade com Adélia também sinalizam um retrocesso. Quando a temporada tem início, Thereza incorpora o papel de dona de casa, em uma rotina limitada ao núcleo familiar, o que também a leva a desistir do emprego como editora em uma revista feminina. Mas a mudança não é a única: se a carreira é deixada em segundo plano em prol do marido e da enteada, independência e vivacidade, duas características centrais em Thereza, também se esvaem, em um processo que nada tem de natural. Embora desempenhe suas atividades com maestria, seja uma madrasta carinhosa e ame o marido com sinceridade, é notório que a rotina familiar não lhe traz a satisfação de uma carreira. É impulsionada por Ester (Odina Clais), mãe de Malu, que ela arruma um novo emprego, dessa em vez em uma emissora de rádio, mas o trabalho não demora a se tornar um problema, quando Nelson passa a se ressentir de suas muitas horas fora de casa e do seu pouco contato com a família que, junto com Conceição, eles agora formam.

Não é preciso dizer que as brigas logo comprometem a relação, ao que Nelson decide pedir um tempo e Thereza concorda, ainda que essa seja uma decisão difícil para ela, muito mais do que aparenta ser para ele. No meio tempo, a rotina de trabalho é mantida e sua carreira deslancha à medida que se torna mais experiente. Mas é na intimidade que seu sofrimento se expressa, em cenas tão tristes quanto delicadas, como aquela em que chora sozinha na frente do espelho, e que dão a dimensão do quanto o casamento é importante para ela. Desse ponto em diante, é preciso que Thereza experiencie o luto pelo fim do casamento. Mas a série não lhe dá tempo para tanto: a adição de Alejandro Claveaux ao elenco como o radialista Wagner Pessanha sustenta que deixá-la sozinha, fosse por quanto tempo fosse, jamais fora uma opção. Em uma temporada tão fortemente fincada nas jornadas românticas de suas personagens, que uma mulher fosse feliz e realizada sem estar, necessariamente, envolvida com alguém, traçando um caminho em que trabalho, amizades e amor próprio fossem mais importantes, parece impossível. O romance, no entanto, só é validado quando esse envolvimento se dá com homens. O amor entre mulheres, ao contrário, é tratado como fruto de mera casualidade, tão efêmeros que se desintegram no mesmo dia em que acontecem. Thereza, a única bissexual do grupo de protagonistas, jamais tem sua sexualidade explorada, surgindo somente enquanto serve ao roteiro como uma nota do quão livre ela pode ser — mesmo que, no fim, retorne aos homens, conforme a manutenção do estereótipo da bissexualidade como uma fase, e o bissexual como alguém potencialmente esquivo e promíscuo.

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É inegável que o ponto alto da série permanece nas trocas entre as protagonistas: juntas, Adélia, Malu, Thereza e, agora, também Ivone, proporcionam momentos de leveza e descontração, em que a dinâmica entre elas também se mostra mais genuína. Quando, junto a uma Adélia prestes a se casar, o grupo se arruma, fala de sexo e dá gargalhadas, Coisa Mais Linda evoca a cumplicidade que existe entre essas mulheres, a mesma tão pouco valorizada nos episódios subsequentes. Em uma série em que a maior parte dos diálogos continuam soando panfletários, é ao fugir das situações de tristeza e violência predominantes, e a essa altura bem menos instigantes, que a série demonstra quão boa pode ser. Para todos os efeitos, Coisa Mais Linda é uma produção que se alicerça no drama, o que significa jogar luz sobre aquilo que existe de mais crítico na vida de suas personagens — e porque há injustiças e dificuldades suficientes na vida de qualquer mulher (para algumas mais do que outras), há material considerável com os quais trabalhar, ao ponto de esquecer-se que a existência de Adélia, Malu, Ivone e Thereza não se restringe ao sofrimento, que a alegria também encontra seu lugar em meio ao caos.

Nesse sentido, a ausência de Lígia é particularmente sentida, uma vez que sua jornada sempre conseguiu balancear tão bem a beleza da amizade e a dor de um casamento de aparências, violento e sem amor. Lembranças ainda são mantidas, sendo resgatadas em momentos oportunos que são, ao mesmo tempo, homenagem e impulso para aquelas que continuam vivas. Durante o julgamento, a série recorre a flashbacks, que reafirmam quão perigoso Augusto é, ainda que os relatos das testemunhas de acusação não sejam suficientes para garantir justiça: Augusto é condenado pelo crime, mas não cumpre pena em regime fechado, ficando livre para retomar sua vida, a carreira política e até mesmo se envolver com outra mulher perversamente parecida com Lígia, que, por sua vez, permanece morta e enterrada — todos os seus sonhos, talento e sentimentos extintos junto com ela.

Temas como aborto, casamento, divórcio, crime passional e legítima defesa da honra são brevemente abordados pela série, mas tampouco são aprofundados. A legítima defesa da honra, em particular, é um recurso comum na ficção, e consiste na absolvição da pessoa responsável pela morte do cônjuge após a descoberta de uma traição (crime que podia estender-se à pessoa com quem o marido ou a esposa traía o parceiro) a partir da suposição de que a honra, tanto quanto a vida ou o corpo, era parte da pessoa e, portanto, deveria ser protegida. Coisa Mais Linda não necessariamente se utiliza da traição como ponto de partida para essa discussão (Lígia nunca traíra o marido), mas a adapta a circunstâncias específicas que, de uma maneira ou de outra, exemplificam a condescendência social diante de crimes hipoteticamente passionais, em especial quando cometido por homens. A ideia de que pessoas tivessem sua racionalidade e sentidos comprometidos no ato do crime, no qual enquadravam-se esses delitos, pertencia, contudo, ao Código Penal que vigorou entre 1890 e 1940. Assim, diferente de obras como Gabriela, de Jorge Amado, ambientada em meados da década de 1920, que encontram um eixo historicamente sólido no qual se basear, Coisa Mais Linda não encontra realmente uma fundamentação que justifique a incursão no tema. Com efeito, nem mesmo a acusação de Augusto serve para demonstrar que esses argumentos foram superados, ainda que a violência contra mulheres conserve-se inalterada — simplesmente não há tempo para isso.

Talvez por esse motivo, o fato de Augusto terminar a temporada morto, em um cliffhanger desnecessariamente óbvio, durante uma festa em que, inexplicavelmente, todos os principais personagens estavam presentes, não seja capaz de produzir nenhuma catarse; não é um consolo que sua vida tenha se extinguido em um possível crime. Seu desfecho não é tampouco tão violento quanto o de Lígia, em uma falsa simetria que reforça a inaptidão da série em executar aquilo a que se propõe.

Coisa Mais Linda não é, de todo, uma série ruim: figurinos e cenários saltam aos olhos, e não há dúvidas de que seu elenco principal seja carismático. Mas são pequenos pontos de êxito em uma produção que entrega falhas muito maiores e mais visíveis. Com a crescente popularidade de narrativas baseadas nas histórias de mulheres que lutam por seus direitos em diferentes épocas e contextos, Coisa Mais Linda responde, à maneira capitalista, com um enredo sob demanda que pode parecer satisfatório, mas que, no fundo, se mantém atrelado a uma imagem do Brasil — e do brasileiro — solidificada pelo olhar estrangeiro. É inegável que ela poderia ser uma série mais interessante e substancial, menos panfletária e mais orgânica. Mas seus muitos tropeços são apenas o comprovação daquilo que ela sempre foi: um exemplo da diferença entre ambição e pretensão.

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