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As Golpistas: fugindo dos paradigmas e dos arquétipos femininos

Lembro da primeira vez que vi Closer: Perto Demais, lançado em 2005 e dirigido por Mike Nichols. Na trama, Alice Ayers (vivida por Natalie Portman) é uma mulher que trabalha como stripper em um clube e algumas das cenas mais importantes são situadas durante uma de suas danças. O filme não é exatamente sobre sua jornada como stripper, claro, mas sobre a dificuldade de amar e manter um relacionamento. No auge dos meus 15 anos, no entanto, não consegui entender exatamente a complexidade, insegurança e a tristeza da personagem e como isso refletia na forma como ela acabou naquela profissão. Quando finalmente entendi isso mais tarde, passei a olhar de uma forma diferente para a maneira como mulheres strippers eram retratadas nas telas dos cinemas e cheguei a conclusão de que essa representatividade é decepcionante: não apenas existe pouco espaço para elas nas tramas em si, como na maioria das vezes elas são usadas como objetos de cena, com seus corpos nus expostos apenas para criar uma espécie de ambientação para o longa. As Golpistas, no entanto, é diferente. 

Atenção: este texto contém spoilers

Dirigido por Lorene Scafaria, o longa conta sua história de forma básica, dividindo sua narrativa em dois momentos diferentes. Na primeira, ela acompanha Destiny (Constance Wu) ainda em 2007, nos seus primeiros dias como stripper, onde ela conhece Ramona (Jennifer Lopez). De cara, as duas criam uma amizade baseada principalmente no fato de Destiny precisar de ajuda para conseguir dançar e ganhar dinheiro, enquanto Ramona se torna uma espécie de “mentora” para a mesma. Depois, a história corta para 2014, onde a protagonista é entrevistada pela jornalista Elizabeth (Julia Stiles) sobre o golpe que ela e outras strippers aplicaram em vários homens ricos de Wall Street durante o período em que Destiny e Ramona foram amigas.

O filme é, acima de tudo, uma história sobre amizade e união pela necessidade, mas seu pano de fundo econômico é essencial para entender as maquinarias do golpe que é construído dentro da narrativa. Quando, em 2008, os Estados Unidos entrou em uma grande crise econômica, que afetou o trabalho de todas as pessoas que na época trabalhavam em Wall Street, isso acabou afetando também a renda de todas as profissionais envolvidas no clube de Ramona e Destiny — visto que o principal público alvo do estabelecimento, claro, eram os homens que estavam trabalhando nos processos diários da bolsa de valores, dos que faziam o serviço mais básico até diretores ou CEOs.

As Golpistas

Na medida em que a economia vai piorando, as meninas que trabalham como strippers têm que começar a aguentar atitudes problemáticas de clientes (como se o ato deles irem até o clube não fosse algo contestável em si) e quando se dão conta, estão fazendo sexo oral ou masturbação por um preço ridículo, ou sendo humilhadas e maltratadas. Isso impulsiona algo em Ramona que resulta em um golpe bem estruturado e executado, onde elas drogam clientes regulares e usam seus cartões de créditos dentro da boate, dividindo todo o lucro entre si e contando com o fato de que eles estejam envergonhados o suficiente para não tentar chamar a polícia ou falar sobre o ocorrido — apelando para o fato de que o ego masculino é minúsculo e ser enganado por mulheres é algo que fere o orgulho deles de forma brutal.

Os eventos são baseados livremente no artigo “The Hustlers at Scores” da jornalista Jessica Pressler, publicado em 2015 pela revista New York. A premissa é ambiciosa e apesar de a primeira vista parecer que esta será uma narrativa completamente focada no golpe em si, ela acaba surpreendendo e se tornando muito mais sobre a dinâmica criada por Destiny e Ramona, e sobre pequenos momentos que falam sobre a natureza da relação que elas criaram. Por isso, existem cenas onde as protagonistas dançam e fazem o trabalho delas no pole dance, mas as que realmente importam são aquelas onde a personalidade delas fora do palco se sobressai. Quando elas estão conversando no camarim, falando sobre os problemas de ser uma stripper e tentar manter um relacionamento monogâmico, falando sobre sexø enquanto mantém um trabalho que é impulsionado pelo mesmo sentimento ou simplesmente debatendo sobre aluguel, o futuro e o que elas esperam da vida.

As Golpistas

Essa característica é reforçada por uma atuação incrível de todas as envolvidas. Lopez vive uma mulher que é tão ambiciosa que não sabe a hora de parar e prejudicar os outros ao seu redor. Mesmo com falhas de caráter, como todos, ela protege e cuida das meninas do clube, além de ser uma ótima mãe e lutar sempre para dar um futuro onde sua filha escolha a faculdade que quer fazer, ou não. A atriz está perfeita no papel, mostrando uma força que é quase sensível. Uma das favoritas ao Oscar de Atriz Coadjuvante, com certeza. Do outro lado da história está Wu, que depois de Asiáticos Podres de Ricos faz seu papel mais interessante até agora. Muito se falou sobre a atuação de JLo, mas é impressionante o quanto Constance se entregou, interpretando uma mulher cujo o maior desejo é apenas não depender de ninguém — algo que acaba esquecendo, levada pelas circunstâncias da vida. Até mesmo Lili Reinhart (Annabelle), Styles e Keke Palmer (Mercedes) tem os seus momentos, dando força para a narrativa no geral. Lizzo e Cardi B também são aparições interessantes, ainda que o tempo de tela seja consideravelmente menor do que as outras.

A competição para ser uma stripper, ganhar dinheiro e principalmente para encontrar seu lugar no mundo é quase insuportável. Destiny aguenta homens roubando todos os seus lucros; racismo (quando chamam ela de Lucy Liu só porque ela é asiática); e uma parcela grande de uma clientela bizarra, que espera coisas que são, no mínimo, problemáticas. Mesmo assim, quando ela tira a roupa que usa para trabalhar, sai andando por Nova York, leva dinheiro para sua vó ou apenas cuida da sua filha, Lily, sua vulnerabilidade é real e comovente e dessa vez fui capaz de entender completamente o quanto essa característica na vida de Destiny é influenciada pelo seu trabalho como stripper, algo que perdi na primeira vez que vi Closer. Uma das coisas mais incríveis do cinema é justamente a capacidade de analisar algo por anos a fio e ainda sim conseguir captar algo novo, que muda sua perspectiva sobre a obra.

Por conta desse grupo extraordinário de mulheres e da visão de Scafaria, o que poderia facilmente ter se tornado apenas mais um filme sobre golpes (também conhecidos como o gênero heist) transforma-se algo novo, importante e refrescante, bem como um dos melhores filmes de 2019. No lugar de criar arquétipos sobre mulheres que trabalham como strippers, As Golpistas dá profundidade, motivação e, de quebra, estende empatia para todas as personagens, dando o benefício da dúvida e levantando questões importantes onde um certo grupo de pessoas está eventualmente cometendo um crime. Afinal, os homens que foram vítimas, até que ponto realmente eram vítimas? Em uma sociedade que tirou tanto delas, privando as mesmas de sentimentos básicos como dignidade e respeito, o quanto elas podem e devem tirar de volta? O quanto elas podem se aproveitar?

As Golpistas

Durante um momento do longa, a jornalista diz para Destiny que não sente pena dos homens que foram afetados e que, para falar a verdade, ela só está interessada em contar a história delas. De certa forma, essa é exatamente a mesma mensagem do longa, que não se preocupa tanto em julgar os golpes e as ações individuais de cada uma delas, mas sim explorar sentimentos que na sua natureza em si tão complexos e difíceis de processar. É uma história de amor entre Ramona e Destiny que podem nem sempre ter sido a melhor influência uma para a outra, mas com certeza tiveram as melhores intenções, ainda que de um jeito pouco convencional e meio distorcido.

Em 2019, sou grata por As Golpistas, que mescla coração com humor, criando algo que tem a capacidade de realmente falar com novas audiências ou mulheres que passaram pelas mesmas situações que as protagonistas, sem alienar ou criar uma versão menos real do que na vida. Nuance é tudo, e o filme entende isso.