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Por que nossos pais precisam assistir Queer Eye?

Dois adultos sentam-se no sofá da sala para ver um seriado diferente com a filha mais nova e acabam conhecendo os 5 Fabulosos por acidente. O que eles achavam ser uma série de comédia na verdade se mostrou como um reality show que vai além da ideia de uma transformação no visual e alcança o espaço de uma transformação na forma de viver a vida. Tanto de quem participa da série, quanto de quem assiste.

Depois disso, o que acontece é história, e ainda bem que eu adoro compartilhar cada uma delas.

A primeira vez que meus pais ouviram falar de Queer Eye foi num desses momentos de transitar pela casa e ouvir gritos finos em inglês na televisão sem nenhum motivo aparente. Talvez a curiosidade ou o estranhamento diante da minha risada escandalosa foi o que fez com que eles olhassem para a tela pela primeira vez, e fico muito contente por eles terem feito isso.

O que começou com uma pergunta sobre o programa acabou se tornando uma maratona de cinco temporadas, incluindo a temporada no Japão, e uma cobrança incessante na minha jovem cabeça de quando a sexta temporada iria ao ar. Por questões de rotina e organização (mas também de traição filial, se me perguntarem) ambos acabaram assistindo a sexta temporada inteira sozinhos, e eu continuo devendo alguns episódios até hoje.

Mas por que essa história é tão importante? Primeiro, vamos a algum contexto:

Quem é Queer Eye na fila do pão?

queer eye

Queer Eye é uma série estadunidense da Netflix cuja primeira temporada estreou em fevereiro de 2018 e se trata de um reboot da série do canal Bravo, chamada Queer Eye for the Straight Guy. Na versão atual, conhecemos um novo grupo chamado de 5 Fabulosos, composto por Antoni Porowski, especialista em comida e vinho; Tan France, especialista em moda; Karamo Brown, especialista em cultura; Bobby Berk, especialista em design de interiores; e Jonathan Van Ness, especialista em cuidados pessoais.

O mote da série é que os cinco especialistas da comunidade LGBTQIA+ ajudam homens e mulheres em diferentes regiões dos Estados Unidos a repensarem seus estilos pessoais, assim como os estilos de vida. Dessa forma, mais do que mudar o corte de cabelo e o guarda-roupa, eles se propõem a transformar a vida dos participantes por meio de suas personalidades, experiências e histórias de vida.

Ao longo dos mais de 40 episódios, essas cinco figuras extraordinárias conhecem pessoas extremamente diferentes entre si, mas conectadas pelo desejo de serem felizes. Entre as compras de móveis novos para a casa a ser reformada e um momento para aprender uma receita nova, os especialistas compartilham suas visões de mundo com pessoas diversas, independente de religião, etnia, sexualidade ou nacionalidade.

Portanto, o que faz Queer Eye ser excepcional é mostrar o poder das relações humanas, do contato, da atenção, do afeto e da troca. Ao filmarem em regiões extremamente tradicionais nos Estados Unidos, como o Texas, eles trabalham com pessoas que nunca, conscientemente, tiveram contato com membros da comunidade LGBTQIA+, e ao invés de se deixarem tratar como criaturas exóticas, eles abraçam essa divergência de realidades como uma forma de abrir os olhos do protagonista de cada episódio para uma outra realidade, mas também de quem assiste e compartilha das mesmas vivências. Felizmente, é aqui que a mágica acontece.

O que os 5 Fabulosos fizeram com os meus pais?

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Como boa Gen Z, cumpri meu papel cívico e social com o planeta ao passar horas, semanas e meses da minha vida discutindo sobre questões urgentes da minha geração com meus pais, que naturalmente pertencem à outra geração, cujas urgências e dores eram bem diferentes. Nesses debates, com toda didática e paciência possível, conseguimos compartilhar experiências, perspectivas e informações que expandiram a visão de mundo de cada um, mas eu sempre senti que faltava aquela pontinha de contato com o que estava falando.

Sabe aquela coisa de que em casa de ferreiro, o espeto é de pau? O fato é que eu nunca consegui traduzir para os meus pais as dores que senti como mulher preta ao longo do meu crescimento, porque a experiência da minha mãe enquanto mulher preta foi completamente diferente, e o que meu pai branco sabe, faz parte mais da observação e empatia. Do mesmo modo, sempre senti dificuldade em explicar questões de gênero e sexualidade, desde o uso de pronomes até o que significava cada terminologia da sigla LGBQIA+.

Ainda que me fizesse entender, tudo parecia um pouco distante e intangível, independente do interesse, iniciativa e importância que eles davam a todas essas questões quando eram colocadas na mesa. Como seres do mundo e adultos funcionais, temáticas como essas fizeram parte do cotidiano deles por meio das redes sociais, mas também do consumo de informações, com os tópicos de sexualidade, gênero, etnia e diversidade entrando na pauta de debates presidenciais e testes admissionais das empresas que conhecem.

É sempre um enorme prazer meu vê-los questionando e querendo aprender, em especial pela posição de privilégio que ocupam na sociedade, mas também porque isso significa que eles não aceitam ficar parados no tempo como alguns adultos fazem hoje em dia. Apesar disso, sentia que faltava aquela dose de realidade para tornar as questões mais visíveis e reais, para além da bolha das relações sociais de cada um.

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Como eu poderia deixá-los ainda mais conscientes e informados se ambos trabalhavam 18 horas por dia e preferiam, obviamente, chegar em casa e descansar ao invés de assistirem um seminário sobre questões sociais? Como eu poderia atualizar o conhecimento e experiência das mais de cinco décadas de vida deles com o meu acervo de duas décadas e pouco? Como atravessar a ponte entre o que eles aprenderam por conta própria sobre essas questões e o que eu aprendi também?

Imaginem o tamanho da minha surpresa quando, de repente, os 5 Fabulosos fizeram esse trabalho por mim, despretensiosamente e sorrateiramente, enquanto meus pais tinham a maratona das seis temporadas como programa de casal durante os finais de semana. A partir dos diálogos da série, ao verem pessoas como eles se conectando com cinco especialistas completamente diferentes entre si, as lacunas que eu sentia não ser capaz de preencher foram substituídas por uma compreensão empática fundamental.

É importante contextualizar que eu e meus pais raramente combinamos em nossos gostos, e a lista de séries da Netflix de cada um dos três é bem diferente. Raramente, no que parece mais um evento cósmico, conseguimos encontrar um ponto em comum e começamos a assistir algo juntos. Mais raro ainda é que eles decidam ver sem mim porque gostaram tanto daquele programa que as agendas diferentes não podem ser um empecilho para a curiosidade ou amor pelo enredo.

Quando os vejo chorando com as histórias de Queer Eye, conversando sobre os protagonistas e associando com as histórias de amigos que eu conto em casa, repensando comportamentos e até mesmo criticando a cobertura de notícias a partir do conhecimento que adquiriram vendo a série, sinto que um ciclo chega ao fim para que se reinicie. Poder ver os meus pais aprendendo algo comigo, e através de mim, é motivo de alegria porque aprendi tanto com eles ao longo da vida.

Não quero soar prepotente ao compartilhar essa experiência, mas é engraçado pensar que uma maratona despretensiosa de um programa que está na nossa lista há muito tempo possa gerar um efeito em cadeia e tantas transformações positivas. Colocar em perspectiva que diálogos são impulsionadores, mas que referências culturais conseguem ir além sem a gente perceber que isso está acontecendo enriquece completamente a experiência enquanto espectador.

Talvez, se eu nunca tivesse dado play em Queer Eye e gargalhado das piadas dos 5 Fabulosos eu não conseguiria fazê-los entender questões tão urgentes para atualidade, e isso com certeza tornaria as coisas bem difíceis, tanto dentro quanto fora de casa. Talvez, se eu tivesse me negado a explicar sobre a série e deixado de dar espaço para que eles se interessassem em algo que eu gosto, alguns comportamentos da geração deles continuariam se chocando negativamente com os comportamentos da minha geração.

A partir do momento que entendemos o entretenimento e a cultura como ferramentas de transformação, abrimos espaço para diálogos fundamentais que por vezes não fazem parte do nosso cotidiano. Desde situações sutis como essa até em larga escala, o potencial que existe para além do play num seriado me parece infinito.

Muitas vezes por pressa, falta de paciência e afeto, deixamos de ensinar e aprender com as pessoas da nossa vida. Muitas vezes, agimos de maneira prepotente e pretensiosa ao achar que sabemos de tudo e que todo mundo deve se virar para saber também, quando na realidade não é bem assim. Quando nos dispomos a conversar, a dialogar, a trocar ideia sobre o que assistimos, o que pensamos e sentimos com as pessoas da nossa vida, um milhão de possibilidades de crescimento surgem, principalmente quando as partes envolvidas estão dispostas para tal.

Nos raros momentos em que eventos cósmicos geram um alinhamento de gostos, agendas, prioridades e disponibilidade de tempo, é possível que 5 Fabulosos diminuam as lacunas que as nossas limitações deixam escapar. Quem diria que uma série tão vivencial teria uma função didática desse tamanho? Quem diria que um programa de televisão é capaz de gerar empatia, reconhecimento, compreensão e afeto, apesar das diferenças de geração, pensamento, cultura familiar e educação de quem assiste?

Quem sabe, se pensássemos mais desse modo sobre o que consumimos, teríamos diálogos e referências melhores para as nossas vidas. Sempre digo e repito: quando deixamos de ver o entretenimento e a cultura exclusivamente como lazer ou descanso mental, abrimos a porta para um mundo de possibilidades incríveis. E é ainda mais especial quando navegamos por essas portas com as pessoas importantes da nossa vida.


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