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55 anos de Todas as Mulheres do Mundo e o vazio de remakes desatualizados

Em 1966, Domingos Oliveira gravou seu primeiro longa metragem, no qual eternizou o relacionamento que teve por três anos com a atriz Leila Diniz. Todas as Mulheres do Mundo não é apenas uma ode a Leila, que representa a mulher carioca e moderna dos anos 1960, mas é também uma das primeiras comédias românticas brasileiras de comportamento — ou, para usar o termo que está em voga: uma dramédia. O filme antecipa em dez anos o icônico Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) de Woody Allen, e talvez tenha feito escola na cinematografia brasileira apenas 30 ou 40 anos depois — provavelmente devido aos tradicionais embargos culturais de nosso país —, quando outras dramédias começaram a surgir, especialmente na filmografia dos cineastas Luiz Villaça, Guel Arraes, Jorge Furtado e João Falcão, cada um a seu modo.

O início do filme se dá com uma montagem narrada por Edu (Flávio Migliaccio), na qual colagens de diversas imagens aparecem intercaladas com tomadas dele na praia falando sobre amor, sexo, casamento e esse novo evento que surgiu há pouco: a independência sexual das mulheres. Em seguida, Edu encontra Paulo (Paulo José), amigo que não via há alguns anos, mulherengo convicto. Paulo conta a história de sua “falseta”, ou como se apaixonou por Maria Alice (Leila Diniz), moça que conheceu em uma festa de Natal.

Na época ainda noiva de Leopoldo (Ivan de Albuquerque), logo Paulo começa a insistir em sair com ela, que aceita após um beijo roubado. Ele, então, termina com todas as outras namoradas enquanto ela rompe com o noivo, iniciando após A Conquista um relacionamento moderno em cinco partes: “Primeiras consequências”, “O bôlo”, “A reconciliação”, “Outro bôlo” e “Uma revelação”. Entre altos e baixos, traições e crises depressivas, Paulo percebe estar apaixonado por Maria Alice, e assim preferir ela a Todas as Mulheres do Mundo.

Com forte influência da Novelle Vague francesa, o filme tem um quê entre o realista e o inovador. Tem semelhanças identificáveis com dois filmes anteriores: Um Homem e Uma Mulher (Un Homme et Une Femme) de Claude Lelouch, do mesmo ano, e Uma Mulher Para Dois (Jules et Jim) de Truffault, de 1962, ambos abordando histórias de relacionamentos não convencionais entre homens e mulheres. Ao contrário dos filmes franceses em que é inspirado, o brasileiro é dinâmico, uma mistura dos fortes diálogos das grandes screwball comedies estadunidenses, principalmente de Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960), com a finesse da sensibilidade dos franceses, acrescentando o humor cotidiano que vem da “ginga” ou “borogodó” brasileiros.

Todas as Mulheres do Mundo é um exercício sociológico que tenta esmiuçar pela visão masculina a revolução sexual das mulheres dos anos 1960. A independência feminina da época, escancarada e oposta à das gerações anteriores, pegou uma leva toda de homens de surpresa, sem poder mais se espelhar no comportamento de seus pais. Era preciso inventar um novo jeito de se relacionar, um novo viver social. O filme aborda esse novo viver sem julgamentos ou voyeurismos, se inserindo nele e aproximando o espectador da vida desses casais.

Maria Alice e Paulo

É certo que muitas mulheres antes já haviam sido sexualmente ativas e independentes no mundo, e a instituição do matrimônio por séculos se mostrava apenas como uma sugestão — é só observar as leis matrimoniais de antes do século XIX e começo do XX —, mas essa popularização da quebra com o patriarcado para exercer sua sexualidade, sem que fossem mal vistas e sem precisar estar ligadas a um homem, se iniciou realmente a partir dos anos 1960 com a revolução sexual. Levaria bons 20 ou 30 anos para que o assunto fosse abordado de forma explícita e mais popularizada no cinema ou na televisão pela perspectiva feminina em primeira pessoa, mas Todas as Mulheres do Mundo nos dá um pequeno vislumbre das mulheres independentes da década.

“O que uns olhos têm que outros não têm? O que um sorriso tem que outros não têm?”

Recheado de belas falas sobre Maria Alice, a mais solar das mulheres, e com citações apaixonantes, é impossível terminar o filme sem que se tenha a sensação de ter tido, o próprio espectador, um caso amoroso com a personagem, que se funde à atriz de forma incomparável. Leila Diniz tinha apenas 21 anos quando o filme foi gravado e 17 quando iniciou o relacionamento com o diretor Domingos Oliveira, de quem já havia se separado em 66. Já ele, tinha 25 quando a conheceu; Paulo José tinha 29 ao interpretar Paulo.

Leila foi símbolo da liberdade sexual da época, chocando alguns, apoiada por outros, imortalizada nos filmes como a doce moça sensual, exibindo uma sensualidade quase inocente. Essa inocência sensual talvez se dê por, desde cedo, antes do final de sua adolescência — com todas as restrições e mudanças do significado e uso do termo da época para hoje —, homens já colocarem nela a carga sexual que teria até o final de sua curta vida. Aos 20 anos ela era apenas uma mocinha, mas para todos os homens do Brasil já poderia ser considerada um “mulherão”, desejada e desejável.

A importância da revolução sexual dos anos 1960 não pode ser apagada dos movimentos feministas e seus direitos conquistados ainda hoje reverberam no dia a dia de todas as mulheres. Mas é possível indagar até que ponto foi uma revolução verdadeiramente voltada para mulheres ou apenas um satisfazer de desejos masculinos. Afinal, a quem interessa ver os seios de Leila Diniz em primeiro plano eternizados em película, enquanto a bunda de Paulo José é escondida por truques de câmera e cortes de tomada?

O filme prega uma igualdade que não existia, pois a mulher ainda era vista como objeto sexual, seu corpo livre para ser olhado por todos e qualquer um, independente se ela queria ou não, mudasse de ideia mais tarde ou não. A falsa sensação de liberdade e igualdade sexual ainda era regida pelo patriarcado e mesmo hoje, essa ideia de igualdade é falsa.

Para a época, tratar a nudez e sensualidade de Leila de forma natural era a própria revolução popularizada nas salas de cinema do país. Hoje em dia, meio século depois, é possível questionar o quanto essa revolução ajudou ou atrapalhou as causas feministas. Acabamos chegando à conclusão de que, se não fosse por ela e outras suas contemporâneas, talvez as mulheres fossem mais reprimidas, mas também, se não fosse por elas, homens não teriam tantas expectativas e preconceitos em como mulheres “liberais” devem agir sexualmente. Talvez ainda hoje nada tenha mudado, pois alguns acreditam que Maria Alices “não são para casar”, embora Maria Alice tenha tido dois noivos durante a trama.

Todas as mulheres do mundo - o filme

Ao final do filme, Paulo descobre uma nova forma de felicidade e paixão: a família com Maria Alice. A vida é uma constante mudança, e o que ele não imaginava poder trazer felicidade, ao final pode ser exatamente o que o faz feliz. Paulo muda de perspectiva com relação ao casamento e, apesar do contraste das festas do início e do final serem gritantes em estética, são iguais na felicidade e entusiasmo apresentadas pelo personagem. Domingos de Oliveira afirmou que o longa foi uma tentativa de reconquistar Leila Diniz após a separação. Isso fica claro com o final esperançoso, quase utópico, em que o espectador tem a certeza que o mulherengo se comprometeu na fidelidade do casamento até o final de sua vida.

O filme, mais sobre Maria Alice que sobre Paulo, difere de seu remake em perspectiva. Sem o mesmo charme, o seriado Todas as Mulheres do Mundo, concebido por Jorge Furtado e com ideia inicial de Maria Ribeiro, nos apresenta a vida de Paulo afastada de Maria Alice. Enquanto o filme nos traz uma exaltação genuína à Maria Alice/Leila Diniz, o remake focado no Paulo de Emílio Dantas parece se esvaziar de significado. Sophie Charlotte, por mais interessante e boa atriz que seja, é incomparável à legitimidade de Leila Diniz. A simplicidade de Maria Alice dos anos 60 não se iguala ao ar clássico da personagem de Sophie, que nos distancia da personagem.

O refinamento do seriado faz com que o principal apelo do filme se perca: sua popularização. Apesar do roteiro idêntico, palavra por palavra, ao filme, a série se intelectualiza demais, com uma fotografia limpa, lembrando as novelas cariocas que se passam na Zona Sul nos final dos anos 1990 e começo dos 2000, mais especificamente no Leblon e Ipanema. O filme, apesar de também ser caracterizado como tipicamente carioca, tem um quê alienante e despolitizado que dá um destaque único, quase atemporal, à história, nos fazendo esquecer por momentos onde e quando se passa. Pode ser no Rio de Janeiro em 1966/67 ou em São Paulo, Brasília, Curitiba de 2019.

Engraçado, um tanto absurdo, e contendo até mesmo quebras da quarta parede com Paulo e Maria Alice olhando diretamente para a câmera, o longa nos traz uma leveza necessária para contar uma história de amor que não é tão leve: um casamento fracassado. No filme, claro, esse casamento não termina, continua, mas não sem antes ter passado por provas humanas, problemas profundos e reais. A traição de Paulo e a morte de Leopoldo, que acarreta uma crise depressiva em Maria Alice, são assuntos que tiram o filme de sua alienação habitual, tentativas de mostrar uma profundidade sem deixar o tom da película pesado.

Se levando a sério demais, a série Todas as Mulheres do Mundo se opõe ao longa. Com a fotografia e a escalada dos roteiros dentro de seus episódios, quem assiste espera que alguma coisa importante aconteça ali. Uma morte, uma briga séria, até mesmo um “quebra pau”. Talvez por lembrar muito o estilo novelesco, o espectador treinado espera que algo mais sério aconteça, o que acaba frustrando pois, além de Paulo transar com mulheres diferentes a cada episódio (mais de uma em alguns episódios), nada mais acontece.

Com dois personagens masculinos obcecados por mulheres que não querem estar com eles — Paulo com Maria Alice, Cabral (Matheus Nachtergaele) com Glorinha  (Priscilla Rozenbaum) —, a personagem mais interessante do seriado acaba sendo Laura (Martha Nowill), relegada a um papel secundário, mais um degrau na escada de Paulo para Maria Alice (escada da qual ele se joga ao chegar ao topo). Mãe solteira por opção, só sabemos de suas mazelas amorosas quando relacionadas diretamente a Paulo. Não sabemos sua profissão, nem suas dúvidas ou angústias. Não sabemos nem como conheceu o homem com quem termina a temporada.

Todas as mulheres do mundo - a série

Para que o remake tivesse a mesma relevância do filme no momento atual era necessário apenas uma simples mudança: a orientação sexual de Paulo. Ao mostrar um mundo pouco explorado no audiovisual da TV aberta brasileira, o seriado se igualaria em relevância ao original. Não era necessário grandes cenas chocantes, mas a mesma história de um Paulo gay ou bissexual já sairia da mesmice que a série nos apresenta. A mudança de gênero do personagem também seria válida, algo como um “Todos os Homens do Mundo”, embora a atenção para não julgar a possível Paula tivesse que ser dobrada. Seria fácil cair no lugar comum da mulher promíscua e hipersexualizada, o que o filme evita com maestria, talvez mais por uma quase adoração a Maria Alice/Leila Diniz, do que por mérito do autor; se Paula fosse lésbica ou bissexual, o cuidado teria que ser triplicado.

A mudança de etnia dos personagens principais também daria uma nova perspectiva à história, trazendo não só uma relevância maior, mas se equiparando ao que o filme fez 50 anos atrás. Também haveria a necessidade do cuidado em não cair na hipersexualização de corpos negros, por exemplo, ou na fetichização de asiáticos. O autor da série talvez tenha resolvido partir para um caminho narrativo “mais fácil”, no qual não teria que pensar nessas questões sociais.

Para uma série chamada Todas as Mulheres do Mundo, em que o personagem principal se envolve com pelo menos 10 mulheres diferentes em uma temporada de 12 episódios, Paulo realmente só tem um único tipo: branca, cabelos castanhos, classe média-alta, com personalidades estereotipadas. Ao todo, o personagem se envolve apenas com duas mulheres negras, nenhuma descendente de asiáticos.

Apesar do filme ser sobre a independência sexual de mulheres brancas, 50 anos depois a série propaga a mesma narrativa, talvez agora de forma mais superficial ainda. O vazio do remake nos mostra o quanto, como produtor de audiovisual, o país ainda não conseguiu acompanhar as novas gerações e suas questões sociais. Parado no enredo do homem heterossexual, branco, cis, solteiro e mulherengo, o seriado é exemplo de estagnação e repetição incansável da mesma narrativa.

É preciso rever a essência das novas histórias a serem contadas, suas relevâncias e representações das novas gerações. É necessário, de forma urgente, que se comece a investir nacionalmente em novos tipos de narrativas, novos personagens principais e novos talentos. E é necessário que se faça com que esses novos produtos cheguem ao público em geral, na TV aberta, com o maior acesso possível de espectadores. A mesmice não tem mais vez no cenário atual do audiovisual brasileiro e faz com que a estranheza a novas histórias pertença e deva ficar no passado.