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Soccer Mommy e a reinvenção da Cool Girl em 2018

Entre 2012 e 2014, no início da renascença feminista na internet, a Problemática da Cool Girl era uma das discussões favoritas entre quem escrevia sobre feminismo e cultura pop. Foi a época em que Girls parecia revolucionária e Amy Schumer genial. Perdemos bastante tempo debatendo a respeito da dicotomia forjada entre Jennifer Lawrence, a cool girl do momento, e Anne Hathaway, mulher mais odiada da época, e gastamos muitos caracteres com a pergunta “seria Malévola um filme feminista?” De lá até aqui, o mundo e a internet deram voltas o suficiente para que discussões como essas pareçam ultrapassadas, o que poderia ser algo bom se hoje não dedicássemos nossas análises a descobrir o que fazer diante da distopia da vida real que estamos vivendo. É como se não tivéssemos aprendido nada depois de tanta problematização. Será? Pensar sobre Cool Girls e o seu legado em 2018 me faz acreditar, pelo menos um pouquinho, que aprendemos algo e hoje somos melhores.

Em um dos capítulos de Garota Exemplar, publicado em 2012, um dos muitos excelentes monólogos de Amy Dunne é sobre a Cool Girl, ou a Garota Legal em sua versão traduzida. Esse arquétipo de personalidade feminina não é uma invenção de Gillian Flynn, mas a autora nos entrega o mais próximo que teremos de uma definição acadêmica desse tipo de mulher que nunca vamos ser. E quem acredita ser provavelmente está mentindo, para os outros e para si, porque a Garota Legal, assim como a Manic Pixie Dream Girl — sua irmã mais velha do início dos anos 2000 —, não existe.

“Naquela noite da festa no Brooklyn eu estava interpretando a garota que tem estilo, a garota que um homem como Nick quer: a Garota Legal. Os homens sempre dizem isso como o elogio definidor, não é? Ela é uma garota legal. Ser a Garota Legal significa que eu sou uma mulher gostosa, brilhante, divertida, que adora futebol, pôquer, piadas indecentes e arrotos, que joga vídeo game, bebe cerveja barata, adora ménage à trois e sexo anal, e enfia cachorros-quentes e hambúrgueres na boca como se fosse anfitriã da maior orgia gastronômica do mundo ao mesmo tempo em que de alguma forma mantém um manequim 36, porque Garotas Legais são acima de tudo gostosas. Gostosas e compreensivas. Garotas Legais nunca ficam com raiva. Apenas sorriem de uma forma desapontada e amorosa e deixam seus homens fazerem o que quiserem. Vá em frente, me sacaneie, não ligo, sou a Garota Legal.”

Se não é uma invenção masculina, a Garota Legal é uma construção de tudo aquilo que nos ensinam que os homens querem, a mulher que fingimos ser quando queremos agradar, e a mulher que nos ameaça quando nos sentimos inseguras. A Cool Girl é como um fantasma que nos assombra tomando a forma de tudo aquilo que sentimos que nunca vamos ser quando pensamos que não somos suficientes, ou uma máscara que vestimos para nos sentirmos melhores que as outras. Para se manifestar na nossa vida, a Garota Legal precisa suprimir nossa verdadeira personalidade, seja ela qual for — dá pra gostar de vídeo game, cerveja e piadas de pum, mas a existência de mulher ou ser humano algum se resume a isso —, e nos transformar numa versão sem arestas, que não ocupa espaço e não incomoda, que está ali pra atender às expectativas do outro.

Na letra de “You Belong With Me”, a rival de Taylor Swift é uma garota que usa salto e saia curta enquanto ela usa tênis e toca na banda do colégio. Seu eu-lírico acredita ser a verdadeira Garota Legal passando despercebida que ao mesmo tempo, no fundo, queria ser a líder das cheerleaders, que é sinônimo de ter a atenção do garoto. Em “Ela Só Quer Paz”, o rapper Projota descreve quem é essa Garota Legal para quem ele dedica todas as suas letras: “Ela não cansa, não cansa, não cansa jamais/ Ela só dança, dança, dança demais/ Ela já acreditou no amor, mas não sabe mais/ Ela é um disco do Nirvana de 20 anos atrás”. A Garota Legal é também a negação de todos os sentimentos e comportamentos associados ao feminino que são desprezados pela sociedade e pelos homens por serem coisa de mulherzinha; seu maior defeito é ser desastrada e andar de coque frouxo por aí. Não pode sentir, não pode se apegar, não pode reclamar, não pode se importar.

“Não sou uma dessas”, nós dizemos; “você não é como as outras”, eles dizem. Sophie Allison, o nome por trás de Soccer Mommy, diz algo diferente: “Eu quero ser legal assim”.

Em “Cool”, segundo single de Clean, álbum de estreia da artista lançado no início do ano, Sophie canta a respeito de Mary, uma Garota Legal de coração gelado que não gasta seu fim de semana pensando em garotos, mas se divertindo com os amigos e fazendo uso de drogas recreativas (é a primeira vez que vejo “maconheira” ser usado como elogio com uma doçura tão sincera). No universo de Soccer Mommy as músicas basicamente giram em torno de relações amorosas heterossexuais, mas os garotos nunca estão no centro e não sabemos muita coisa sobre eles, apenas que são imbecis. A letra que mais se aproxima da idealização romântica que esperaríamos de um trabalho sobre amores, ainda que frustrados, é direcionada a uma garota, a Garota Legal. Se antes ela era uma rival a ser combatida, em 2018 Sophie Allison subverte e atualiza a narrativa ao transformá-la em alguém que ela quer ser — não para conquistar um cara que não está nem aí, mas sim para devorar quem surgir pela frente e tratar garotos como brinquedos.

Existe aí, claro, uma licença poética para misandria e Soccer Mommy confia na inteligência de seu público para interpretá-la como tal. “Cool” é pura reparação histórica indie por todas as vezes que cogitamos nos transformar em alguém saída de uma letra do Weezer para chamar a atenção de algum homem magrelo e desajustado de calças justas e cabelo bagunçado. Ao descrever sua Garota Legal, o tom não é muito diferente do que Taylor Swift — que Sophie já declarou ser uma de suas maiores influências — usa para falar sobre os garotos pelos quais se apaixonava em seus primeiros álbuns. Em vez de “Você tem um sorriso que pode iluminar uma cidade inteira”, no entanto, temos “Ela vai quebrar seu coração e roubar sua alegria, como uma criminosa” e isso é dito como se fosse um traço tão sedutor e apaixonante como o sorriso da pessoa amada. “Last Girl” é dedicada à ex-namorada do xodó de Sophie, e essa mulher também não é vista como inimiga, mas sim alguém que a Allison admira: “Adoro a forma como ela se maquia/ Deve ser ótimo acordar do seu lado”.

As composições de Sophie Allison são afiadas e sinceras, misturam emoção e ironia, e um de seus grandes talentos é escrever como se fosse fácil construir narrativas que parecem saídas de um Tumblr secreto, de tão conectadas com a linguagem de garotas que cresceram na internet compartilhando com estranhos, sempre em tom hiperbólico, histórias de crushes, desilusões amorosas justificadas pela astrologia e comentários autodepreciativos. Embora fique claro que Soccer Mommy não tem lá tanta admiração pelos homens, não dá pra fugir do fato que sua autoestima não é das melhores, o que em 2014 poderia colocá-la longe de um ideal de heroína feminista. Sua Garota Legal também existe em oposição à garota normal que a artista representa, e assumir essa posição não é um problema: suas confissões de fragilidade são justamente o que a humanizam e a tornam mais forte. Ao longo de Clean, Sophie sente (“Scorpio Rising”), se apega (“Still Clean”), reclama (“Flaw”) e se importa (“Skin”); ela é afetada por seus relacionamentos, por não corresponder ao ideal de garota que é objeto de desejo dos meninos que gosta, por não se amar e não cumprir com a palavra de ordem das supostas mulheres fortes, mas acreditar que esses aspectos tiram seu poder — enquanto artista, compositora e protagonista de suas letras — é tão ultrapassado como o arquétipo da Garota Legal analisado de forma isolada.

Aprendemos nesses anos que podemos e devemos ser mais complexas que isso e a força está em abraçar esses desconfortos e contradições que nos fazem inteiras, pois assim tomamos rédeas da nossa própria narrativa. De um jeito drástico, é isso que Amy Dunne também faz ao assassinar sua Garota Legal interior.

A faixa seguinte do álbum é “Your Dog”, em que ela diz não querer ser feita de cachorrinho por ninguém: “Não sou um acessório para você usar/ Quando estiver sozinho ou confuso/ Quero um amor que me deixe respirar/ Estou sufocando na sua coleira”. Ou seja, mesmo sofrendo ao se dar conta de que não é amada como gostaria depois de se entregar, essa percepção mostra que ela sabe exatamente quem não quer ser, onde não quer ir, o que não vai aceitar. Sophie quer ser uma Garota Legal não para se anular em nome de um garoto, mas para tirar o poder dos homens de defini-la e de dominar sua vida. Me parece um bom início de jornada.

Fora das composições e na vida real, Soccer Mommy também está trilhando uma carreira interessante trazendo frescor ao indie ao lado de nomes como Lindsey Jordan, do Snail Mail, e Lucy Dacus. Além da sonoridade, essas artistas têm em comum o fato de serem extremamente jovens e nesse início de vida adulta trazem na bagagem uma perspectiva de quem cresceu e se formou vendo alguns paradigmas culturais sendo desconstruídos e transformados, como o mito da Garota Legal e tantas outras representações limitantes de feminilidade que afetaram de forma mais profunda mulheres educadas pela cultura pop das décadas de 80, 90 e início dos anos 2000. Aos 21 anos, Sophie Allison saiu esse ano em turnê com o Paramore, abrindo os shows da banda que ela cresceu ouvindo, tendo na vocalista Hayley Williams uma importante referência — inclusive uma das poucas da época — do que é ser uma mulher à frente de uma banda.

Aos 29 anos, Hayley Williams não teve a mesma sorte e cresceu com a ideia de que era importante “não ser como as outras”, principalmente ao navegar sozinha um meio hostil e predominantemente masculino como a cena da qual o Paramore faz parte. Em entrevista ao Stereogum, a artista falou sobre como cresceu cercada por homens, sendo “uma dos caras”, e a necessidade que sentia de ser mais durona que todos para provar seu valor. De longe, Hayley pode ser vista como uma Garota Legal, mas ela mostra que essa definição não é tão simples quanto parece.

“Passo muito tempo com homens e isso realmente afetou a noção de quem eu sou e o que devo às pessoas. Não importa o quão pesadas fossem as bandas que tocavam com a gente, não tinha um show em que eu não pegava mais pesado que todos os vocalistas porque eu achava que tinha que ser melhor que eles para provar o meu valor, porque as pessoas olham para mim em cima do palco e veem uma garotinha. E deve ser engraçado ver uma garotinha tentar ser super durona ou algo assim, mas não sei o que eu parecia. Tudo que sei é o que eu via através dos meus olhos. Então acho que gostaria de ter aprendido antes que isso, na verdade, é uma força incrível. Minhas diferenças do resto dos meus colegas de banda são o que fazem não só aquilo que eu sou, mas o que faz a banda ser o que é.” (tradução nossa)

Em setembro desse ano, Hayley Williams anunciou que não tocaria mais “Misery Business”, um dos maiores sucessos do Paramore, porque é uma música que não reflete mais as coisas em que acredita. Na letra, que já era criticada há alguns anos (provavelmente graças à renascença feminista na internet), ela ataca a mulher que “roubou” seu amor e constrói essa rivalidade entre uma outra que usa do corpo e da sexualidade para conseguir o que quer enquanto Hayley, a própria Garota Legal — que pode ser tanto a algoz como a vítima — sai perdendo o homem, mas mantém a autenticidade. Ao anunciar a aposentadoria da canção, ela disse: “Isso vai para cada decisão ruim que nos trouxe até aqui. (…) Nós assumimos e crescemos”.

Gostaria de chamar atenção para o simbolismo do que representa o fato de hoje Soccer Mommy abrir os shows da banda, ela que é uma herdeira direta do Paramore, produto de uma nova geração que internalizou a energia e a garra das canções para fazê-las melhores sem negá-las. Sophie Allison, Hayley Williams e tantas garotas em cima dos palcos estão construindo hoje, juntas, uma cena em que as mulheres têm mais voz e espaço para ser inteiras. Quem disse que não aprendemos nada? Em 2018, eu quero ser legal como elas.

2 comentários

  1. Já estou correndo para ouvir e tirar minha conclusões sobre as músicas! Me identifiquei muito com esse texto, me autorizei a estudar sobre feminismo faz pouco tempo e cada vez mais sinto que faço descobertas transformadoras. Esse texto me fez enxergar algo que estava dentro de mim e eu não dava atenção. Eu sempre fui perseguida pela “Garota Legal”, muito por isso me perdi em quem eu sou pois não era a patricinha bonitona que todos os caras iam atrás, mas também não era a ” Garota Legal” como bem descreveram no artigo. Hoje estou no caminho de me autorizar mais ser quem eu sou ( e a descobrir esse “EU”) e que o fato de determinada coisa ser boa não significa que outra seja automaticamente ruim.

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