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Simone Biles, Rebeca Andrade e a saúde mental no esporte

A memória mais marcante que eu tinha de Simone Biles era de um vídeo de sua tentativa de fazer um movimento inédito na ginástica, o salto triplo-duplo, com um narrador dizendo “lá vai ela, nunca tentou-se fazer isso em uma competição antes” e, então, Biles executando perfeitamente o movimento e surpreendendo o mundo inteiro. Mas não tanto assim, afinal ela é a GOAT (greatest of all time, “a melhor de todos os tempos”, em tradução livre) e estabeleceu para o mundo todo o seu talento e trabalho duro ao quebrar recordes mundiais um após o outro, entre elas a conquista de cinco medalhas no Jogos Olímpicos do Rio 2016.

Recentemente, no entanto, após as Olimpíadas de Tóquio 2020, Simone me marcou mais do que pelas suas performances, mas também pela sua atitude fora do tablado. Com a pandemia do coronavírus todo o mundo foi afetado e a saúde mental se tornou cada vez mais um tema debatido amplamente devido a necessidade do isolamento social. Para os atletas o período ainda trouxe mudanças drásticas no que se refere ao modo de treinar, o que além de gerar uma preocupação com o desempenho, às vésperas da maior competição do esporte mundial, adicionou uma pressão extra na já sobrecarregada rotina, sempre regada a autocobranças.

Para Simone, foi um período turbulento. Após fazer história na última olimpíada, a pressão sobre ela aumentou, a perfeição cobrada de atletas de alto nível cresceu e as comparações se multiplicaram, a ponto de ela precisar estabelecer que não seria “a próxima Usain Bolt ou Michael Phelps” mas sim “a primeira Simone Biles”. Com o adiamento em um ano das competições, Biles acabou sofrendo ainda mais com o peso colocado indevidamente sob seus ombros. Em entrevista ao The New York Times, ela afirmou que chorou quando recebeu a notícia da mudança de data, já que isso alongaria sua presença na equipe norte-americana sob fortes holofotes, e que estar dentro do ginásio fazendo aquilo pelo que treinou toda a vida não a fazia mais feliz. “O momento que estou mais feliz é quando estou fora daqui.” Os sinais claros de burn out estavam todos ali.

Com o início das competições, Biles não correspondeu ao nível de suas performances anteriores logo em sua primeira apresentação, o que, naturalmente, no mundo em que vivemos, significou uma enxurrada de comentários cheios de desdém e julgamento nas redes sociais e manchetes nada responsáveis. Em sua segunda vez no ginásio em Tóquio, dessa vez na disputa pela medalha de ouro por equipes, Biles arriscou um salto sobre a mesa em que ela deveria girar duas voltas e meia no ar, no entanto acabou por completar apenas uma volta e meia. Seu semblante após a apresentação deixava claro a decepção com sua performance.

Logo após, em comunicado oficial, a equipe anunciou que Simone estaria se retirando da competição por equipes e ainda seria anunciada em momento oportuno sua participação ou não nas finais individuais. Ali a história começou a ser feita por Simone, mas não do mesmo jeito com que ela se acostumara a fazer durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016: agora, a atleta mostrava que mesmo alguém tão talentosa, cheia de conquistas e centrada também enfrenta problemas de saúde mental e tem seu desempenho afetado por conta disso.

Em coletiva após o anúncio, a atleta deixou bem claro que tomou sua decisão pensando não apenas na sua saúde mental, mas também física, uma vez que a dificuldade em completar os movimentos de suas coreografias provém dos chamados “twisties” (também conhecidos como perda momentânea da noção espacial), uma condição que vem afetando seus treinos e é comum em atletas que estão sob grande estresse e pressão.

“At the end of the day, we’re not just athletes or entertainment, we’re human too and we have real emotions.”

“No fim do dia, nós não somos apenas atletas ou entretenimento, somos humanos também e temos emoções.”

Foi com esse discurso que Biles cravou uma nova memória marcante na minha mente. Ela nos fez lembrar de forma contundente que mesmo que façam coisas que, aos nossos olhos, parecem impossíveis, como dar giros incrivelmente altos no ar e pousar perfeitamente, ainda assim esses atletas são humanos, com emoções, que se afetam como qualquer um de nós com as cobranças e pressão. Eles não são uma máquina de competição, como por vezes somos levados a acreditar, e tem seu bem-estar colocado de lado em detrimento de resultados e quebra de recordes.

Em um cenário repleto de pressão, exaustivas horas de treino, disciplina rígida e cobranças altíssimas, ou seja, um prato cheio para que o emocional fique abalado, a presença de psicólogos e psiquiatras ainda não é tanta quanto deveria apesar de, claro, existir. Lembro, por exemplo, de ficar chocada anos atrás ao descobrir que a CBF não investe em trabalho psicológico para a seleção brasileira de futebol masculino ao assistir uma partida em que os jogadores estavam claramente abalados em campo e sem preparo emocional nenhum após sofrerem gols do adversário.

A história da jogadora brasileira de futebol feminino, Cristiane, também acende um alerta para a importância de se olhar com cuidado e acolhimento para os atletas e tornar o foco no preparo da mente uma prioridade assim como do físico. Após a derrota do Brasil na Olimpíada de 2016 , Cristiane seguiu para a França, onde realizaria o sonho de jogar pelo Paris Saint-Germain, mas toda a expectativa colocada em cima da seleção feminina, que mais uma vez não conseguiu alcançar o lugar mais alto do pódio, e que sofre recorrentemente com falta de incentivo, investimento e visibilidade, mas nunca de cobranças, começaram a pesar em Cristiane, que desenvolveu depressão. Em conversa com o treinador do PSG, Patrice Lair, a atleta foi acolhida e pode cuidar de si mesma com apoio do clube. A batalha certamente é difícil, mas as chances de vencê-la são maiores com as ferramentas e apoio certos.

Inúmeros outros esportistas nos últimos anos têm se sentido mais confortáveis em trazer à tona sua luta com a mente e como viver em um estado de insegurança, tristeza profunda e sabotagem quando se é um atleta de alto rendimento é um peso enorme a se carregar e para o qual não se encontra muito apoio ou alívio. Diego Hypólito, da ginástica, o nadador brasileiro Bruno Fratus, que em Tóquio 2020 admitiu ter desenvolvido depressão após perder medalhas na Rio 2016, a judoca Rafaela Silva e o ginasta americano Sam Mikulak, são alguns dos atletas que vieram a público contar suas histórias. Em matéria publicada no Estado de São Paulo, Mikulak disse: “por muito tempo, fiquei ressentido com minhas experiências olímpicas anteriores porque ditei minha felicidade com base na possibilidade de sair ou não com uma medalha. O fato de não ter alcançado isso fazia eu me odiar.”

O fato é que, ao trazer para a luz do dia as dificuldades que estava enfrentando, colocar o assunto em voga e ainda mostrar que existe outras opções além de sofrer em silêncio e colocar a saúde mental e física em risco, Simone Biles ajuda a fomentar e alavancar uma discussão que vinha evoluindo aos poucos. A ginástica competiu apenas na final individual da trave, aparelho em que sua integridade física não estaria em grande risco em decorrência dos twisties, já que os movimentos típicos do aparelho não “engatilham” tanto a condição. Na sua conta do Instagram, e também em entrevistas, Simone Biles foi honesta quanto a sua situação: “às vezes, sinto como se tivesse o peso do mundo sobre as minhas costas. Faço parecer que a pressão não me afeta, mas é difícil.” Varrer o debate e a sombra dos problemas mentais para debaixo do tapete não traz benefícios nenhum para os atletas, seu rendimento, bem-estar ou para o cenário esportivo como um todo.

A decisão de Simone, claro, gerou críticas e comentários de pessoas duvidando de sua força e capacidade. Aos olhos do público os atletas precisam ser sempre fortes, prontos para suportar de todas as maneiras as ondas e tempestades que insistem em lhe assolar. Para profissionais de saúde mental, no entanto, a atitude da ginasta demonstra autoconhecimento e maturidade ao reconhecer seus limites e ter a coragem de dar um passo tão importante quanto reavaliar a participação em um evento tão grandioso. Saber quando parar, quando dizer “não” e reconhecer que a sobrecarga emocional que nos acompanha quase que diariamente em um mundo tão cheio de imediatismos, perfeccionismos e exigências, é essencial para que consigamos avançar com uma qualidade de vida justa e digna.

“Algumas pessoas vão encarar a desistência como falta de vontade ou covardia, mas na verdade é um ato de coragem muito grande expor a dificuldade, a fraqueza, a saúde mental ao público.”, destaca a psiquiatra Lívia Castelo Branco em entrevista à BBC. Na maioria da vezes o medo de desistir, reconhecer que não se é capaz de seguir em frente e de expor os motivos por detrás de tal decisão, ainda mais quando eles são emocionais, isto é, “abstratos”, diferente de um machucado físico, visível para todos, vem do receio de quebrar expectativas, as próprias e da aqueles que se ama, e também do peso que se colocou em cima da sua trajetória, seja por você mesmo ou pelo outro — como é o caso de Simone Biles, que por ser um fenômeno tinha sua vitória nas competições de ginástica vistas como obrigatórias para levar os Estados Unidos ao pódio. Daí o peso do mundo nos ombros ao qual ela se refere.

“Acho que a saúde mental é mais importante nos esportes nesse momento. Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos”, completou a atleta em seu Instagram, reafirmando a importância de em momentos como esse colocar seu bem-estar em primeiro lugar. Isso vale para uma campeã olímpica como ela ou alguém como você, que lê esse texto.

Antes de Biles, o tema já estava fervilhando no mundo esportivo devido a Naomi Osaka, que com apenas 23 anos é a tenista número 2 do mundo, ter desistido do importante torneio de Roland Garros. Com relatos de quadro de depressão e ansiedade, a atleta se recusou a participar das entrevistas coletivas pós-jogos, que mais parecem uma tortura psicológica apenas por entretenimento do que um meio eficaz de obter informações ricas e relevantes dos atletas. Com isso, a organização do torneio a ameaçou de expulsão e multou Osaka no valor equivalente a 75 mil reais. A atleta então decidiu desistir do torneio.

No início de julho, Naomi publicou um artigo na revista Time, da qual foi capa, pedindo por mais empatia e respeito e passando a mensagem contundente de que “está tudo bem não estar bem”.

“Each of us as humans is going through something on some level. (…) I do hope that people can relate and understand it’s O.K. to not be O.K., and it’s O.K. to talk about it. There are people who can help, and there is usually light at the end of any tunnel.”

“Cada um de nós, como humanos, está passando por algo em algum nível. (…) Eu espero que as pessoas possam se identificar e entender que está tudo bem em não estar bem, e que é ok falar sobre isso. Há pessoas que podem ajudar, a geralmente existe luz no fim do túnel.”

Apesar de decisões como a de Naomi e Simone ainda gerarem comentários questionando, o caminho percorrido até aqui por outros atletas e profissionais possibilitaram que elas tivessem a escolha de tomar a decisão de dar um passo a trás. Escolha que a ginasta norte-americana Dominique Moceanu não teve nos Jogos de 1996, quando tinha apenas 14 anos, e sofreu uma fratura por estresse na tíbia, chegando a cair de cabeça na trave ao realizar os movimentos no aparelho. Em relato à BBC, a ex-atleta comentou como ver Biles dizendo “não” a enche de esperança para um futuro melhor e na continuidade do debate acerca da saúde mental.

“A decisão de Simone me fez pensar naquela época e em como não havia compaixão, preocupação, e não tinha absolutamente nenhuma voz. Eu não pude dizer que estava com dor até desmaiar. (…) Eu nunca pude dizer nada. Eu nem me importava com meu bem-estar, para ser honesta, porque ninguém se importou com isso nunca.”

Se a ginasta norte-americana e a tenista japonesa chamaram a atenção para a necessidade de respeitar seus limites, a ginasta brasileira Rebeca Andrade surpreendeu a todos não só por sua performance dentro do tablado, onde conquistou uma medalha de prata no individual geral e uma de ouro no salto, mas também pela serenidade, tranquilidade e equilíbrio antes, durante e depois das apresentações.

O estado de espírito, é claro, não foi atingido do dia para noite, especialmente com o histórico da atleta, que passou por três cirurgias no joelho e na última realizada, em 2019, pensou até em desistir da carreira de ginasta. Rebeca trabalha há nove anos com a psicóloga Aline Wolff, que também integra a área de preparação mental do Comitê Olímpico do Brasil (COB), e os frutos vem sendo colhidos aos poucos, junto com o amadurecimento e resiliência da atleta.

O caso de Rebeca só mostra o quão primordial é contar com acompanhamento psicológico, já que todos estamos sujeitos a passar por eventos traumáticos e enfrentar dificuldades nas mais diversas áreas da vida, sendo essencial aprender a lidar com o turbilhão de emoções. Iniciar um processo terapêutico é o primeiro passo para lidar bem com as adversidades e dificuldades. Isso não significa, claro, que a pessoa esbanjará a serenidade de Rebeca em 100% do tempo — além isso, também é injusto colocar o fardo de bastião da calma e tranquilidade em cima da atleta a partir de agora —, afinal, a terapia é um processo longo e trabalhoso, com altos e baixos, e poder falar sobre ela e se sentir segura e acolhida para tomar decisões, seja qual forem, é essencial para que avancemos, como Naomi e Simone nos mostraram com suas atitudes. Em entrevista à Folha, Wolff comenta:

“Os atletas sentiam que falar sobre isso era uma fraqueza. Não se dizia que atleta poderia cometer suicídio, deprimir ou ter um ataque de pânico durante a competição. Hoje, se fala, e isso é muito válido, porque acontece e temos que ter formas de dar suporte.”

É necessário destacar também que são três mulheres negras trazendo à tona uma conversa que por tempos foi — e ainda é — tabu, cada uma a sua maneira. Que esse assunto esteja sendo colocando em voga graças a elas, pertencentes a um grupo que sempre foi marginalizado e obrigada a ser cuidador dos outros e a “honrar” um estereótipo extremamente nocivo de força emocional, sem tempo para sofrimento, de “guerreira”, sem nunca receber um gesto de acolhimento e alívio de tarefas, só torna essa discussão ainda mais relevante, necessária e urgente.

“A medalha não garante felicidade. Isso tem que vir ao longo do processo. As pessoas precisam estar bem para render, o que contraria o modelo mais mecanicista em que tudo tem que ser muito duro e difícil. Quanto mais os atletas estiverem inteiros e felizes, mais os resultados virão”, é a mensagem final da psicóloga de Rebeca Andrade. E que pensemos nisso.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!