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Never Have I Ever e a saúde mental na adolescência

Quem procura por um entretenimento despretensioso quando começa a assistir Never Have I Ever, vai encontrá-lo com toda a certeza. Na saga de Devi Vishwakumar, interpretada pela sempre ótima Maitreyi Ramakrishnan, somos levados, pelos corredores de seu colégio do ensino médio, a situações hilárias envolvendo crushes platônicos (ou não) e um grupo de personagens tão diversos quanto possível. Além de Devi, a protagonista, também acompanhamos os dramas de suas amigas, Fabiola Torres (Lee Rodriguez) e Eleanor Wong (Ramona Young), dos crushes Paxton Hall-Yoshida (Darren Barnet) e Ben Gross (Jaren Lewison), e da própria família de Devi, a mãe, Nalini (Poorna Jagannathan), e a prima, Kamala (Richa Moorjani).

Todas as situações vistas na série saíram das mentes brilhantes de Mindy Kaling, conhecida por seus trabalhos em The Office e The Mindy Project, e Lang Fisher. Para além de todas as situações típicas de uma comédia young adult, com o despertar de Devi para diferentes situações em sua vida pouco ordeira, também acompanhamos o debate de assuntos importantes e pouco vistos em produções para adolescentes com a seriedade necessária. O roteiro de Never Have I Ever explora questões como o Transtorno de Estresse Pós-traumático e luto na adolescência de maneiras sensíveis e reais, não caindo no clichê de simplesmente passar a mão na cabeça de seus personagens ou de infantilizá-los, mas fazendo com que cada um confronte seus erros e aprenda por meio deles.

Essa, inclusive, é a trama que permeia toda a jornada de Devi durante a série. A adolescente costuma meter os pés pelas mãos em diferentes momentos e situações, envolvendo seus amigos, familiares e crushes em uma espiral de desentendimentos que normalmente são movidos por suas atitudes pouco ortodoxas ao lidar com suas emoções. Desde o falecimento repentino de seu pai, Mohan (Sendhil Ramamurthy), Devi vem lidando com sentimentos confusos que passam por culpa, raiva, saudade, e, claro, o luto em si. Sem saber muito bem como dar vazão a tudo que a aperta no peito, Devi decide canalizar suas energias buscando um namorado, imaginando que isso é o que falta em sua vida, mas sem se dar conta de que está procurando apenas um paliativo para lidar com a dor que sente. E é aí que entra Paxton. E, mais tarde, Ben. Embora Devi faça terapia desde o falecimento de seu pai e a paralisia que a acometeu após o traumático evento, a garota é resistente e prefere tomar as próprias decisões a ouvir conselhos razoáveis, e por isso, na segunda temporada da série, decide namorar os dois garotos ao mesmo tempo, sem que eles estejam de acordo com o arranjo, mesmo que todo mundo ao seu redor lhe diga o quanto isso é errado. Devi sabe que é errado, mas prefere pagar para ver.

O comportamento autodestrutivo de Devi é um sintoma de sua depressão, assim como a raiva. Em diferentes momentos das duas temporadas de Never Have I Ever vemos a protagonista explodir de tensão e ser chamada pelos outros de “Crazy Devi” (“Devi Doida”, em tradução livre). Devi batalha com seu temperamento explosivo em vários episódios da série e escuta seus colegas se dirigirem a ela pelo apelido maldoso, mas só se sente realmente ressentida com a alcunha quando Nalini o usa após uma discussão. Quando busca ajuda com sua terapeuta, a Dra. Jamie Ryan (Niecy Nash), perguntando se ela é, de fato, “doida”, a terapeuta diz que Devi está deprimida e lidando com a dor de ver seu pai morrer bem na sua frente, mas isso não a torna doida. A Dra. Jamie não suaviza para Devi, e estar deprimida não a isenta de todas as suas más ações, mas é um sintoma do real estado da saúde mental dela. No final do dia, Devi ainda é uma adolescente tentando lidar com uma dor gigantesca sem saber como verbalizar o que a machuca tanto.

Além da raiva que transborda de Devi, outro ponto abordado pela série é o estresse pós-traumático. Mohan faleceu devido a um ataque cardíaco durante uma apresentação de Devi com a orquestra da escola e, desde então, ela não consegue tocar harpa sem se lembrar dos eventos que culminaram na morte do pai. Devi frequentemente vê o pai em seus sonhos e tem conversas inteiras com ele a respeito de questões que a incomodam. O estresse pós-traumático é caracterizado como uma síndrome psicológica em que a pessoa revive algum acontecimento responsável pelo trauma, e embora Devi não se lembre de primeiro momento como de fato se deu a morte do pai, aos poucos ela se recorda das sensações e dos eventos, desbloqueando memórias de dor e sofrimento com as quais preferia não lidar.

Alguns dos sintomas do estresse pós-traumático são os ataques de raiva, evitar pensar ou falar sobre o evento que desencadeou o trauma, sentir culpa e ter pensamentos negativos a respeito de si mesmo — coisas que Devi faz o tempo todo durante a série. Devi passa a sofrer de paralisia das pernas logo após a morte de Mohan, o que também é outro sintoma relacionado ao estresse pós-traumático, visto que não há em Devi nenhuma outra condição clínica que justifique a paralisia. Ainda que a paralisia passe de uma hora para outra, mais especificamente quando Devi vê Paxton pela primeira vez, a garota ainda tem uma variedade de sintomas de TEPT, além dos já citados sonhos angustiantes recorrentes, memórias intrusivas e flashbacks intensos que soam muito como alucinações — neste caso, as conversas e sonhos vívidos com Mohan.

O também já mencionado comportamento autodestrutivo de Devi é outro sintoma da condição da garota. Lutando para lidar com seu trauma, ela se envolve em uma série de confusões imprudentes, desde manipular Paxton e Ben até espalhar acidentalmente um rumor sobre Aneesa (Megan Suri), a garota indiana que chega na escola e faz com que Devi se sinta ameaçada pelo fato da novata ser mais cool do que ela, além de Anessa receber as atenções românticas de Ben. Devi prefere se envolver em qualquer tipo de situação a falar sobre a morte do pai. “He’s dead, I was sad, there’s nothing to talk about” diz Devi para a Dra. Jamie Ryan em determinado momento, e isso é basicamente o lema da garota sempre que é confrontada a falar sobre o luto. Ao se envolver em drama após drama, Devi vai, sutilmente, colocando o assunto que importa de lado, varrendo para debaixo do tapete as coisas sobre as quais não quer falar e prefere não lidar.

Em casa, Devi também não consegue ser honesta a respeito de seus sentimentos. Embora ela e Nalini estejam passando pela dor da perda da mesma pessoa (que significava o mundo para elas), o distanciamento entre mãe e filha parece ser intransponível. Devi não parece entender como a mãe consegue seguir adiante sem Mohan — ainda que a garota não saiba, de fato, o que a mãe está sentindo e o quanto é dolorido para ela continuar sem o marido —, enquanto Nalini não compreende a dor que a filha carrega e o fardo de culpa do qual não consegue se desfazer. Para Devi, era Mohan quem mantinha a família unida, e sem ele por perto para apaziguar os ânimos entre ela e a mãe, não parece ter muito sentido continuar insistindo em uma relação fadada ao fracasso. Nalini quer o melhor para a filha, mas não parece saber muito bem como demonstrar isso a ela. A nova estrutura familiar que surge após a morte de Mohan não soa correta nem para Devi e nem para Nalini, e as duas precisam lidar com essa nova realidade paralela ao luto.

A herança cultural de Devi, no meio de todo esse turbilhão de emoções, também é um ponto importante do enredo da série e de como a protagonista lida com as situações que se apresentam em sua vida de adolescente. O contraste entre Devi e Kamala, sua prima mais velha que se muda para os Estados Unidos para estudar, também coloca em xeque a maneira como a protagonista lida com o fato de ser indiana, tâmil e hindu. Devi nunca encarou o fato de ser indiana como algo interessante a respeito de si mesma, e até a chegada de Aneesa ela apenas aceitava o fato de ser um token entre seus colegas na escola sem pensar além disso.

Na comunidade indiana, e em demais culturas do sul asiático, as doenças mentais são encaradas como fraqueza e falha moral, dificultando acesso a diagnóstico e tratamento adequado. Em estudo realizado na Índia em 2015 pela The Live Love Laugh Foundation (TLLLF), apenas 27% dos entrevistados disseram-se disponíveis a apoiar pessoas diagnosticadas com doenças mentais, enquanto 47% assumem julgar duramente essas pessoas; 26% dos entrevistados, enquanto isso, indicam sentir medo dos diagnosticados. Devi não sofre esse tipo de julgamento por parte de sua família, e muito se deve ao contexto em que está inserida como uma norte-americana de ascendência indiana — quanto mais o debate ao redor da saúde mental se desenvolve nos Estados Unidos, maior o benefício para as comunidades que lá vivem. Na Índia, no entanto, conforme o estudo desenvolvido pela TLLLF aponta, o cenário é bem diferente: com uma população que passa de um bilhão de cidadãos, um a cada cinco indianos poderá sofrer de depressão durante a vida, uma porcentagem de quase 200 milhões de pessoas. Devido ao já citado estigma associado às doenças mentais e falta de consciência e entendimento do assunto, aliado ao acesso limitado à ajuda profissional, apenas 10% dessas pessoas buscará tratamento.

Ao lidar com as questões pessoais de Devi, sua saúde mental e o processo de luto pelo qual está passando com tamanha sinceridade e delicadeza, Never Have I Ever também funciona como um meio de conscientizar e desmistificar o estigma ao redor das pessoas, principalmente adolescentes, que sofrem de alguma doença mental ao mostrar a família e os amigos de Devi apoiando sua terapia. Ainda que a protagonista não esteja pronta para falar sobre o luto e a perda, a série acerta ao mostrar o processo, as consultas com a Dra. Jamie e como seus sentimentos são abordados e sua dor validada. Never Have I Ever não deixa de ser o entretenimento despretensioso e divertido que eu procurava quando comecei a assistir à série, mas se torna também um dos retratos mais críveis do caminho a ser percorrido para processar sentimentos provenientes da dor de perder alguém que se ama tanto.

Never Have I Ever tem um roteiro que não trata seus personagens de maneira ingênua e, no caso de Devi, não a isenta pelas ações erradas. A dramédia é ótima fonte de diversão devido às situações hilárias em que Devi se mete no caminho para conseguir um namorado, seja ele Paxton ou Ben, e também por toda a gama de personagens interessantes e carismáticos que orbitam ao redor da protagonista. No final do dia, Devi é apenas uma adolescente lidando com a dor da maneira que consegue, e não necessariamente uma má pessoa. Ela é uma garota brilhante, com um pendor para o drama e para tomar más decisões baseadas em raiva e dor, e que ainda tem um longo caminho a percorrer no entendimento de si mesma em seu tratamento. Para além da disputa entre Team Paxton e Team Ben, sou Team Devi sem pestanejar.