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Crítica: Não Olhe

Desde O Médico e o Monstro, passando por Luigi Pirandello, o tema do duplo sempre fascinou os mais variados tipos de arte. Isso porque o duplo contém muito da luta entre o Bem e o Mal, e a coexistência dessas duas facetas é o que daria equilíbrio ao homem. Mas o que aconteceria quando um deles saísse do controle?

A resposta nem sempre é animadora. Há sempre um lado que precisa sobreviver e, para isso, uma dessas forças divergentes precisa ser sufocada. Um dos filmes que retratam a questão do duplo, atrelada a questões de gênero, é Cisne Negro, de Darren Aronofsky. Através da metáfora do balé O Lago dos Cisnes, o diretor evoca a existência do duplo, representado por Odile, o cisne negro, e sua versão boazinha, o cisne branco. Dessa forma, o que o diretor Assaf Bernstein nos apresenta em seu novo longa-metragem, Não Olhe, não é exatamente novo. Na verdade, ele reforça várias ideias sobre o duplo que habita em cada um de nós, principalmente nas mulheres.

Não Olhe conta a história de Maria (India Eisley), uma jovem tímida e vítima de bullying na escola. Ela se acha feia e essa ideia é reforçada por seu pai Dan (Jason Isaacs) ainda que indiretamente. Ele é um renomado cirurgião plástico, casado com Amy (Mira Sorvino). Todos os dias a família de Maria sonha que ela seja diferente e exerce alguma pressão para isso. A vida da adolescente, cheia de dúvidas por conta de sua imagem, é muito parecida com a da maioria das mulheres. Um dia, ao se olhar no espelho, ela descobre a existência de alguém no outro lado. Alguém igualzinha a ela, que entende suas preocupações e problemas. Apesar de o filme deixar claro desde o primeiro frame que se trata de uma espécie de irmã gêmea da personagem principal, é possível lê-la o tempo inteiro como o duplo da personagem. Por isso mesmo, Airam, a garota do espelho, a conhece tão bem. É como se ela estivesse dentro de Maria o tempo inteiro.

Não Olhe

Por conhecer tão bem Maria, Airam faz uma proposta à garota: que a deixe resolver seus problemas. Ela poderia cuidar do bullying, dos problemas de imagem causados pela amiga-bonita-porém-sacana, Lily (Penelope Mitchell), e tudo aquilo que aflige a garota. A princípio, Maria não quer, mas acontecimentos forçam-na a pedir ajuda ao seu duplo no espelho.

O turning point da trama, quando Maria aceita a ajuda de Ariam, acontece durante o baile da escola. Em uma homenagem, intencional ou não, à Carrie, a Estranha, Maria é humilhada nessa ocasião. Mais do que nunca, Não Olhe acentua as colorações escuras, que acabam sendo um reflexo da alma da personagem. Assim como Carrie, é a partir do baile que a personagem percebe que não pode continuar daquele jeito, chamando seu duplo e possibilitando que coisas estranhas comecem a acontecer.

O duplo de Maria: afinal, por que uma femme fatale?

Airam é um anagrama de Maria. O Duplo do mal, digamos assim, assume a posição quando as duas se beijam no espelho. Achei muito interessante que o Duplo só aparecesse para ela no espelho. No cinema e na literatura, espelhos são bastante simbólicos. Por exemplo, em O Retrato de Dorian Gray, o espelho mostra ao personagem principal que sua juventude se foi, que ele está melhor e que aquele será o seu eu. Ao escolher que um retrato seu envelheça ao invés de ele mesmo, Dorian quebra o espelho. Em Não Olhe, o espelho representa a outra camada de Maria, que só pode ser vista e analisada quando está diante de si. É só ao nos olharmos no espelho que podemos ter uma noção concreta da dualidade, já que existe um reflexo no lado de dentro.

Não Olhe

Depois de beijar seu Duplo no espelho, quem assume o corpo da personagem é Airam. Desde a mitologia grega e o hinduísmo, a existência de uma dualidade, de duas forças divergentes disputando um mesmo espaço, é algo que nos leva a refletir sobre nossa própria existência no mundo. Por que temos algumas sombras? E quais são elas? E por exatamente essas? O Duplo de Maria é o que Melanie Klein, discípula de Freud, entende como dissociação. Presa no espelho, Maria não tem mais controle sobre ela mesma, permanecendo, então, como uma antagonista do próprio ego. De acordo com Klein:

“O duplo gerado por esse processo é o ‘duplo antagônico’, pois é percebido como antagonista do ego.”

Sendo assim, Airam opõe diretamente à Maria, o lado racional, digamos assim. Ela é uma garota bem resolvida sexualmente, flerta com o garoto que anteriormente praticara bullying com ela e pretende roubar o namorado da melhor amiga, Sean (Harrison Gilbertson). A pergunta que fica é: por que o Duplo das mulheres é sempre retratado assim?

Colocar o Duplo de uma personagem feminina como uma mulher sexualmente liberada, dona de si, não é novo no cinema e na televisão. Nas séries A Feiticeira e Jeannie é Um Gênio, o duplo das personagens é sempre uma mulher cheia de vida e que adora flertar. Elas têm cabelos pretos enquanto a versão boazinha é loura. Dessa forma, a mensagem que nos é passada é que ser sexualmente livre é ruim, algo que deve ser escondido a sete chaves. O Duplo da personagem de Natalie Portman em Cisne Negro também é assim.

Sendo assim, Não Olhe se vale dessa espécie de tropo para sinalizar as maldades de Airam. É quase como uma releitura das famosas femme fatale dos filme noir. Essas personagens estavam presentes nesses filmes única e exclusivamente para ferrar com o personagem principal, um homem. Usavam o sexo, sua única moeda de troca, para seduzi-los e causar sua danação. Airam faz a mesma coisa, inclusive, e o filme insinua uma cena de incesto entre ela e o pai.

A figura do pai de Maria

A figura do pai da personagem principal é muito interessante, porque ele representa muito as expectativas que o mundo coloca nos ombros das mulheres, especialmente àquelas ligadas à beleza. Acredito que o roteiro não tenha escolhido a profissão de cirurgião plástico à toa. Um cirurgião embeleza corpos, recauchuta-os e os molda de acordo com os padrões estéticos da sociedade.

Não Olhe

É isso o que o pai de Maria deseja fazer com ela. Por ser uma “vergonha” em seu currículo, ele oferece uma cirurgia plástica à filha. Sean deseja remodelar as orelhas dela, pois seriam de abano. Depois quer mexer no nariz e torná-lo menos arrebitado, afinando as pontas. Vivemos em um tempo em que as cirurgias plásticas começam cada vez mais cedo, e a isso está atrelado o mito da beleza sobre o qual Naomi Wolf tanto se debruçou.

Para a autora, o mito da beleza é uma série de “verdades” que acaba limitando a liberdade das mulheres. É a ideia, por exemplo, de que a beleza está ligada ao sucesso. Uma beleza bastante restrita é claro: os corpos devem ser brancos, magros e ocidentais. Essa série de verdades consome muito tempo de nossas vidas. Olhar-se no espelho é uma obsessão para nós. Você já contou quantas vezes se olha no espelho? Eu já, e estou sempre odiando tudo o que vejo refletido nele, assim como Maria, a personagem de Não Olhe. Ela se olha no espelho tantas vezes, buscando uma aprovação social invisível.

Depois de escaparmos das amarras do casamento (lembrando que a beleza há pouco era uma moeda de troca), o tempo e o dinheiro gastos com a beleza vêm para permanecer nos aprisionando. Você realiza uma cirurgia plástica porque lhe disseram que gastar dinheiro com beleza é garantia de sucesso. Um sucesso que nunca vem, pois há sempre algo a ser consertado. Em filmes nos quais as garotas rebelam-se e começam a fazer maldades, a busca por uma beleza inatingível é sempre um fator que contribui muito para a “virada para o mal” dessas personagens. A beleza é tão forte para nós que ela, literalmente, nos enlouquece, como é o caso de Carrie e Maria. Carrie tinha a mãe para atormentá-la em relação a essa questão, já Maria tem o pai.

Não Olhe não é um filme de grandes qualidades técnicas, que acaba se tornando desinteressante justamente na parte em que deveria nos prender: quando o Duplo assume o corpo de Maria. No entanto, ele estabelece uma ambientação muito interessante, com tonalidades sempre escuras e frias, e levanta questões sobre beleza e até quando a busca pela perfeição irá nos enlouquecer e matar.

Os filmes de suspense, horror e terror estão estritamente conectados à nossa realidade. O que nos causa pavor? O medo de envelhecer e não estar dentro dos padrões de beleza é um desses temores. Ao ser transformado em suspense, mostra como precisamos discutir exaustivamente para que as próximas jovens e mulheres não caiam nas armadilhas de correr uma maratona em busca de algo inatingível. Não Olhe trabalha com todas essas questões dentro de uma fórmula pré-estabelecida. É ruim? Não é, porque as fórmulas mostram que o bullying e a aceitação ainda estão levando jovens a atitudes extremas. Ao contrário do título do filme, precisamos olhar muito para isso.