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Virgínia Bicudo, a psicanalista que inspirou a personagem Selma, de Éramos Seis

Éramos Seis (2019), novela baseada no romance de mesmo nome, já terminou, porém, ainda é possível tratar de uma personagem que, embora secundária, merece a nossa atenção. Trata-se da psicanalista Selma (Aline Borges), que surgiu no decorrer da trama para tratar de Justina (Julia Stockler), a qual possuía transtorno do espectro autista, até então desconhecido. O que talvez muitos não saibam é que a personagem Selma foi inspirada em fatos reais, na trajetória impressionante de Virgínia Bicudo, mulher negra, psicanalista e socióloga brasileira.

No remake do clássico, Justina é mantida isolada e dopada com remédios pela mãe, Emília (Suzana Vieira), que sente vergonha da filha e em razão dessa guardar um grave segredo. Em dado momento, a outra filha de Emília, Adelaide (Joana de Verona), resolve procurar novos métodos para tratar a irmã, pois suspeita que algo faz com que suas crises sejam agravadas. Nesse ponto, adentra a personagem de Aline Borges, a psicanalista Selma, que submete Justina a sessões de hipnose que a fazem acessar suas memórias reprimidas.

De acordo com Aline Borges, a psicanalista Selma foi inspirada em Virgínia Bicudo (1910–2003), uma intelectual, socióloga e psicanalista brasileira. Filha de um brasileiro negro e mãe italiana branca, Virgínia guardava uma inquietação interior que a levou a cursar Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política, e, posteriormente, formação em psicanálise. Ela foi a primeira mulher a ser analisada na América Latina por Adelheid Koch, uma psicanalista judia refugiada do nazismo.

A busca por respostas para o seu próprio sofrimento moveu Virgínia:

“Eu fui criada fechada em casa, quando eu saí foi para ir à escola e foi quando pela primeira vez, na escola, a criançada começou: ‘negrinha, negrinha’. Quando eu estava dentro de casa eu nunca tinha ouvido. Então eu levei um susto.”

“Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de Sociologia porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar Sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural.”

“Percebi que o problema que estava me causando sofrimento era de dentro para fora e não de fora para dentro. Não é sociologia que tenho que fazer, e sim psicanálise.”

À época, no Pós-Segunda Guerra Mundial, acreditava-se que o Brasil era uma democracia racial, que serviria de exemplo para outros países. De forma inovadora, em Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (1945) — a primeira tese sobre relações raciais no Brasil — e na pesquisa subsidiada pela UNESCO, Atitudes dos Alunos dos Grupos Escolares em Relação com a cor dos seus Colegas (1955), ela demonstrou que a ascensão social do negro não é suficiente para eliminar o preconceito racial, o que se contrapunha ao pensamento dos intelectuais daquele período.

Em dado momento de sua carreira, Virgínia foi hostilizada e chamada de charlatã por exercer a psicanálise sem ser formada em Medicina. Numa infeliz coincidência, seu pai, Teófilo Bicudo, então funcionário dos Correios e Telégrafos, sonhava em cursar Faculdade de Medicina, entretanto, numa época em que não existia vestibular, foi impedido de ingressar no curso por ser negro. Insistiu nesse sonho por 10 anos, sem concretizá-lo. Depois, com a instituição do vestibular, criou um curso preparatório para a Faculdade de Medicina em sua casa.

Virgínia Bicudo trabalhou pela institucionalização da psicanálise durante quase toda a sua vida, por meio da divulgação científica nos meios de comunicação de massa da época, programa de rádio e coluna de jornal. Os principais trabalhos de Virgínia Bicudo praticamente não tiveram republicações, com exceção da reedição de sua dissertação em 2010, por ocasião do seu centenário. A pesquisadora Janaína Damasceno chega a comentar que encontrou a tese de Virgínia, uma das primeiras da Escola de Sociologia e Política, mofada e úmida. Somente recentemente tem havido um resgate da figura histórica de Virgínia Bicudo, a sua contribuição para a instituição da psicanálise no Brasil e o pioneirismo no estudo das relações raciais.

A escolha por fazer uma referência à Virgínia Bicudo na novela Éramos Seis foi acertada e foge aos estereótipos, contudo, lamenta-se que a personagem não possua vínculos familiares e afetivos, bem como abordado o seu propósito particular. A psicanalista Selma poderia ter sido melhor desenvolvida, uma vez que o núcleo de Emília, Adelaide e Justina não corresponde ao livro homônimo de Maria José Dupré (nele, Justina e Adelaide são mulheres na faixa dos 50 anos que moram com a mãe, Emília), e que foram feitas diversas modificações na adaptação de 2019, até mesmo quanto ao final.

Joel Zito Araújo já apontou, no documentário e livro de mesmo nome, A Negação do Brasil, que a representação do negro na dramaturgia brasileira, ao longo de quase 50 anos, esteve calcada em estereótipos, como papéis de escravizado, serviçal, “favelado”, etc. Observa-se, mais acentuadamente, em produções de época do período pós-abolição que personagens negros são quase ausentes ou, quando existem, dão suporte ao antagonista ou protagonista. No mais das vezes, estão ali simbolicamente.

Existem muitas figuras históricas negras interessantes que podem ser base para a criação de personagens em produções de época, como se viu em Lado a Lado ou Doutor Gama. Além disso, Virgínia também foi retratada no especial Falas Negras, por Aline Deluna.

Durante as tensões do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial, Virgínia Bicudo desenvolveu um trabalho inovador sobre relações raciais e psicanálise, um campo então visto como tabu pela sociedade conservadora, por tratar, entre outros temas, da sexualidade. Ela enfrentou um meio majoritariamente composto por homens brancos, o ensino superior, numa época em que a maior parte da população, sobretudo negra, não era alfabetizada. Histórias como essa precisam ser conhecidas por nós.


Referências

  • ARAÚJO, Joel Zito. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira. Estudos Feministas, Florianópolis, n. 16, v. 3, p. 979-985, setembro-dezembro/2008.
  • GIANESI, Regina Lacorte. Algumas notas sobre a trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
  • GOMES, Janaína Damasceno. Os segredos de Virgínia: estudo de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2013.
  • MAIO, Marcos Chor. Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. cadernos pagu, n. 35, p. 309-355, julho-dezembro de 2010.
  • SCHECHTER, Rosa Coutinho; VIDAL, Paulo Eduardo Viana. O apagamento de Virgínia Leone Bicudo e seus trabalhos sociológicos. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 20, dez. 2020.
  • VIEIRA, Renan. Aline Borges fala sobre a doutora Selma, de Éramos Seis: “Um presente”. Observatório da TV, 21 fev. 2020.