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Uma Certa História de Amor: um estudo sobre a relação feminina com a escrita

Em A Divina Comédia, Francesca e Paolo são dois jovens que, uma vez apaixonados, são condenados ao Inferno por se renderem a um amor proibido. Dante Alighieri, protagonista e autor da obra, os encontra ainda na primeira etapa de sua jornada, no segundo dos nove círculos que dividem o Inferno, também conhecido como o círculo da luxúria, onde ambos estão fadados a viver sob uma eterna tempestade de vento. Na vida real, contudo, Francesca de Rimini (da Polenta, antes do casamento) e Paolo Malatesta foram, de fato, amantes; jovens da nobreza italiana do século XIII que se apaixonaram e foram assassinados ao serem descobertos pelo irmão mais velho de Paolo e marido de Francesca, Giovanni Malatesta.

Conhecida principalmente por sua beleza, Francesca era filha de Guido da Polenta, lorde de Ravenna, e foi prometida ao filho mais velho do lorde de Rimini após ambos firmarem um acordo de paz entre as duas famílias. Era evidente que, uma vez que se conhecessem, Francesca jamais aceitaria casar-se com Giovanne — um homem culto e conhecido pela coragem tanto quanto por sua imensa feiura. Assim, a união foi realizada a partir de uma procuração, sob mediação de Paolo, irmão mais novo de Giovanni, por quem Francesca viria a se apaixonar — sentimento que seria retribuído pelo próprio Paolo, ainda que este também já fosse um homem casado. O compromisso, todavia, não os impediu de se relacionarem em segredo por quase dez anos, até o dia em que foram descobertos no quarto de Francesca e mortos em consequência.

Responsável por imortalizar a tragédia, Dante não seria o único a explorá-la: ao longo dos anos, muitos foram os que buscaram na história inspiração para suas obras, como o escultor francês Auguste Rodin e o compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovsky. A grande influência da Igreja Católica e do moralismo medieval (tanto Francesca quanto Paolo são julgados e condenados com base em ensinamentos cristãos) também fariam da abordagem de Dante uma referência recorrente, sobretudo ao relacionar-se com o histórico religioso da Itália, berço da Igreja Católica e onde o cristianismo ainda é a crença predominante. Em sua poesia, o autor reflete sobre tradições e linhas de pensamento hegemônico características da Idade Média, como a existência de um Deus repressor e punitivo ou o Inferno como o lar de criaturas demoníacas, o que possibilita um estudo mais amplo sobre os costumes do período, desde aspectos voltados aos âmbitos espiritual, religioso e literário, até suas consequências políticas e sociais.

Embora aborde um período distinto — os anos finais da Segunda Guerra Mundial até os primeiros anos do século XXI —, Uma Certa História de Amor também recorre à tragédia dos dois amantes como ponto de partida para a reflexão sobre temas mais abrangentes, como religião, luxúria e traição, em uma narrativa que, paralelamente, evidencia experiências femininas mais profundas, que ultrapassam fronteiras de tempo, cultura e espaço. Como Francesca, a protagonista se apaixona por alguém a quem tanto não pode ter quanto pertencer — neste caso, um veterano de guerra, que conhece durante sua breve estadia em uma sofisticada casa de repouso para o tratamento de uma doença renal. Mais do que narrar uma história de amor proibido, no entanto, Milena Agus, a autora, projeta o foco de sua narrativa sobre detalhes mais complexos da natureza feminina, entrelaçando-os ao contexto pós-guerra em que a ascensão social era possível para uns, mas não para todos.

“Na Igreja, ela perguntava a Deus por quê, por que Ele era tão injusto que lhe negava o conhecimento do amor, que é a coisa mais bela e importante do mundo, a única porque vale a pena viver uma vida (…). Então, se Deus não queria que ela conhecesse o amor, que a matasse, de um jeito ou de outro. Na confissão, o padre lhe dizia que tais pensamentos eram um pecado muito grave e que há muitas outras coisas nesse mundo, mas minha avó não queria saber das outras coisas.”

Nascida em Gênova, na Itália, Milena Agus é professora de história e italiano, e adotou a província de Cagliari, na Sardenha, como refúgio — local que também serve de cenário para o romance, onde parte dos acontecimentos se desenvolvem. Narrados a partir dos escritos da protagonista, é sua neta, e não ela própria, quem faz a ponte entre passado e presente, e a existência do registro é o que permite que suas memórias continuem vivas geração após geração. De maneira mais ou menos linear, Uma Certa História de Amor percorre diferentes momentos de sua vida, desde o casamento com um homem mais velho, forasteiro e viúvo, até a velhice, passando pela dinâmica bastante péssima com a mãe, a maternidade, o sexo e a relação com a neta, de quem torna-se bastante próxima. Em comum, todas as questões convergem de maneira a revelar a existência de sentimentos ambíguos a partir de experiências muito específicas, em um contexto onde a convivência é o principal catalisador de sua emergência, e os desdobramentos de um passado conturbado, de ser criada por uma mãe que se recusava a tratá-la como filha, que sentia vergonha, às vezes raiva, e não pensaria duas vezes em conceder sua mão a um homem, quem quer que fosse, desde que pusesse fim ao seu tormento.

“(…) E minha avó pensava sempre que o amor é uma coisa estranha, pois se ele não quer chegar, não chega, nem com a cama, nem com as delicadezas ou as boas ações, e que era estranho que precisamente não houvesse meio de fazê-lo chegar, da maneira que fosse, o amor, que era a coisa mais importante do mundo.”

Em 1943, com a chegada do avô ao vilarejo, a perspectiva de um casamento torna-se mais palpável e não demora para que os arranjos sejam feitos e o enlace, por fim, concretizado. Mas o casamento é apenas um contrato e, estabelecidas as regras entre as partes envolvidas, tão somente aparências. Embora dividissem o mesmo teto e a mesma cama, Uma Certa História de Amor revela que o casal viveria como irmãos por algum tempo e só deixariam de fazê-lo muito mais tarde, mais por necessidade do que afeto. Esse, contudo, jamais parece ser um problema para os dois, que eventualmente desenvolvem uma dinâmica bastante harmônica, especialmente após a mudança para Cagliari, quando os limites da relação tornam-se mais brandos, e a convivência, mais agradável. A rotina também viria a estabelecer uma cumplicidade entre a protagonista e suas vizinhas, com quem dividiria a cozinha, às vezes a comida, mas não seus pensamentos — esses reservados somente ao pequeno caderno de capa preta cujo conteúdo viria a ser destrinchado pela neta anos depois. Como confidencia em suas páginas, era preferível escrever a expor aquilo que existia em seu íntimo e que talvez a fizesse ser vista como imoral ou desequilibrada, como já acontecera no passado. A escrita, portanto, é o que a permite existir de maneira visceral; se não era apropriado que falasse sobre seus desejos, angústias e anseios, o ato de escrever é o que lhe permite dar vazão aos seus sentimentos mais profundos sem jamais ser julgada — tampouco condenada — por eles.

“Ao entrar no quarto, reparou logo numa escrivaninha junto da janela e talvez tenha sido só por isso que não fugiu para o porto (…). Nunca tinha tido uma escrivaninha, nunca pôde se sentar a uma mesa para escrever, porque escrevia sempre às escondidas, com o caderno no colo, e o guardava mal ouvia alguém se aproximar. (…) Por isso, a primeira coisa que minha avó fez, antes mesmo de tirar o sobretudo, foi pegar o caderno na mala e colocá-lo com todas as honras em cima da escrivaninha, dentro da pasta de couro. Depois fechou a porta à chave, com medo de que alguém entrasse de repente e visse o que estava escrito no caderno (…).”

Entretanto, é somente em 1950, quando de sua estadia na casa de repouso, que a escrita assume um papel central na vida da protagonista. Diferente do que sugere o título e a sinopse da edição brasileira, Uma Certa História de Amor guarda detalhes mais complexos, que desdobram-se em verdades inesperadas e intimamente ligadas ao processo de escrita. Milena Agus não parece disposta a seguir fórmulas e retrata as particularidades de uma mulher que trava uma luta interna consigo mesma de maneira bastante delicada, em uma trajetória que delineia possibilidades tão reais quanto paradoxais: sua existência autêntica reserva-se às páginas do caderno, cujo conteúdo, em uma autocensura intrínseca, jamais poderia tornar-se público — e somente muitos anos mais tarde, quando todos os envolvidos já não se encontravam mais vivos, é que esses escritos são desvendados.

Dentro desse contexto, Uma Certa História de Amor traça o papel do veterano não tanto como o de um amante quanto o de alguém que está ali para incentivar a manutenção da escrita, e que reconhece e valoriza genuinamente o talento da protagonista, cujo enxuto histórico de educação formal jamais a torna inferior — e só mais tarde vamos descobrir como essa dinâmica realmente se estabelece e como os desdobramentos da experiência influenciam a personagem, como se relacionam com aquilo que acontece depois, como determina as escolhas que ela faz ao longo da vida.

“Nunca deixe de imaginar histórias. A senhora não está louca. Nunca mais acredite em quem lhe disser coisa tão injusta e tão maldosa. Escreva. Sempre.”

As mulheres escrevem muito, e não tanto por profissão, mas por necessidade, diz Elena Ferrante em entrevista ao El País quando questionada sobre a presença recorrente de escritoras em sua obra. Ao escrever sobre uma mulher que encontra na escrita seu refúgio, Milena Agus reforça, e também amplia, ao seu próprio modo, essa compreensão; seus personagens jamais ganham nomes porque, em essência, Uma Certa História de Amor não é uma história que existe de maneira isolada: ela não é sobre uma única mulher, mas sobre muitas mulheres que encontraram na escrita proteção, iluminação e conforto — e talvez por isso, suas poucas páginas jamais pareçam suficientes para abrigarem uma narrativa tão ambiciosa em si mesma. Entre histórias escritas, mas nunca ouvidas, a certeza que resta é a de que ainda há muito a ser desvendado.

Uma Certa História de Amor

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora LeYa.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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