A ficção científica e o gótico são gêneros literários difundidos por todo o mundo. Na literatura, um dos romances com mais visibilidade na cultura popular é Frankenstein, publicado no ano de 1818, por Mary Shelley — sendo a autora, inclusive, precursora no surgimento do estilo. Com os avanços no setor tecnológico e científico no Brasil, no fim do século XIX, autores brasileiros também tiveram como referência o sci-fi e o gótico para compor suas obras. Os escritores maranhenses Maria Firmina dos Reis e Coelho Neto também beberam dessa fonte para retratar seus livros e levantar reflexões sobre questões sociais e de gênero.
Maria Firmina dos Reis foi uma escritora maranhense considerada a primeira romancista brasileira. Sua obra, Úrsula, foi publicada no ano de 1859 e é uma das pioneiras a apresentar uma literatura abolicionista. Firmina nasceu no dia 11 de março de 1822, na cidade de São Luís, e faleceu em 11 de novembro de 1917, aos 92 anos. Úrsula, em sua construção, é um romance inovador no que diz respeito à imagem de como as pessoas negras eram figuradas nas obras literárias até então. As produções mais antigas os representavam como violentos e animalescos, simbolizando o Outro. Em seu livro, a romancista conseguiu humanizar e modificar a visão sobre estas pessoas.
É interessante notar que, logo no prefácio, a própria autora reconhece o seu lugar na sociedade, enquanto mulher e negra. No desenvolvimento da história, é possível observar, também, alguns elementos da ficção gótica na construção da narrativa, como a presença de um personagem apresentado como vilão e Úrsula, a protagonista, apresentando características de mocinha sofredora. A personagem do livro de Maria Firma, encaixa-se exatamente na categoria de heroína frágil e perseguida, com obrigações em relação a sua mãe enferma. A casa grande — lugar onde os senhores de escravos moravam — é colocada como um espaço lúgubre e sombrio. Os escravos retratados como fantasmagóricos e a relação conflituosa entre mulheres com seus antagonistas, como o abuso de poder e a opressão, são características recorrentes da ficção gótica encontradas no romance da maranhense.
Em oposição ao racionalismo, a literatura gótica tem como principal característica a hesitação e o medo diante das mudanças na sociedade, personificado em formas de monstros e outras criaturas associadas ao sobrenatural. Em sua produção, a autora inseriu os aspectos deste gênero para falar da escravização de pessoas negras e o papel social das mulheres naquele contexto.
“Já arruinadas, desmoronavam-se aqui e ali: porque os desgraçados escravos do comendador, espectros ambulantes, não dispunham de uma só hora no dia, que pudessem dedicar em benefício de suas moradas: à noite trabalhavam o ordinariamente até ao primeiro cantar do galo. Esfaimados, seminus, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou três horas desse sono fatigado, que lhes concedia a dureza de seu senhor.”
Firmina dos Reis pôde, assim, contribuir com a literatura maranhense e antecipar um debate sobre a pessoa negra dentro sociedade, buscando formas de tornar o negro como digno de compaixão e visto como um ser humano.
Do mesmo modo, o escritor maranhense Henrique Maximiano Coelho Neto, mais conhecido pela alcunha de Coelho Neto, utilizou de elementos da ficção científica para compor o seu romance Esfinge. O romancista foi considerado um dos maiores autores da literatura nacional, e tem reconhecimento por sua forma de escrita rebuscada, a eloquência e o estilo de suas obras, que se concentravam no parnasianismo, pré-modernismo e simbolismo. Ele nasceu no dia 21 de fevereiro de 1864 e faleceu em 28 de novembro de 1934, aos 70 anos. Também trabalhou com política e exerceu o cargo de professor.
Esfinge tem grande influência de Frankenstein por discutir o papel da ciência na criação de seres humanos, refletindo sobre as consequências disto. Também podemos destacar que o romance foi escrito em 1908 e já apresentava a temática da transexualidade e dos limites de gênero. O protagonista, James Marian, resultado de uma fusão de corpo de um homem e cabeça de uma mulher, é inglês. E, naquela época, um pouco antes da obra ser escrita, a Inglaterra era palco de reflexões muito importantes de gênero e sexualidade. O próprio título já nos leva a pensar na criatura mítica híbrida que desafiou Édipo, na tragédia grega Édipo Rei.
Coelho Neto aproveitou para trazer características fantasmagóricas, sobrenaturais, ligadas ao terror/horror, por conta de sua vivência no sertão, sob lendas, contos e histórias de encantamento. James Marian é um andrógino fruto de um experimento científico realizado pelo místico oriental Arhat, que usou de suas experiências na ciência para dar vida a dois corpos mutilados. O nome do personagem indica a dualidade sobre o gênero — James (masculino) Marian (feminino) —, e também aborda a inquietação sobre sua identidade.
Tal qual a criatura de Frankenstein, Marian destoa dos padrões estabelecidos, sendo condenado à exclusão. Ainda assim, almeja ser aceito e amado, fato que o leva a percorrer o mundo inteiro tentando desvendar o livro de símbolos que lhe foi entregue por seu criador, Arhat, a chave para as suas aflições.
“[…] como ainda encontrasse vestígios, ou melhor: manifestações da presença dos sete princípios, retive a força de jira, ou princípio vital, fazendo com que ele atraísse os restantes que circulavam, em aura, em torno da carne e, com a pressa que urgia, aproveitei dos corpos o que não fora atingido. Tomando a cabeça da menina e adaptando-a ao corpo do menino restabeleci a circulação, reavivei os fluidos e assim, retendo os princípios, desde o Athma, que é a própria essência divina, refiz uma vida, em um corpo de homem, que és tu.”
Esfinge nos traz uma discussão sobre o desenvolvimento científico, todo o fascínio e interesse pelas questões advindas da modernização na sociedade, enquanto Úrsula utiliza-se dos desdobramentos da ficção gótica para levantar questões raciais. Os dois romancistas beberam da fonte de tais gêneros, e nos mostram como a literatura maranhense, cada um em sua época, já abordava sobre a ficção científica, o terror/horror e o gótico, tal qual outras obras de grande importância na literatura estrangeira. E isso precisa ser reconhecido e valorizado.
** A arte em destaque é de autoria da colaboradora Mia Sodré. O retrato falado de Maria Firmina dos Reis, utilizado no destaque, foi criado pelo artista plástico Tony Alves.