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A Noite do Tigre: o misticismo e o sobrenatural de Yangsze Choo

O segundo livro de Yangsze Choo lançado no Brasil, A Noite do Tigre também chega pela DarkSide Books e dessa vez com tradução de Aline Naomi. Yangsze Choo nos leva novamente para a Malaia e sua cultura enquanto acompanhamos as jornadas de pessoas conectadas pelos significados de seus nomes, as cinco virtudes do confucionismo e o sobrenatural.

Logo no início do livro somos apresentados a Ji Lin, uma jovem filha de uma viúva que vê a mãe receber uma nova proposta de matrimônio. A casamenteira de Ipoh diz que a combinação é propícia não somente porque o homem em questão é proprietário de um comércio com renda suficiente para manter Ji Lin e sua mãe, mas também pelo fato de que o filho dele, Shin, nasceu no mesmo dia que ela — como se não bastasse essa coincidência ser vista como auspiciosa, os nomes de Ji Lin e Shin, escritos em chinês, formam duas das Cinco Virtudes do confucionismo, o que só poderia ser visto como mais um acaso positivo a favor da união do casal.

“A pior parte da morte é esquecer a imagem da pessoa amada. É o último roubo, a última traição.”

A terceira e quarta virtude aparecem nos nomes dos irmãos gêmeos Ren e Yin. Ren, um pequeno órfão de onze anos de idade, é quem conta a outra parte dessa história. Como uma pessoa que acredita em sinais do destino, Ren faz o possível para cumprir a promessa feita ao seu velho mestre antes de sua morte: encontrar o dedo que seu mestre perdeu em um acidente anos atrás para que seu corpo seja enterrado de maneira completa. Naquela época, os malaios acreditavam que a alma de quem morre fica 49 dias vagando, e é exatamente esse o prazo que Ren tem para restituir o dedo faltante à sepultura de seu mestre para evitar que ele fique preso entre os dois mundos, o dos vivos e o dos mortos, por toda a eternidade. Dessa maneira, Ren dá início a sua jornada em busca do dedo de seu mestre sem imaginar que essa empreitada o levará por muitos caminhos inesperados, inclusive unindo sua história a de Ji Lin.

A quinta virtude citada em A Noite do Tigre faz parte do mistério construído por Yangsze Choo para sua trama, e na companhia de Ji Lin e Ren, principalmente, tentamos descobrir quem é o portador desse atributo e de que maneira contribuirá — ou atrapalhará — suas jornadas. As já citadas Cinco Virtudes foram elaboradas pelo filósofo e pensador chinês Confúcio que viveu entre os anos de 551 a.C. e 479 a.C. Ele defendia que as Cinco Virtudes cardeais — benevolência, retidão, decoro, sabedoria e fé — formavam a base do que ele acreditava ser o ideal para a criação de uma sociedade culturalmente instruída e empenhada com o bem-estar comum. Para Confúcio, seguir as virtudes era essencial para construir uma vida plena e suas ações deveriam levar em consideração o amor ao próximo, a justiça, o comportamento apropriado com os valores morais, o cultivo da sabedoria além de sempre manter na consciência as vontades dos céus.

Em A Noite do Tigre, os nomes dos personagens se relacionam diretamente com as Cinco Virtudes do confucionismo e, associadas com números e a maneira como são escritos em chinês, revelam um pouco do destino de cada um deles. Não vou elaborar uma explicação a esse respeito visto que Yangsze Choo o faz maravilhosamente bem, e cada pista deixada por ela durante a construção de sua trama tem relação direta com a história que a autora está contando. É muito interessante absorver o que Yangsze Choo explica com relação às virtudes, as crenças e a cultura malaia — novamente a autora abre uma porta na Malaia de 1930 e nos permite espiar seus costumes e hábitos enquanto nos envolve em uma trama repleta de magia e sobrenatural. Em A Noite do Tigre, inclusive, há uma passagem que menciona os eventos de A Noiva Fantasma, selando que ambas as tramas são contemporâneas e de fato se passam no mesmo universo — eu não acharia ruim se um dia acontecesse um crossover entre as tramas, imaginar Ji Lin se unindo a Li Lan para incomodar Shin e Er Lang me dá vida.

As quase quatrocentas páginas do livro passam em um piscar de olhos e novamente me vi no dilema de ler o mais rápido que pudesse para chegar ao desfecho e descobrir o que a autora reservou para seus personagens, ou ler poucas páginas por vez, prolongando minha estadia com uma trama tão belamente construída. Ji Lin e Ren, enquanto protagonistas, são perfeitos. É fácil torcer por Ren, um menino órfão muito inteligente e leal que faz o possível para cumprir a promessa feita ao seu mestre moribundo; escrever crianças críveis nem sempre é fácil, mas em A Noite do Tigre, Choo constrói um personagem real e muito amável, uma criança solitária com saudades de seu mestre e de seu irmão, porém muito resiliente e esperto. O encanto que os demais personagens sentem por Ren é basicamente o mesmo que eu, enquanto leitora, senti por esse menino de papel e tinta.

“Talvez esse fosse o significado de ser uma família — estarmos presos por obrigações das quais nunca poderíamos fugir.”

Do outro lado da moeda em A Noite do Tigre, temos Ji Lin. Talentosa e inteligente, ela vê seus sonhos de se tornar médica serem tirados dela apenas por ser mulher. Seu padrasto não acredita que gastar dinheiro com a educação de uma menina seja justificável, então Ji Lin não conclui os estudos e, sem muitas alternativas, se torna aprendiz em um ateliê de costura. Ainda que esse seja longe de seu ideal de trabalho, Ji Lin, traumatizada com o relacionamento abusivo da mãe e de seu padrasto, decide que o melhor a fazer por si mesma é ter alguma independência e seu próprio dinheiro. Para ela, depender dos desejos e caprichos de um marido está fora de cogitação. Com o pouco salário que recebe e precisando saldar as dívidas que a mãe fez, e que esconde de seu padrasto por conta do temperamento explosivo dele, Ji Lin consegue um segundo trabalho como dançarina em um salão, o que ela precisa manter em segredo devido a reputação que persegue as moças que ali trabalham. Ao contrário da fama que as moças levam, a maioria delas apenas dança, como o cargo sugere, mas algumas decidem estender seus serviços para fora dos salões — o que não é o caso de Ji Lin.

É em um desses turnos de trabalho, enquanto dança com um cliente particularmente incômodo, que Ji Lin o vê deixar cair um frasco contendo um dedo amputado, que ela pega sem saber muito bem o motivo enquanto o homem vai embora. Quando recebe a notícia, alguns dias depois, de que o cliente em questão faleceu de maneira estranha, Ji Lin toma a decisão de devolver o dedo ao seu lugar de direito e para isso acaba contando com a ajuda de seu meio-irmão, Shin. A maneira como o relacionamento de Ji Lin e Shin é desenvolvido em A Noite do Tigre é interessante e perfeito para quem gosta de coisas relativamente complicadas e com muitos sentimentos. Para os leitores de mangás, alguns momentos entre Ji Lin e Shin até mesmo me lembrou de Setsuna e Sara, de Angel Sanctuary da Kaori Yuki, com o diferencial de que no mangá há muito mais drama e complicação do que na trama de Yangsze Choo. Gosto de como Choo constrói ambos os personagens, suas histórias e motivações, o que torna o desfecho de sua trama ainda mais aguardado para quem torce por um felizes para sempre.

“Ele parecia tão pequeno e triste: uma criança esperando o seu irmão havia três anos. Esperando sozinho, em uma margem deserta. Isso me cortou o coração, mas, ao mesmo tempo, eu sabia que ele tinha feito algo terrivelmente errado.”

O misticismo e o sobrenatural estão tão presentes em A Noite do Tigre quanto em A Noiva Fantasma, e Choo costura tudo isso em sua trama de maneira perfeita. Ainda que eu sempre tenha sido muito curiosa com relação a cultura asiática de maneira geral, não sabia absolutamente nada sobre a Malaia em si (atualmente, Malásia), e A Noite do Tigre acaba sendo responsável por abrir meus horizontes com relação a esse aspecto também. Além dos aspectos culturais tão bem contados por Yangsze Choo, A Noite do Tigre tem o já citado sobrenatural aliado ao mistério de mortes suspeitas, superstições, fantasia e romance de um jeito todo especial. É impossível parar de ler visto que a ânsia por descobrir o que está acontecendo no livro é tanto do leitor quanto dos próprios personagens envolvidos em uma série de acontecimentos inexplicáveis.

A narrativa de Yangsze Choo permanece impecável nesse segundo livro e não decepciona em nenhum momento, conduzindo o leitor em um mundo que é ao mesmo tempo real e sobrenatural, sempre amarrando todas as pontas com as crenças e mitos malaios. A criação de Choo, de enredo a personagens, é precisa e a autora é capaz de caracterizar com cuidado ímpar a Malaia, sua cultura e superstições. Ao final do livro, a fim de esclarecer alguns pontos e escolhas narrativas, Choo ainda trás algumas notas sobre a Malaia, e os motivos pelos quais ela adotou a grafia do nome histórico do que hoje conhecemos como Malásia, a região em que a história do livro se passa, o Vale Kinta, além das superstições dos chineses com números. A Noite do Tigre é um livro cativante com uma trama bem amarrada e personagens apaixonantes. O trabalho da DarkSide Books com o visual do livro está impecável e evoca com elegância os elementos fantásticos do trabalho de Choo.

“Se os mortos de fato continuam vivendo na memória das pessoas, então eu o protegeria para sempre.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.

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