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Gwen Stacy, mulheres na geladeira e os malefícios de uma representação falha

Na geladeira colocamos tudo aquilo que queremos guardar por um tempo. Coisas que não nos são úteis no momento ou que não vamos utilizar (nesse caso, geralmente consumir), mas que também não queremos descartar e perder a oportunidade de utilizar mais tarde, e deixamos em modo stand by até nos ser útil novamente. O que significa, então, as mulheres que, metaforicamente, tenham ido parar na geladeira?

Mulheres na geladeira ou Women in Refrigerator, no original em inglês, se reflete a um tropo da narrativo muito comum na cultura pop e utilizado como plot devide [dispositivo de trama]. Por mais curioso que possa parecer, o termo tem sua base fundamentada que, além de comprovar seu extenso e contínuo uso, demonstra a crueldade e violência — não apenas simbólica, mas extremamente vezes explícita — a qual mulheres são submetidas em produções que consumimos quase diariamente.

A definição do termo surgiu em 1999, quando a escritora de histórias em quadrinhos Gail Simone percebeu certa tendência nas tramas das HQs: mulheres que estavam ligadas à figura do herói, geralmente seus pares românticos, eram usadas para que os vilões chegassem até o protagonista e pudesse feri-lo emocionalmente por meio de morte, tortura ou qualquer outro tipo de violência física e psicológica de outrem. Com o sofrimento das namoradas, os heróis eram impulsionados ao seu destino, buscando vingança/reparação, o que acaba gerando um desenvolvimento não só do personagem, mas também auxilia a história a seguir seu fluxo na luta do bem contra o mal — tudo isso baseado na violência contra uma figura feminina.

Gail percebeu o absurdo desse modelo de história e criou um site, passando a listar todas as mulheres presentes em quadrinhos que haviam sido vítimas de algum tipo de violência, apenas para que seu par pudesse ter um motivo pessoal para ir atrás do vilão. Não tão surpreendente assim, em pouco tempo a lista se tornou enorme, comprovando o ponto da escritora. Já o termo “mulheres na geladeira” propriamente dito foi cunhado levando em conta um evento que, literalmente, representa o significado do tropo. Em 1994, durante uma história do Lanterna Verde na época Kyle Rayner —, o herói volta para casa, onde encontra a namorada, Alexandra Dewitt, morta dentro da geladeira. O vilão, Major Força, a matou e a colocou dentro do eletrodoméstico com o objetivo de fazer uma “surpresa” para o Cavaleiro Esmeralda. A atitude se soma a séculos de violência contra a mulher e endossa as engrenagens machistas, sexistas e patriarcais da sociedade.

Personagens vítimas do tropo, como mostra a lista idealizada por Gail, não faltam e, com a febre de adaptações das histórias de super-heróis para o cinema e a TV, muitas produções perdem a oportunidade de revisitar essas histórias sob uma nova roupagem, cometendo os mesmos erros de décadas atrás. Muitas personagens não são encaradas com o devido olhar e não recebem um destino adequado. E é por isso que precisamos falar sobre Gwen Stacy.

Em 2014, rumores e imagens vazadas do set de gravação do segundo filme da franquia O Espetacular Homem-Aranha, apontavam que o filme seguiria uma das histórias mais controversas do personagem: The Night Gwen Stacy Died, de 1973. Na HQ, Stacy, então namorada de Peter Parker, é morta pelo Duende Verde, enredo que se tornou um dos mais comentados e relevantes do universo Marvel — o que, para muitos, demonstra o comprometimento dos roteiristas com a história do personagem ao adaptar a história para o cinema 41 anos depois; adaptação esta que significa colocar em cena uma mulher morta apenas para que seu interesse amoroso possa perder a inocência e ganhar um desenvolvimento mais profundo e sombrio.

Cansamos de ouvir tio Ben dizer que “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.” Ser um herói é algo nobre, cheio de perigos e encargos, e significa carregar um peso enorme: o de ser responsável por salvar pessoas e mantê-las seguras. Ser escritor, roteirista ou estar envolvido no processo criativo de alguma produção, especialmente voltados para consumidores de cultura popular, também demanda uma grande responsabilidade, resultado do enorme poder e influência que essas produções possuem junto ao público.

Gwen Stacy

Meu primeiro contato com Gwen Stacy ocorreu em Homem-Aranha 3, quando Tobey Maguire ainda encarnava o papel e o Amigo da Vizinhança não havia sofrido tantas tentativas de recontar sua histórias. Com um papel mal desenvolvido e subtilizado, também centrado em servir ao “bem maior” e contribuir para que o personagem principal alçasse seu lugar como super-herói, a personagem não me saltou aos olhos. Já em 2012, quando Andrew Garfield se tornou responsável por dar vida a um dos heróis mais queridos da Casa de Ideias, Gwen Stacy foi escolhida para ser o par romântico do personagem, deixando o arco com Mary Jane para outro momento (que nunca chegou a acontecer devido ao cancelamento da franquia). Interpretada com maestria por Emma Stone, tão confortável na pele da personagem, enriquecendo o filme com sua energia, presença de tela, talento e inegável química com Garfield, Stacy se tornou, ao final do primeiro filme, uma grata surpresa, uma personagem feminina que tomei como modelo e que podia ser admirada pois divergia, mesmo minimamente, das representações batidas e repetidas incansavelmente das garotas que se relacionam com super-heróis em ascensão.

Naquele tempo eu ainda não sabia, mas estava ansiosa por personagens desse tipo, cansada de ver mulheres que eram repetidamente salvas pelos outros, nunca tomando as rédeas da situação, tratadas com condescendência ou deixadas no escuro “para a própria segurança”, tendo tirado de si o poder de decisão sobre a própria vida. Mesmo que Gwen Stacy resvale em alguns desses clichês (principalmente no que diz respeito a sua segurança, que é mantida na mão de terceiros, mesmo que isso signifique anular suas vontades), no momento em que não se deixou reprimir pela insistência de Peter em lidar sozinho com a ameaça do vilão Lagarto e teve um papel tão relevante quanto o dele para salvar a cidade, criando um antídoto, enfrentando a presença do vilão e vencendo seu medo, ela se mostra uma personagem fora da curva, com atitude e comportamento independente e personalidade tridimensional, que faziam a experiência de ser fã de super-heróis valer a pena.

Três anos do lançamento de O Espetacular Homem Aranha: A Ameaça de Electro se passaram, o cenário na cultura pop não parece ter mudado muito e, finalmente, resolvi assistir o filme e enfrentar o fantasma da morte de Gwen, que pairava acima da minha cabeça toda vez que alguém mencionava a franquia. Achei que o tempo curaria as feridas e eu aceitaria que Gwen havia sido colocada na geladeira e que não sairia de lá tão cedo. Mas ver o brilhantismo da personagem, ainda mais evidente nesse segundo filme, sua inteligência, sagacidade, força de vontade, independência, atitude e personalidade serem colocados de lado, chutados para segundo plano, em detrimento de sua morte, justificada por servir  a um “bem maior”, ainda dói. Acredito que sempre irá doer.

Gwen Stacy

O caminho trilhado pela personagem, mesmo que nem sempre perfeitamente escrito pelos roteiristas, se encaminhava para algo que não deveria ser, mas era inovador. Estagiária da Oscorp, Gwen tinha um talento para a ciência e uma vontade irreprimível de fazer um nome na área. “Isso é algo que eu realmente quero”, diz ela para Peter ao contar para o ex-namorado que irá para Oxford. Nesse momento, fica claro que, por mais que o ame, ela não deixará que isso se sobreponha ao seu sonho. As prioridades e o caráter de Gwen Stacy estão bem claros dentro de sua cabeça e são transmitidos de forma sucinta, principalmente quando ela não dá ouvidos ao protecionismo de Peter e ajuda a salvar a cidade, pois sabe que tem o conhecimento necessário para derrotar o arqui-rival da vez. Ela não é apenas mais um par romântico de um super-herói, alguém que parece estar sempre correndo para alcançar o namorado e ter a chance de ser vista como igual; Gwen assume com naturalidade o papel de parceira — em todos os sentidos — de Peter. Ela se coloca como igual, dividindo o protagonismo com Parker, até que esse papel lhe seja, finalmente, atribuído. Até que a normalização da violência contra a mulher acaba por excluir uma representação que se tornaria uma luz no fim do túnel e se somaria aos poucos bons exemplos que podemos identificar nas telas.

Afinal, levando em conta tudo o que sabe sobre a personagem, qual é a coisa mais importante sobre Gwen Stacy? Você pode lembrar que ela era uma personagem feminina badass, que lhe servia de modelo e inspiração, mas no fim do dia, tudo o que vai importar é que ela está morta, que pagou o preço, foi punida, por desviar minimamente da rota, por não desempenhar bem o papel de vítima a ser resgatada ou obedecer quando lhe dissessem para recuar e viver passivamente ou, ainda, por ser enxerida e não deixar que os heróis fizessem o seu trabalho. No final, não só Gwen perdeu a si mesma, lhe sendo tirada a chance de seguir os seus sonhos e se tornar a melhor versão de si mesma, mas nós também a perdemos.

“I defend on principle their [Marc Webb and company] rights as artists to tell any story they choose, but what was groundbreaking 41 years ago is not just cliched but indicative of a cultural issue, in terms of how females are utilized and valued in pop entertainment.”

“Eu defendo em princípio o direito deles [Marc Webb e companhia] como artistas de contar qualquer história que eles escolham, mas o que foi inovador há 41 anos não é apenas clichê, mas indicativo de uma questão cultural, em termos de como mulheres são utilizadas e valorizadas em entretenimento pop “

A questão é que, como bem diz a citação de Scott Mendelson, em um artigo para a Forbes, os sinais de um problema cultural são claros. Enquanto eventos e atitudes podem influenciar a mídia e o conteúdo por ela veiculado, os produtos e informações que consumimos ajudam a construir, mesmo que seja uma pequena parte, o que somos e o nosso caráter. Então, quando séries de TV e filmes, e até livros, enquadram sucessivamente suas personagens femininas em estereótipos nocivos, as tornando um mero recurso narrativo, vítimas de violência e as incluem na trama com o objetivo único de servir ao protagonista masculino, reduzindo seu papel na história ao de um meio para chegar a um fim, isso afeta a visão das pessoas sobre o papel da mulher em sociedade e molda o modo como somos tratadas e vistas.

Gwen Stacy

O drama vivido por Gwen, Batgirl, Elektra, as diversas mulheres de Arrow e, inclusive, por Sansa Stark, mesmo que ela ainda não tenha se tornado uma vítima fatal, ao serem colocadas por seus criadores na geladeira, reflete, de forma assustadora, o que cada mulher precisa enfrentar aqui, no mundo real, onde Duende Verde, Coringa e roteiristas da CW não existem, mas figuras como um homem acusado 14 vezes de agressão sexual andam livres pelas ruas e no ônibus. Explorar, gratuitamente, a violência contra a mulher, desumanizar a figura feminina e reduzir o seu papel ao de um simples plot device em nada contribui ou ajuda a avançar no combate a esse tipo de comportamento na vida real. Em pesquisa feita pelo Datafolha, e divulgada no Dia Internacional da Mulher deste ano, dados apontam que uma em cada três mulheres já sofreu algum tipo de violência no país no último ano. Estatísticas como essa não surgem do nada, mas são frutos de um contexto social, político e cultural, no qual tropes tóxicas reproduzidas sem qualquer desconstrução pela cultura pop ajudam a normalizar e endossar comportamentos abusivos e violentos, prestando um desserviço não apenas para o espectador que recebe um produto duvidoso no conforto de sua casa, mas também para cada mulher que acaba sendo induzida a sentir medo por nenhum motivo além do fato de ser quem é.