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De Espaços Abandonados: um desafio aos limites da literatura convencional

Luisa Geisler é daquelas autoras cuja carreira dá orgulho acompanhar — mesmo sem conhecê-la de perto. Aos 27 anos, ela lançou seu quarto livro e terceiro romance, De Espaços Abandonados, depois de ver toda sua bibliografia ser premiada. Luisa venceu o Prêmio Sesc de Literatura duas vezes, logo com seus dois primeiros livros, Contos de Mentira (2010) e Quiçá (2011) — também finalistas do Jabuti. Ela ainda foi semifinalista do prêmio Oceanos com Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente (2014), seu terceiro livro. Consolidada, portanto, como prodígio da literatura nacional, a expectativa em torno do lançamento de seu quarto livro — quatro anos depois de Luzes de Emergência — era grande, e foi justo com ele que fui introduzida à escrita da autora.

De Espaços Abandonados é um calhamaço de mais de 400 páginas, mas são páginas que fluem com muita facilidade, mesmo que a matéria que as preenche não seja de fácil digestão. O fio condutor da narrativa, aquele que vem na quarta capa do livro, é a busca de uma mulher pela mãe desaparecida, dada como morta, que ela acredita estar na Irlanda. Mas esse fio logo se dilui — na verdade, ele nunca é muito sólido, dentro de um romance que desafia as narrativas tradicionais — para abrir espaço para várias outras histórias de brasileiros autoexilados na Irlanda em busca daquele ideal da vida melhor no estrangeiro, ideal que aos poucos também vai se dissipando para todos eles, que já não sabem mais muito bem dizer o que buscam e por que estão lá invariavelmente passando trabalho.

Digo que o fio condutor se dilui, mas a verdade é que muito se dilui em De Espaços Abandonados, um livro que Luisa apresentou em entrevistas como uma obra que “é esquisita, que a estrutura é diferente”. E ela é, no mínimo, diferente. O livro reúne cartas, postagens em blogs, anotações feitas em arquivos no bloco de notas, ou em papel, ou ainda citações diretas ou referências a outros autores (Elvira Vigna, ou trechos muito acadêmicos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ou então o escritor irlandês por excelência James Joyce) (é claro). Mas o livro é, principalmente, um exercício de escrita. A segunda das três partes do romance, que toma 300 de suas 400 páginas, é na verdade um manual de escrita que abre espaço para que fichas de personagens sejam preenchidas e para que 366 perguntas sobre os mais variados temas sejam respondidas em forma de cenas de um romance. As fichas nem sempre são preenchidas por completo, ou então vêm com respostas elípticas. As perguntas nem sempre são respondidas, por vezes têm respostas que se aproximam apenas tangencialmente do tema proposto, às vezes fogem a ele de modo tão completo que é divertido tentar procurar a conexão — e se ela de fato existe, porque às vezes não existe mesmo.

O exercício de escrita que preenche o livro assume a forma de diversos narradores, alterna entre a primeira e a terceira pessoa, e as vozes por vezes soam muito semelhantes. Leva um tempo até que fique claro que trocamos de ponto de vista. Se a experiência de Maria Alice em busca da mãe perdida é desconcertante, não traz as respostas certinhas que ela certamente gostaria de encontrar e levanta muito mais perguntas do que respostas — perguntas que frequentemente não se relacionam em nada com sua busca inicial —, a experiência de leitura é tão desconcertante quanto. Mas não de um jeito irreversível. Nas primeiras páginas são muitos personagens, situações e relações jogadas sobre o leitor de modo confuso, mas isso logo passa e é fácil se situar naquele universo de relações. De Espaços Abandonados é um livro literalmente movido a perguntas que levanta muitas, muitas outras questões, mas até certo ponto ele carrega o leitor pela mão e nunca parece ter sido escrito com o objetivo de ser propositalmente confuso.

Apesar dos esforços de Luisa em desafiar os limites da literatura mais convencional, no entanto, o que mais encanta em seu livro ainda é sua capacidade de criar vozes e personagens aos mesmo tempo profundamente irritantes e cativantes, por vezes absolutamente insuportáveis (não seríamos todos nós assim em nossos monólogos internos incessantes?), mas muito humanos. Não é a toa que Maria Alice esteja sempre fazendo anotações e seja adepta do people watching — ou simplesmente observar pessoas, a partir de uma distância segura, como se elas fossem uma interessante espécie desconhecida do reino animal. Seus exercícios com narradores em primeira ou terceira pessoa, com pontos de vista, parecem enfim dar resultado. Algumas vozes são mais interessantes do que outras (eu definitivamente poderia ter passado menos tempo no monólogo interior de Bruna), mas as jornadas atravessadas por essas vozes compensam.

Um dos aspectos mais interessantes do romance é justamente a maneira como ele explora as jornadas de autoexílio que um grupo de pessoas muito diferentes, atravessando momentos diferentes da vida, impõem a si mesmas em busca de alguma coisa inexata que inevitavelmente as escapa. A própria Luisa foi uma entre os muitos brasileiros que se deslocam para a Irlanda ano após ano, e provavelmente sua estadia no país e entre as comunidades de imigrantes brasileiros que lá se formam tenha feito muita diferença na hora de colocar no papel aquilo que ela já se perguntava antes de viajar:

Eu me questionava por que tantos brasileiros iam para aquele país, e não para a Austrália, por exemplo. O que aconteceu é que eu fui para a Irlanda com algumas respostas. Lá, essas respostas se inverteram e se tornaram mais perguntas. […] É um livro movido a perguntas. O manual é cheio de questões que devem ser preenchidas, mas às vezes as respostas não têm nada a ver com o que foi questionado, e abrem novas perguntas — Luisa em entrevista à Zero Hora.

Se o livro não traz muitas respostas — até porque algumas perguntas simplesmente não parecem ter de fato respostas bem definidas —, não deixa de ser interessante explorar as questões que ele levanta. E a busca.

A grande busca que em teoria move a narrativa está menos diretamente presente do que eu esperava e do que a sinopse faz acreditar que estaria. Minha própria curiosidade e fascínio pelos espaços abandonados e pelas pessoas que os exploram e documentam foi um dos principais motivos por que o livro me atraiu instantaneamente. E eles aparecem aqui e ali, mas o foco não é esse. Os lugares abandonados do título parecem dizer respeito muito menos a espaços físicos do que aos caminhos tomados e logo descartados nas existências desse grupo de personagens perdidos — e no próprio livro. Nesse sentido, ainda que eu saiba que não é justo criticar uma obra por ser o que é e não o que eu gostaria que fosse, continuo achando uma pena que o livro acabe dedicando tão pouco tempo a tramas com potencial para serem tão ricas, como não só a busca (no plano físico, material) de Maria Alice pela mãe, mas também toda a vida que elas viveram antes disso. De espaços abandonados de fato. Mas o próprio livro dá a dica, lá nas suas primeiras páginas, de que estamos diante de uma narrativa sinuosa, cheia de meandros, que vai tomar muitos rumos que serão logo descartados independentemente de nossas expectativas. Fomos avisados desde o começo (ainda assim: eu leria, com todo o gosto, o prequel de Maria Alice).

De Espaços Abandonados se configura como um livro para quem está disposto a experimentar uma narrativa diferente, a estar aberto para receber poucas respostas, e que em alguns momentos funciona melhor do que em outros. Luisa é inegavelmente talentosa, especialmente ao delinear personagens muito vívidos. Também é admirável sua vontade de experimentar com formas novas e inesperadas de se escrever um romance; e ele é ambicioso, e é inventivo, e é desafiador, mas não soa pretensioso, até porque Luisa parece passar longe de ser ela mesma pretensiosa. Ao fim do livro, apesar da sensação de que algumas escolhas funcionaram melhor do que outras e da minha impressão particular de que eu provavelmente gostaria mais de ter lido a história que não foi contada aqui, é impossível não sentir curiosidade sobre os próximos caminhos — sinuosos ou não — que a escrita de Luisa irá tomar.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a editora Companhia das Letras.


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