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Os prêmios de atuação: a cota feminina nas premiações?

Dentre os indicados a Melhor Filme nessa edição do Oscar, está Estrelas Além do Tempo. Ele não é só um filme com uma temática relevante ao extremo, com histórias que inacreditavelmente estavam escondidas até hoje, como lembra o título original, e que ganhou nossos corações. Também é o primeiro filme com elenco principal majoritariamente feminino a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Filme desde 2012, quando Histórias Cruzadas foi indicado. Ambos os filmes foram dirigidos por homens. Neste ano, pelo menos dois filmes são protagonizados majoritariamente por homens: Até o Último Homem A Qualquer Custo. No ano passado, SpotlightA Grande ApostaPonte dos Espiões e O Regresso.

Entre as indicadas a Melhor Atriz em 2017, apenas Emma Stone protagoniza um filme que concorre ao prêmio mais aguardado da noite — protagonismo este que divide com Ryan Gosling, também indicado. Entre os atores, apenas Viggo Mortensen protagoniza um filme não indicado. Ano passado, as coisas foram um pouco mais parelhas: dois atores e duas atrizes indicadas por filmes que concorriam a Melhor Filme. Em 2015, quatro atores contra uma única atriz — Felicity Jones, que dividia o protagonismo com Eddie Redmayne. Foi olhando para esses dados que nos perguntamos: com que frequência histórias sobre mulheres concorrem ao Oscar? Com que frequências os filmes protagonizados pelas indicadas a Melhor Atriz concorrem ao Oscar? E as atrizes coadjuvantes, são coadjuvantes em relação a quem?

Diferentemente do que acontece nas outras categorias, as quatro de atuação são as únicas divididas por gênero, de modo que é garantido que pelo menos 10 indicadas todos os anos sejam mulheres. Por trás das câmeras a história é outra. Em 2017, chegamos à edição de número 89 do Oscar. Um estudo publicado no ano passado pelo Women’s Media Center demonstrou que, entre 2005 e 2016, incríveis 19% dos indicados às categorias que não fossem de atuação eram mulheres. Esse ano, por exemplo, novamente não tivemos nenhuma diretora indicada ao prêmio de direção (foram apenas quatro ao longo de todo esse tempo) e apenas uma roteirista indicada, além de um filme dirigido por mulher na categoria de filme estrangeiro e na de documentário. O que quer dizer que, de modo geral, praticamente todas as atrizes indicadas em 2017 estão ajudando a contar histórias roteirizadas por homens e dirigidas por homens — ainda que sejam, como é o caso de Estrelas Além do Tempo, histórias inegavelmente sobre mulheres.

O problema é, claro, maior que o Oscar. O último relatório publicado pelo Center for the Study of Women in Television and Film a respeito das mulheres diante das câmeras considera as 100 maiores bilheterias de 2016 nos Estados Unidos, o que inclui oito dos nove indicados a Melhor Filme na edição atual do Oscar (a exceção sendo Moonlight). O estudo demonstrou que em 2016 mulheres representaram 32% de todos os personagens com falas, 37% dos personagens principais e 29% dos protagonistas (personagens a partir de cujo ponto de visto a história era contada). As duas últimas porcentagens foram considerados picos na história recente; no caso dos personagens com fala, houve uma leve queda em relação ao estudo realizado no ano passado: o número de mulheres caiu de 33% para 32%. Já os homens representaram 68% dos personagens com falas, 63% e 54% dos protagonistas (nesse item, o restante da conta é fechado com 17% de filmes sem um protagonista claro).

O estudo ainda reporta dados demográficos extremamente relevantes levando-se em consideração o contexto maior, que inclui o #OscarsSoWhite e o fato de que para as atrizes envelhecer não é tão simples quanto é para os atores. Cruzar esses dados é muito importante quando nos perguntamos não só se mulheres são representadas no cinema, mas quais mulheres e que tipo de representatividade é essa. Porque se todas as porcentagens estivessem lá nos cinquenta por cento, mas esse número fosse composto só de mulheres brancas com menos de 35 anos, continuaríamos tendo um problema sério a resolver. Nesse texto em especial, nem chegamos a questionar que tipo de participação feminina estamos vendo, e ainda assim os números são bastante questionáveis. Fica claro que o Oscar e Hollywood ainda têm muito a rever, em relação a gênero, em relação a raça e em relação a que tipo de histórias escolhem contar e premiar.

Mas se o problema é mais fundo que o Oscar, será que a gente pode reclamar do Oscar? Pode, sim. Como argumenta Helena Bertho na Revista AzMina:

“[S]erá que a instituição da Academia, considerando toda sua importância em ratificar e fomentar essa indústria, não deveria estimular a igualdade de gênero no mercado e nas produções? Estou falando sim de cotas ou de categorias específicas para isso.

Afinal, premiando como premia hoje, ela está estimulando que a indústria do cinema continue exatamente como é: machista.”

A importância que o Oscar dá para os filmes que levam a premiação é facilmente medida em números, como explica Pablo Villaça no Cinema em Cena:

“[D]epois de vencer o Oscar no ano passado, por exemplo, Spotlight teve um aumento de 140% na venda de ingressos nos Estados Unidos e outros 100% no restante do planeta. Mais precisamente, um Oscar de Melhor Filme tende a adicionar uma média de 14 milhões de dólares à bilheteria do vencedor; o de Melhor Diretor, cerca de 11 milhões.”

Ou seja: não dá para negar a influência do Oscar nessa indústria. E a edição de 2017, que procurou responder as justas críticas que recebeu por dois anos seguintes devido à falta de diversidade, deixa claro que não existe falta de talento ou falta de qualidade que justifique uma premiação tão branca — assim como não existe falta de talento ou qualidade que justifique uma premiação tão masculina.

Melhor Atriz x Melhor Filme: uma conta que quase nunca fecha

Se mulheres concorrem necessariamente ao prêmio de Melhor Atriz na cerimônia do Oscar, estariam seus filmes, de maneira simultânea, concorrendo ao prêmio de Melhor Filme? Vejamos o que está acontecendo com a premiação deste ano: das atrizes concorrendo ao Oscar, apenas o filme de Emma Stone, La La Land, concorre também na categoria de Melhor Filme. Ao seu lado, as atrizes que estrelaram filmes como Jackie, Elle, Florence: Que Mulher é Essa? e Loving não puderam ver seus trabalhos concorrendo à categoria principal da noite. Seriam suas histórias menos importantes ou relevantes do que Manchester à Beira-Mar, que conta a história de luto de um homem, ou Até o Último Homem, mais um longa sobre guerra? Não é preciso desmerecer tais filmes para enaltecer aqueles que contam histórias sobre mulheres, mas qual a diferença entre eles para que não tenham sido indicados como Melhor Filme?

Em 2016, quando Brie Larson recebeu o Oscar de Melhor Atriz por seu trabalho em O Quarto de Jack, o único outro filme protagonizado por uma mulher nessa categoria foi Brooklyn. Se levarmos em consideração o co-protagonismo de Rachel McAdams e Mark Ruffalo em Spotlight, essa conta sobe para três, mas o estúdio responsável pelo longa decidiu indicar ambos os atores como coadjuvantes — o que só dificulta nosso entendimento nessa história toda. As outras atrizes concorrendo com Brie e Saoirse Ronan, eram Charlotte Rampling por 45 Anos, Jennifer Lawrence por Joy: O Nome do Sucesso, e Cate Blanchett por Carol — nenhum dos filmes, como se sabe, foi indicado ao troféu de melhor da noite. Em 2015, apenas o filme pelo qual Felicity Jones foi indicada, A Teoria de Tudo, concorria a esta estatueta e, mesmo assim, ela dividia os holofotes, como citado anteriormente, com Eddie Redmayne. E onde estariam os filmes protagonizados por Julianne Moore (Para Sempre Alice), Marion Cotillard (Dois Dias, Uma Noite), Rosamund Pike (Garota Exemplar) e Reese Witherspoon (Livre)?

De acordo com o Center for the Study in Television and Film da Universidade de San Diego, na Califórnia, 2016 foi um ano que mais mulheres protagonizaram filmes. Os dados levantados pela pesquisa demonstram que 29% dos papéis de protagonistas dos filmes mais vistos no ano que passou foram de mulheres. Embora os números tenham crescido em 7% com relação aos dados colhidos em 2015, homens ainda representam 54% dos papéis principais enquanto elencos mistos complementam o levantamento com 17% dos filmes analisados. Com números baseados nas 100 maiores bilheterias de 2016, os pesquisadores de San Diego conseguiram demonstrar que há cada vez mais mulheres encabeçando grandes filmes, tais quais Rogue One: Uma História de Star Wars e A Chegada, apenas para citar alguns exemplos.

Mesmo que Hollywood esteja, finalmente, criando enredos encabeçados por mulheres, isso não se reflete nos filmes indicados à categoria mais importante da noite. Com algumas poucas exceções, o que continuamos a ver, ano após ano, é o filme “padrão Oscar” recebendo a estatueta de Melhor Filme — histórias sobre homens brancos e héteros contando a respeito de suas próprias dores e lutas.

Coadjuvantes em relação a quem?

A questão dos atores e atrizes coadjuvantes nem sempre é muito clara. Os estúdios elegem uma categoria para indicar um ator em determinado filme e o votante geralmente segue essa determinação, mas não necessariamente. Muitas vezes as pré-indicações são baseadas em estratégias que garantam indicações mais fáceis, embora elas nem sempre façam muito sentido. Achar uma definição exata do que distingue Melhor Atriz de Melhor Atriz Coadjuvante não é uma tarefa fácil. Em alguns casos, fica mais evidente: o tempo de tela é muito menor, as histórias daqueles personagens que são considerados coadjuvantes não são contadas ou tomam muito menos tempo e relevância no conjunto. Mas e um filme como Spotlight, grande vencedor do ano passado? Rachel McAdams e Mark Ruffalo foram ambos indicados como coadjuvantes — mas quem seria indicado como atriz ou ator principal? Existe um personagem principal nessa história? E quando as categorias parecem ter sido invertidas? Na atual edição, por exemplo, Dev Patel foi indicado como coadjuvante por seu trabalho em Lion, embora seja difícil encontrar outro protagonista no filme. Seria ele coadjuvante em relação a Sunny Pawar, que interpreta a versão mais jovem do mesmo personagem?

Por isso, levantar números em relação a quem as atrizes são coadjuvantes é praticamente impossível — até porque, para começar, não existe uma definição clara para as duas categorias. Ainda assim, é possível fazer alguns levantamentos mais certeiros. Nos últimos vinte anos de premiação, 49% das atrizes coadjuvantes indicadas estavam em um filme indicado a Melhor Filme, bem como 49% dos atores coadjuvantes. Esses números sempre foram muito parelhos: entre 1998 e 2009, 40% das atrizes contra 38,3% dos atores. De 2011 até 2017, ambas as porcentagens subiram: 62,5% das atrizes contra 65% dos atores.

 

Porque nem sempre é uma tarefa fácil ou segura determinar o protagonista de um filme, comparamos apenas os casos em que tanto um coadjuvante quanto um protagonista foi indicado a um Oscar de atuação. É evidente que esses dados não representam um panorama completo a respeito de quem protagoniza as histórias das quais mulheres são coadjuvantes, mas é uma investigação inicial para que tenhamos uma ideia. Ao longo dos últimos vinte anos, 58% das atrizes coadjuvantes eram coadjuvantes em relação a algum ator ou atriz indicado como protagonista, contra 42% dos atores. Desses 58% de atrizes, 56,9% eram coadjuvantes em relação a um homem, 37,9% em relação a uma mulher e 5,2% em relação a ambos. Dos 42% de atores, 58,5% eram coadjuvantes em relação a um ator, 34,1% em relação a uma mulher e 7,4% em relação a ambos.

Quando consideramos apenas atores e atrizes indicados por filmes que também concorriam a melhor filme a coisa muda muito pouco — 30,3% das atrizes  28% dos atores passam a ser coadjuvantes em relação a uma atriz; em compensação, 9,1% das atrizes e 12% dos atores passam a ser coadjuvantes em relação a uma atriz e a um ator ao mesmo tempo.

Poderia ser apenas o caso de todos esses atores e atrizes coadjuvantes estarem contracenando com atrizes principais pouco talentosas e, portanto, não reconhecidas pela Academia? Em tese, poderia. Mas estamos falando de uma indústria que dá o protagonismo às mulheres em apenas 29% dos casos. Fica fácil concluir que o mais provável é que todos esses atores e atrizes coadjuvantes simplesmente não estão ajudando a contar histórias sobre mulheres, simples assim.

Protagonistas de verdade?

representação feminina no oscar

Levando em consideração as suspeitas levantadas pelos dados apontados acima, o sexismo evidente da Academia e da premiação como um todo levanta uma última questão: as indicadas a Melhor Atriz seriam realmente as protagonistas em seus respectivos filmes? Seria essa a categoria em que as histórias femininas finalmente encontram seu lugar ao sol?

A resposta parece ser positiva, apesar de levantar algumas ressalvas. No levantamento estatístico realizado para este texto, constatamos que as indicadas costumam, de fato, ocupar papéis proeminentes, ainda que ao lado de contrapartes masculinas — o que não significa, necessariamente que nossas histórias estejam sendo contadas.

Neste ano, assim como em 2016, é possível dizer com alguma segurança que todas as indicadas estão no centro das histórias que protagonizam, mas em anos anteriores é possível levantar casos que dão margem a dúvidas. Um desses exemplos é A Teoria de Tudo, pelo qual Felicity Jones foi indicada em 2015. Não há dúvidas sobre a relevância da personagem Jane Hawking, interpretada por ela, nos acontecimentos — o próprio roteiro é adaptação do livro escrito por Jane —, mas a história que está sendo contada no plano principal não é a dela. A própria sinopse do filme deixa isso bem claro: “Baseado na biografia de Stephen Hawking, o filme mostra como o jovem astrofísico (Eddie Redmayne) fez descobertas importantes sobre o tempo, além de retratar o seu romance com a aluna de Cambridge Jane Wide (Felicity Jones) e a descoberta de uma doença motora degenerativa quando tinha apenas 21 anos“. Jane pode ser uma personagem principal, mas não dá para dizer que ela seja protagonista no sentido literal da expressão.

“Protagonista s.m. e s.f. O personagem mais importante de; ator ou atriz que representa o papel mais importante numa peça, novela, filme; o personagem principal de um livro.”

A justificativa pode estar no fato de, historicamente, mulheres ocuparem posições de coadjuvantes na vida. O lugar tradicionalmente feminino sempre foi o espaço privado, o lar. Os papéis femininos são o de suporte, de criar os filhos, cuidar da casa , fornecer apoio e estrutura para que os homens possam realizar seus grandes feitos na sociedade, no espaço público. Isso não significa que nós não vivamos histórias dignas de serem contadas, mesmo dentro desse contexto, mas que dificilmente elas são valorizadas o suficiente para ganhar lugar na cultura popular. Uma exceção a essa regra foi Histórias Cruzadas, que ganhou destaque mostrando que as pessoas e tramas que se desenrolam “nos bastidores” também precisam ser contadas (ainda que seja uma história repleta de problemas).

representação feminina no oscar

Apesar de tudo, esses casos que se aproximam de um “falso protagonismo” não chegam a ser a regra entre as indicações da categoria de Melhor Atriz. Em geral, esse é o lugar em que podemos entrar em contato com a história de mulheres que são esnobadas nas demais categorias. Não é exagerado dizer que a categoria Melhor Atriz é a verdadeira cota feminina do Oscar.

Mesmo dentro dessa categoria, ainda falta muita representatividade de raça e sexualidade, principalmente, mas em se tratando de histórias de mulheres, esse é o lugar onde vamos encontrá-las. É bom que exista essa cota, porque a alternativa seria que histórias de mulheres se tornassem completamente ausentes da premiação como um todo, mas continua sendo lamentável o fato de que nós continuamos a ser relegadas a um “nicho”, uma categoria própria onde nos deixam mostrar parte do nosso brilho simplesmente porque não resta outra opção (ou talvez até esse espaço esteja ameaçado na época pós-moderna em que vivemos, considerando que Bono Vox ganhou o prêmio de Mulher do Ano da revista Glamour em 2016).

A função de cotas, em geral, é de certa forma “discriminar positivamente”, garantir a representação de grupos que normalmente não teriam condições de atingir determinados postos por conta de barreiras estruturais. Assim como o racismo estrutural dificulta o acesso de indivíduos a diversos espaços, desde a universidade até premiações de cultura pop, o machismo faz o mesmo em relação às mulheres e suas histórias. Os dados concretos apresentados acima comprovam que não é especulação dizer que o Oscar é uma premiação sexista, que sistematicamente vira as costas e pretere mulheres em benefício de homens, se originando e contribuindo de forma cíclica para a manutenção da mentalidade patriarcal reinante na sociedade. A cota corporificada no prêmio de Melhor Atriz nada mais é do que uma brecha muito pequena para que nós mostremos a importância das nossas histórias, na esperança de estimular uma reforma nessa mentalidade. Mas só isso claramente não é o suficiente. Nem para mudar o status social das mulheres na vida, nem para melhorar significativamente a nossa situação dentro da própria premiação. O que nós esperamos é que chegue o dia em que o valor das nossas histórias e das nossas vozes seja sentido em todas as categorias, e não só naquelas feitas especificamente para isso.

Nossas histórias precisam ser mostradas não só para que nós ganhemos progressivamente confiança de que elas merecem ser contadas, mas também pela influência marcante que a cultura pop tem sobre a mentalidade social. A representação bem feita de personagens femininas e suas histórias pode e deve ser usada para gerar a conscientização de que mulheres são seres humanos completos, tão merecedoras de respeito e dignidade quanto qualquer outro membro da espécie. A relevância da questão vai muito além da mera representatividade. Nós precisamos desse espaço como instrumento de modificação da mentalidade social dominante que nos considera seres inferiores.

Texto escrito em parceria por Fernanda, Paloma e Thay.