Categorias: ENTREVISTA, LITERATURA

Arlindo: ninguém precisa existir sozinho

“Oi. Meu nome é Arlindo. Eu sempre imaginei como seria existir num lugar onde meu nome fosse outro. Se a cidade fosse outra. Se as pessoas fossem outras…eu não teria essa vontade de ir embora. Mas se fosse assim, eu não seria quem sou. E essa não é uma opção”. Arlindo Júnior é um adolescente que vive em uma cidade do interior do Rio Grande do Norte em meados dos anos 2000. E como todo bom adolescente está descobrindo as alegrias e tristezas de crescer.

O que começou como uma webcomic semanal publicada no Twitter de Luiza de Souza, também conhecida como Ilustralu, se tornou uma campanha de sucesso no Catarse e na HQ publicada pela Seguinte, selo jovem da editora Companhia das Letras, em 2021. Ao longo das páginas vamos conhecendo mais sobre a vida de Arlindo Jr, um fã de Sandy & Júnior que gosta de cozinhar, ajudar a mãe, cuida da irmã, e faz skin care com as amigas enquanto fofoca. Arlindo só quer ter a liberdade de viver sendo quem ele é. Contudo, ele não está imune ao preconceito e a violência dentro e fora de casa.

“Você vai descobrir ainda a parte boa disso tudo. Talvez as pessoas não mudem, mas é o jeito delas. Como cê vê as coisas que acaba mudando. Não vai ser ruim assim pra sempre, Lindo. E você não tá mais sozinho nisso.”

A HQ apresenta um bom equilíbrio entre os ataques que Arlindo sofre na escola e pela cidade, que vão desde piadinhas e zombarias até a agressão física, com os espaços de apoio que ele constrói com a mãe, avó, tia e amigos. A essência da história é justamente essa: mostrar que, por mais que pareça, nunca estamos sozinhos de fato. Quando somos atacados de tantas formas, ouvindo constantemente que o nosso existir não é certo, é fácil se perder no medo e na insegurança. Contudo, com o passar das páginas, Arlindo encontrar novas formas de reexistir.

Ainda assim, a remota possibilidade de viver um relacionamento, de se apaixonar e ser amado, parece um sonho distante para Arlindo. Não que ele não seus crushes e desejos, mas tudo sempre parece ficar no campo da imaginação. Como uma forma de se manter seguro, ele evita os riscos até não conseguir mais. Em casa, apesar do acolhimento que recebe da mãe e o carinho da irmã mais nova, seu jeito “afeminado” (entende-se isso por gostar de dançar, cantar, ajudar na casa e não agir como um menino escroto) causa raiva em seu pai que acaba atacando Arlindo física e verbalmente. “Tome jeito de macho, Arlindo Júnior”.

O pai de Arlindo, assim como muitas pessoas na cidade, cresceu naturalizando a LGBTfobia. Para ele, seu filho tem que ser “macho”, pegar “as menininhas”, não cozinhar. A maior desgraça que poderia acontecer seria o filho ser como sua irmã, a Tia Amanda, uma mulher lésbica que foi viver a vida longe dali. “Painho não foi brabo a vida toda, sabe? Ele gostava de mim. Mainha era mais feliz. Só faz tempo”. Ao longo das páginas, Luiza consegue evidenciar como as micros violências sofridas ainda na infância marcam a vida de qualquer pessoa.

Outros personagens que também estão passando por momentos de transformação ganham espaço, como Lis e Marisa, amigas de Arlindo. O despertar para a própria sexualidade em um ambiente pouco amistoso nunca é fácil, mas passar por isso enquanto vivencia um amor platônico torna as coisas ainda mais difíceis. Até então, Lis e Marisa só tinham se interessado romanticamente por rapazes, o que faz com que ambas fiquem assustadas pelo sentimento que começam a nutrir uma pela outra. Toda essa novidade aliada aos hormônios da adolescência só pode levar a um coração partido.

Ir descobrindo aos poucos esse interesse entre elas é quase um respiro ao longo da história. Faz o leitor querer entrar lá e colocar as duas para conversarem. Arlindo assume o papel de apoio para Lis, já que Marisa está focada em viver um relacionamento com Hugo, um dos colegas do grupo. Uma história de amor ao som de “Na Sua Estante”, da Pitty, merece um final feliz. Quando ambas finalmente resolvem ser sinceras sobre os próprios sentimentos é que as possibilidades se abrem. “Eu tentei muito guardar, tentei muito não pensar, tentei me convencer de que ficando com ele as coisas iam voltar a funcionar, mas parece que não adiantou”, Marisa diz para Lis.

Inseguro, Arlindo tenta ignorar o que sente por Pedro. Para ele é fácil se convencer de que o interesse que Pedro demonstra não pode ser real. É difícil confiar o suficiente para expor seus sentimentos a alguém quando se vivenciou tantas experiências ruins ao se fazer isso. Mas sentir o amor de Pedro, de mainha, de Lis e Marisa, de Dona Anja e Tia Amanda, faz com que Arlindo entenda que não está sozinho. Ele não precisa esconder quem é para ser amado.

Outro ponto importante para a história é fincar suas raízes no Rio Grande do Norte. Nos diálogos de Arlindo é possível ouvir um sotaque e entender certas vivências, como a da avó de Arlindo, Dona Anja, que é benzedeira e não perde a oportunidade de ficar na cadeira de balanço com seu fumo. Essa construção fortalece a narrativa, como explicou Luiza em entrevista a Mina de HQ (2020): “Ele não vai falar como um personagem de quadrinho, ele vai falar como, com as expressões que eu falo, mesmo que as pessoas não entendam. Porque quando você for ler Arlindo, eu preciso que você tenha um sotaque na sua cabeça e esse sotaque não é do Rio Grande do Sul nem de São Paulo”.

Luiza tem um traço lindo que transmite bem as nuances da história e que se fortalece com personagens bem construídos apesar de toda a narrativa ter sido feita “no estilo freestyle”, como ela revela no primeiro episódio da websérie ‘Arlindo Sou Eu!’, publicada em seu canal do YouTube. Com apenas cinco momentos chave em mente, ela utilizou toda a construção de personagens para dar liga a história. E tudo funciona tão bem que Arlindo foi indicado em cinco categorias do CCXP Awards 2022: Melhor Quadrinho (do qual saiu vencedor), Melhor Álbum, Melhor Quadrinista, Melhor Roteirista e Melhor Colorista (sério, as cores de Arlindo são incríveis!).

Como um bom novelão à brasileira, Arlindo causa uma série de emoções. Podemos rir em uma página e chorar em outra. Acredito que por isso tenha tantos leitores e fãs. Porque não é possível fugir das partes ruins da vida. E, de alguma forma, são essas partes que nos levam aos momentos bons. Somente a esperança de que a tormenta uma hora acabe nos mantêm dispostos a seguir em frente. O acolhimento que Arlindo encontra talvez não seja o cenário comum para quem é LGBTQIA+, mas ver isso, mesmo que na ficção, é um acalento para qualquer um que apenas quer se sentir amado sendo quem é.

“Na vida, às vezes a gente tem que bater de frente, Lindo. A gente não tá errado em existir.”

A seguir, você acompanha a entrevista que Luiza de Souza (Ilustralu) gentilmente concedeu ao Valkirias.

Roxo, amarelo e rosa são as cores predominantes em Arlindo. Tanto que as capas da edição em brochura e dura destacam essa paleta. Como as cores ajudam a entrar no universo de Arlindo?

LS: Em Arlindo são as cores que dão o tom da história. Elas te ajudam a entrar na mesma frequência que o personagem tem e a sensação de leveza se sobressai mesmo nas partes mais tristes — acredito que muito disso se dá por conta das cores.

Todos os personagens jovens estão se descobrindo de alguma forma, e não apenas na questão da sexualidade. Como foi explorar tantas nuances da adolescência e trazer um grupo que se une tanto pelas diferenças como pelo que têm em comum?

LS: Pra conseguir escrever sobre esses adolescentes eu precisei revisitar muito da minha própria adolescência e fazer muitas (MUITAS) perguntas sobre as vivências adolescentes das pessoas ao meu redor. Eu não me dava muito bem com as memórias dessa parte da minha vida, mas Arlindo (e a terapia simultaneamente) me ajudou a enxergar essa época com muito mais carinho. Achar bilhetes antigos, ler meus próprios diários, mergulhar nas músicas — tudo isso foi essencial pra que esse fosse um grupo muito real. A história inteira tem muito da minha vivência e da de vários amigos misturadas com um bocadinho de ficção.

Você começou a publicar Arlindo na internet. Como foi, ainda no espaço digital, perceber que estava alcançando tantos públicos que se sentiam acolhidos com essa história? E hoje, após campanha no Catarse, publicação, prêmios, como é ver Arlindo chegando a tantos lugares?

LS: Arlindo é uma história de amor. O amor dos amigos, amor de família, o amor das primeiras paqueras, mas principalmente pelo amor que cada um de nós deve ter por si mesmo. É isso que Arlindo aprende ao longo da história e foi muito do que eu aprendi enquanto escrevia. Acho que é isso que fica nas pessoas quando elas leem e acho que é esse o motivo dessa história receber tanto amor e reconhecimento de volta.

Em um país que registra altos índices de violência contra pessoas LGBTQIA+, qual a importância de mostrar personagens desta comunidade mais velhos, vivos e bem? Pode comentar um pouco sobre a personagem Tia Amanda e o papel dela para a trajetória de Arlindo?

LS: A gente (pessoas LGBTQIAP+ no geral) cresceu com pouquíssimas referências de bons futuros possíveis — seja no entretenimento ou na vida real, as perspectivas não costumavam ser das melhores, até muito pouco tempo. O papel de tia Amanda na narrativa é mostrar que ainda que a gente ache que tá sozinho nisso, sempre tem quem veio antes, quem abriu caminho, quem tava lá desde sempre mesmo à margem, mesmo quando os outros tentam abafar. Essa sensação de não estar travando uma luta sozinho, de perceber que existem outros jeitos de lidar, outros jeitos de viver plenamente, é poderosíssima. Arlindo sente e por tabela, quem lê sente também.

Na rede familiar e externa, Arlindo encontra maior apoio entre mulheres — como as amigas, a mãe, a irmã, a tia e a avó. Vemos essas personagens lidando com a questão da sexualidade de Arlindo de formas distintas, mas todas se colocam como uma rede de apoio para ele. Por que você fez essa escolha narrativa?

LS: As mulheres em Arlindo são um reflexo de vivências que eu observei ao longo da vida. É um caminho muito comum que o trabalho amoroso da atenção e do acolhimento venha das mulheres — isso reflete em Arlindo de uma maneira muito clara porque ele tem isso de lidar com as pessoas com carinho, acolher, ouvir. Ele aprendeu isso com elas.

No mercado editorial, as produções fora do eixo SP-Rio tendem a ganhar o carimbo de regionais. Te preocupa que possam colocar Arlindo em uma caixinha como se não fosse uma produção que dialoga com todo o Brasil tocando em temáticas tão abrangentes?

LS: Arlindo é uma história que tem raízes muito brasileiras — e olha que eu nem tô falando da benzedeira. As referências e as influências pra fazer esse quadrinho tem quase nada de estrangeirismos. As novelas como Malhação: Viva a Diferença; Mulheres de Areia; Velho Chico; Cordel Encantado, o cinema nacional com A Partilha; Lisbela e o Prisioneiro; Bacurau, o quadrinho nacional de Lu Caffagi, Jefferson Costa, Shiko. Arlindo se passa no interior do RN porque histórias bonitas podem acontecer em todo canto.

E você sente que de alguma forma está abrindo uma porta para que mais histórias como Arlindo seguem as prateleiras?

LS: Tem tanta história boa pra ser contada nesse mundo, sobre os mais diversos e interessantes tipos de gente. Arlindo é fruto de uma porta já aberta por todo mundo que leu e se apaixonou pela história. As pessoas anseiam por bons espelhos e eu fico feliz demais que Arlindo siga sendo um desses.


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