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Todos Já Sabem e uma estrutura familiar de cristal

Que Asghar Farhadi gosta de contar histórias sobre famílias não é de hoje. Seja em seu aclamado A Separação (2011), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2012, até O Passado (2013), seu antepenúltimo filme, as relações familiares fascinam o diretor. Acredito que aí resida a fórmula para seu cinema fazer tanto sucesso, porque Farhadi consegue contar histórias universais familiares, de perda e amor, sem deixar de mostrar as peculiaridades da cultura em que seus personagens estão inseridos.

Atenção: este texto contém spoilers!

Com isso, era de se esperar que Todos Já Sabem, seu mais recente filme, se debruçasse sobre dramas familiares. O filme abriu o Festival de Cannes em 2018, e conta a história de Laura (Penélope Cruz), que viaja de Buenos Aires até a Espanha para o casamento da irmã, Ana (Inma Cuesta). Depois de chegar na propriedade de sua família, no interior da Espanha, ela precisa enfrentar o sumiço da filha Irene (Carla Campa) no meio da festa de casamento.

É no mínimo interessante imaginar a dinâmica de filmagens e direção por trás de Todos Já Sabem. Isso porque o filme foi rodado em espanhol, mas dirigido por um diretor iraniano que usava intérpretes para se comunicar com a equipe. Muito se perguntou, durante a coletiva de imprensa em Cannes, sobre a barreira do idioma e Farhadi deu uma resposta muito interessante:

“Os seres humanos não são diferentes quando falamos em emoções, o que muda é a forma como demonstram isso”.

Dito isso, a barreira do idioma, como a equipe do filme costuma declarar em entrevistas, é mínima quando você olha a experiência de emoções que Todos Já Sabem nos proporciona. O drama vivido pela família de Laura é universal: um sequestro que torna um momento de celebração, o casamento, um pesadelo.

A barreira linguística também pôde ser vencida dado o entrosamento entre Penélope Cruz e Javier Bardem, antigos conhecidos de Farhadi. O diretor conheceu a atriz em Madrid há mais de cinco anos, ao passo que seu relacionamento com Javier começou em Los Angeles. Assistindo às coletivas de imprensa, percebi que a sétima arte ultrapassa qualquer empecilho; que o desejo de transmitir algo com a arte é, digamos, ilimitado. Em muitos momentos dessas conferências, os dois atores transmitem um sentimento de profundo respeito e admiração pelo diretor iraniano.

Todos Já Sabem demorou cerca de cinco anos para ser concluído, e no segundo ano Farhadi mudou-se para a Espanha, a fim de se familiarizar com o cenário no qual estava gravando. Além disso, para superar qualquer barreira linguística, ele aprendia os diálogos do filme, em espanhol, de cor, para poder dirigir os atores de uma maneira mais fácil. O resultado pode ser visto na tela: atuações que conseguem dosar muito bem o melodrama e o mistério.

Esta família é muito unida e também muito ouriçada

Todos Já Sabem

Logo que o filme começa e somos apresentados à família de Laura, é tudo colorido e vivo. É interessante observar como Asghar Farhadi nos apresenta essa família — é quase como se víssemos um filme de Pedro Almodóvar. Há uma genuína alegria entre aquelas pessoas, principalmente porque Ana e Laura estão indo passar uns dias na casa de uma terceira irmã, Mariana (Elvira Minguez), que administra um hotel no povoado.

As cenas da festa de casamento, onde se desenrola o sequestro de Irene, são a coroação de como essa família é aparentemente perfeita. Mesmo com alguns problemas aqui e ali, como o fato de Mariana ter ficado na Espanha administrando um hotel em ruínas, eles conseguem ser felizes e unidos. O casamento é filmado por um drone, de um dos alunos de Béa (Bárbara Lennie), a esposa de Paco (Barden), ex-namorado de Laura. As tomadas pelo drone são muito legais, pois enfatizam a importância da festa, o tamanho de sua pompa. Pelas filmagens realizadas, já temos alguma pista de que, mais tarde, o enfoque residirá sobre Irene, já que a câmera, tanto do drone quanto de Asghar Farhadi a deixam de lado. O diretor, através dessa festa, está construindo um castelo de cartas que em breve desmoronará.

É uma queda de luz põe fim a esse castelo de cartas. Alguém corta a energia da festa, mas todos estão muito bêbados para perceber que foi intencional. Neste momento, Irene, que estava deitada no andar de cima, já que estava tonta, desaparece. O que teria acontecido a ela? Por que alguém faria isso a ela?

Todos Já Sabem

A cena da queda de luz traz um elemento um pouco noir e de mistério à trama, algo que lembra muito a estrutura do filme Assassinato no Expresso Oriente, baseado no romance policial de Agatha Christie. No livro e nos dois filmes inspirados nele, um crime acontece nas sombras, no escuro, após todos irem dormir. Já em Todos Já Sabem, a ação se desenrola durante a festa, mas guarda outra semelhança com Assassinato: é a partir do plot twist que verdades sujas começarão a aparecer e pessoas começarão a se revelar.

Além disso, o sumiço de Irene guarda muitas semelhanças com outro filme do diretor iraniano, À Procura de Elly, de 2009. Nessa trama, a jovem do título desaparece sem deixar pistas. Esse foi o primeiro grande êxito de Asghar Farhadi internacionalmente, e ele venceu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Berlim. Porém, diferentemente do que ele fez em À Procura de Elly, Todos Já Sabem não é um filme sobre os costumes espanhóis, embora ele os retrate com muita precisão, mas um filme que universaliza o tema da família e das aparências.

A partir do sequestro de Irene, rachaduras no alicerce dessa família tão segura começam a aparecer. Para começar, existe o problema com o vinhedo de Paco. Ele, filho dos criados, acabou comprando-o de Laura, quando estava passando por um momento de dificuldade financeira, por um preço que os familiares julgam muito barato. Isso acontece porque os sequestradores de Irene pedem uma quantia exorbitante pelo resgate, e eles não têm como pagar. No entanto, Paco, por ser dono das terras do vinhedo, pode salvar Irene vendendo as terras. A discussão sobre a terra acaba mostrando o profundo rancor que a família sente por um criado possuir uma terra que foi o sustento deles durante muitos anos. Embora não vá a fundo nessa questão, Todos Já Sabem mostra um certo classicismo da família de Laura. Ela não aceita bem a questão do vinhedo, mas não hesita em aceitar a ajuda de Paco. É uma relação bastante hipócrita.

Todos Já Sabem

Dessa forma, o filme também aborda a questão da honra masculina. Pagar o resgate de Irene é uma questão de honra para Paco, uma forma de acertar as contas com seu passado. O patriarcado coloca o homem no centro família, e Todos Já Sabem mostra que, por isso mesmo, é o homem que deve solucionar a questão. Laura passa boa parte do filme estarrecida, fragilizada com o sequestro da família, e cabe a Paco assumir as rédeas da situação. Talvez por reunir essa família em busca de Irene e em torno de seus problemas, fica difícil ter um aprofundamento das personagens. Embora o filme tenha mais de duas horas, fica difícil entender os dramas de Laura, suas motivações para ter se envolvido com Paco, por que seu marido não foi com ela para a Espanha, porque eles não têm dinheiro. Nesse quesito, o filme deixa muito a desejar. Entretanto, se você olha pela perspectiva do drama familiar, faz sentido não mergulhar em cada uma das personagens. No fim das contas, a família é o cerne da questão.

Todos Já Sabem faz referência a um segredo de família que, como o próprio título já elucida, é conhecido por todos. Ele está diretamente ligado ao sequestro de Irene. Inclusive, uma das qualidades muito bacanas do filme é repetir diversas vezes essa frase, como se fosse um leitmotiv. No entanto, quando finalmente o segredo nos é revelado, fica a sensação de que a jornada valeu mais a pena do que a chegada. Todos Já Sabem sustenta muito bem o suspense, inclusive, subvertendo padrões. Em filmes noir, por exemplo, o suspense é quase sempre estabelecido pelas tomadas escuras, sombras nos rostos dos personagens, dentre outros. Em Todos Já Sabem, o mistério é todo sustentado de dia: não existem sombras, mas sim paisagens lindíssimas dos vinhedos do interior da Espanha. É muito interessante o que Asghar Farhadi faz.

Este talvez seja um dos filmes mais acessíveis de Asghar Farhadi. Algo nele se encaixa e ao mesmo tempo não se encaixa com sua filmografia. Só isso faz de Todos Já Sabem um filme que merece ser assistido. O espectador atento perceberá que o drama de cunho moral, tão caro ao diretor, está nas entrelinhas. Talvez seja uma nova incursão de Asghar Farhadi, não há como saber. O que temos como saber é que, mesmo sendo previsível, o filme nos entrega um bom uso das ferramentas do suspense, como o whodunit, e subversões desse gênero.