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Crítica: Capitão América – Guerra Civil

Em um universo onde super-heróis existem e super-vilões colocam a vida de milhares de civis em risco todos os dias; onde heróis fazem o seu trabalho sem qualquer supervisão, assumindo o risco de que as coisas podem dar errado, como garantir que uma tragédia não aconteça? Em Capitão América: Guerra Civil essa é uma pergunta norteadora, que abre espaço para uma discussão ética, política e moral sobre a atividade dos super-heróis, seus deveres e responsabilidades — uma questão que permeia todo o arco de Guerra Civil nos quadrinhos de Mark Millar e Steve McNiven, e também no romance adaptado por Stuart Moore.

Dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo (também responsáveis por Capitão América: Soldado Invernal), o filme guarda algumas diferenças em comparação ao material original, e o conflito entre dois dos maiores nomes do Universo Marvel acaba sendo apenas o ponto de partida para novos embates que trazem para o centro da história personagens que não teriam tanto destaque em uma adaptação 100% fiel aos quadrinhos: Bucky Barnes (Sebastian Stan), o Soldado Invernal; e T’Challa (Chadwick Boseman), o Pantera Negra.

É interessante como o desenvolvimento do filme acontece de forma quase independente; muitos dos elementos originais continuam presentes, mas são vistos por uma nova perspectiva e não necessariamente chegam a uma mesma conclusão. A missão na cidade de Lagos, na Nigéria, liderada por Steve Rogers (Chris Evans), é o que inicialmente desencadeia as primeiras discussões sobre o Tratado de Sokóvia (documento cujo objetivo é submeter os heróis a um pacto de responsabilidade sob o comando da Organização das Nações Unidas) e a necessidade de controle sobre as ações dos super-heróis — na tentativa de impedir que Ossos Cruzados (Frank Grillo) tome posse de um agente biológico, utilizando-o como arma, Wanda (Elizabeth Olsen) utiliza seus poderes para proteger Steve, mas acaba matando um grupo de civis em consequência, e o acidente desperta a atenção e preocupação dos líderes de diversos países. O acidente, no entanto, não é o único episódio a trazer a discussão à tona, embora seja o mais notório deles: a conversa de Tony Stark (Robert Downey Jr.) com uma mãe durante um evento no M.I.T (Massachusetts Institute of Technology) que perdera seu filho durante a luta dos Vingadores contra Ultron, também interpõe-se na discussão, adicionando novas nuances e tornando-a consideravelmente mais complexa.

Balançado com as palavras dessa mãe, Stark passa a acreditar que o melhor a ser feito é assinar o tratado e submeter os heróis a algum tipo de vigilância, garantindo a segurança de pessoas inocentes e que esses acidentes não se repitam. Steve, entretanto, não vê o controle como a melhor maneira de lidar com a questão; ao contrário, ele acredita que isso apenas os tornariam fantoches do interesse político de determinados agentes. Ambos os lados parecem possuir argumentos válidos, o que torna particularmente complicada a tarefa de escolher lados, e a discrepância entre eles revela o olhar distinto que cada um dos personagens projeta sobre um mesmo conflito. A discussão acaba levando-os a uma conferência em Viena, na Áustria, mas um ataque inesperado que põe fim à vida do rei de Wakanda faz com que ela assuma contornos mais urgentes, em especial porque T’Challa deseja se vingar do responsável — que, ao que tudo indica, trata-se de Bucky Barnes.

Em sua última aparição, Bucky estava sobre o controle da H.I.D.R.A, mas desde então seu paradeiro era incerto; nada que seja suficiente para fazer com que Steve acredite que ele seja o responsável pelo atentado. Some-se a isso a descrença de Rogers em relação ao Tratado de Sakóvia e a ruptura é inevitável — ruptura esta que dará o tom urgente do filme, mostrando como a dificuldade em chegar a um acordo pode ser fatal para o legado dos Vingadores. De um lado há Tony Stark, que une-se àqueles que acreditam na culpa de Bucky tanto quanto na validade do Tratado de Sokóvia; do outro, permanece Steve Rogers e seus aliados que tentam provar a inocência de Bucky ao mesmo tempo em que buscam garantir a liberdade dos heróis. E, no meio de tudo isso, manipulando os acontecimentos nas sombras, há Zemo (Daniel Brühl) que, com seu plano, pretende implodir os Vingadores de dentro para fora.

Capitão América: Guerra Civil tem todos os ingredientes que nos transformaram em fãs de filmes de super-heróis: as cenas incríveis de lutas, as interações entre seus muitos heróis, o carisma dos envolvidos e os alívios cômicos tão característicos. Após doze filmes, alguns seriados, incontáveis easter eggs e diversas cenas pós-crédito (isso sem mencionar os quadrinhos), a Marvel parece cada vez mais segura ao lidar com seu universo e costura referências de maneira bastante natural. Em Guerra Civil, além da trama sobre o Tratado de Sokóvia, também são apresentados dois novos heróis — Pantera Negra e sua Wakanda, lar de heróis e vibranium; e o Homem-Aranha (Tom Holland), um adolescente nerd e bastante empolgado com o novo universo que está descobrindo —, e suas estreias não poderiam ter sido mais adequadas.

As cenas do jovem Peter Parker, em especial, são uma das melhores passagens do filme. Em seus poucos minutos de cena é possível prestigiar a essência tão adorada do personagem nos quadrinhos. O humor, o deslumbramento (impossível esquecer o “hey Captain, big fan!”) e suas acrobacias inspiradas dão gosto de ver. A apresentação de Pantera Negra não fica atrás e chega com força para bater na tecla da diversidade. Introduzir um herói negro, vindo de um país tecnologicamente avançado e muito importante para o Universo Marvel é um passo de extrema importância que pode abrir espaço para outras histórias, incluindo as de heroínas negras, e fornece um vislumbre de seu potencial, ainda reservado ao filme solo, cujo lançamento é previsto para o primeiro semestre de 2018.

Outro ponto positivo são as participações da Feiticeira Escarlate e Viúva Negra (Scarlett Johansson). Ainda que o foco do filme não esteja em nenhuma das duas — muito embora o sentimento de culpa que Wanda carrega pelo incidente em Lagos pudesse render um interessante paralelo entre as perspectivas de Tony e Steve —, o tempo de tela das duas é muito bem aproveitado. As sequências de luta evidenciam suas habilidades, explorando belamente as particularidades de cada uma; seja na maneira letal como Natasha enfrenta seus adversários, seja em toda a força de Wanda — uma jovem que parece frágil em um primeiro momento e que é frequentemente tratada com condescendência por seus colegas, mas que não poderia estar mais longe do papel que lhe é atribuído. A partir do momento em que toma as rédeas de sua vida e passa a tomar as próprias decisões, Wanda vai em busca daquilo que acredita independentemente de ser ou não o que digam ser o melhor para ela. O mesmo ocorre com Natasha, que além de ser uma personagem extremamente complexa e com uma história de vida interessantíssima, foi uma das poucas (se não a única) a manter a cabeça no lugar durante todo o conflito, sendo fiel àquilo em que acreditava e olhando os acontecimentos com a racionalidade que muitas vezes falta aos seus companheiros.

Mas elas não são as únicas: praticamente todos os personagens encontram espaço para explorarem aquilo que existe de mais humano em si mesmos. A força com que essa característica surge torna incrível a percepção de que por trás de armaduras e super-poderes existem, antes, seres humanos tão complexos quanto complicados, que erram, ficam cegos ao defender aquilo em que acreditam e possuem uma centena de questões mal resolvidas (ou simplesmente não resolvidas), o que altera todo o olhar projetado sobre a narrativa. É por isso que, embora trabalhe muito bem a noção de lados, colocando dois de seus maiores nomes lutando em frentes opostas, Capitão América: Guerra Civil torna uma missão impossível torcer para um único lado, qualquer que seja; algo que, eventualmente, até mesmo os próprios heróis percebem. Se essa humanização não chega a gerar exatamente uma identificação, é importante notar como ela adiciona mais camadas aos personagens, tornando-os humanos ao invés de meras peças dentro de um jogo.

Nada disso significa que Capitão América: Guerra Civil não tenha problemas. É o caso, por exemplo, de Sharon Carter (Emily VanCamp), sobrinha de Peggy Carter (Hayley Atwell), que é inserida na trama apenas para ajudar o Capitão América e servir como interesse amoroso do próprio, sumindo do mapa em seguida. Se sua participação reduzida pode ser facilmente justificada pelo seu trabalho, que a impede de tomar frente na disputa, não deixa de ser incômodo que sua participação seja resumida em uma sucessão de fatos irrelevantes. A cena do beijo, sobretudo, incomoda justamente porque aparece de maneira totalmente deslocada dos outros acontecimentos, sem acrescentar absolutamente nada a ela. Se as reações de Sam (Anthony Mackie) e Bucky funcionam como um alívio cômico, há de se deduzir que existiam maneiras muito mais interessantes de desenvolver o breve relacionamento dos dois, adicionando variáveis mais complexas, como o fato de Steve ter se envolvido romanticamente com a tia de Sharon muito antes de ela nascer — o que, por si só, conduziria a narrativa a lugares menos óbvios.

Nesse sentido, também é importante pensar sobre o desenvolvimento de Wanda, cujo papel de maior destaque não faz com que seus sentimentos e conflitos internos sejam tratados com a mesma atenção. Se são os seus erros que culminam nas primeiras discussões sobre o Tratado de Sokóvia, o filme fornece apenas um vislumbre de como as consequências recaem sobre a própria Wanda; no centro não está sua culpa, mas a de Tony Stark, que remói os erros do passado e busca no documento, se não uma forma de redimir-se, ao menos uma maneira de evitar novos desastres. Wanda, contudo, é tratada com tanta condescendência quanto possível: praticamente todos os personagens a enxergam como uma criança incapaz de tomar as próprias decisões ou sem qualquer noção de seu próprio poder, necessitando de constante proteção contra si mesma — e é por isso que o momento em que ela conquista maior autonomia e decide o que ela quer, de qual lado ela vai ficar, significa tanto.

De modo geral, Capitão América: Guerra Civil é um filme que cumpre seus objetivos, consegue introduzir de forma coerente novos personagens, abre espaço para os filmes que virão a seguir e, principalmente, inicia de forma espetacular a terceira fase de seu universo cinematográfico. É um filme que empolga e emociona na medida certa, que entrega bons personagens (ainda que alguns sejam mal aproveitados) e apresenta discussões muito pertinentes — e se seus problemas são evidentes, não há dúvidas de que ele ainda é um dos melhores filmes produzidos pela Marvel até aqui.

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Texto escrito em parceria por Ana Luíza e Thay