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Happy Valley: reflexões sobre o espaço privado e público em uma série policial

Durante a quarentena, passei a procurar por séries policiais. Um tanto porque ao acompanhar uma investigação policial e ser levada pelo suspense, consigo me desconectar e fazer parte da trama investigativa. Em meio dessas buscas, encontrei a série de televisão britânica Happy Valley, escrita e criada por Sally Wainwright e estrelada por Sarah Lancashire (como a protagonista Catherine) e Siobhan Finneran (como Clare), que, para além do thriller investigativo, nos traz uma complexa reflexão sobre as consequências concretas após um ato de violência sexual.

E essa foi a minha grande surpresa, seu enredo e seus personagens refletem e nos provocam sobre temas atuais ligados aos direitos das mulheres. Coincidentemente, enquanto estava assistindo a série, acompanhava com angústia as notícias sobre alguns grupos de pessoas que não se sensibilizaram com a possibilidade de uma menina de 10 anos, vítima de violência sexual, poder interromper uma gravidez indesejada, e pior, se organizaram para obrigar essa criança, ainda que sua saúde corresse risco, a seguir com a gravidez. Essas pessoas, apesar do Código Penal excetuar a criminalização do aborto¹ em casos envolvendo violência sexual e diversas normativas de saúde disciplinarem o acolhimento de mulheres e meninas vítimas de tais atos, buscavam negar um direito estabelecido, de forma retrógada, sem qualquer preocupação real com as consequências caso a menina seguisse coma gravidez e conseguisse sobreviver a ela. E foi exatamente essa falta de compaixão com a o que pode ser esperado por uma menina de 10 anos ao ser obrigada a ser mãe que me levou a querer escrever sobre a série.

Atenção: este texto contém spoilers!

À primeira vista, Happy Valley poderia ser mais uma série policial protagonizada por uma mulher com conflitos pessoais que estão, de modo inevitável, ligados à sua condição de mulher, mas, para além do suspense investigativo e das problematizações do cotidiano policial, a série cria uma sobreposição única entre a vida de Catherine, sargenta de meia-idade, que vive o desafio de criar seu neto, Ryan (Rhys Connah), fruto de uma violência sexual sofrida por sua filha, e os crimes que ela investiga.

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É de se considerar o fato de que a personagem principal é uma policial avó. Isso porque, na maioria das vezes, as personagens principais precisam ser mulheres jovens e senxualizadas. Essa quebra de expectativa nos revela uma preocupação em trazer uma certa naturalidade à série, o que é muito importante para a construção de uma heroína de carne e osso. Entretanto, são os desafios que Catherine enfrentará para continuar cuidando do seu neto, em conjunto com sua irmã, Clare, que a tornam uma das heroínas mais incríveis no mundo das séries policiais.

No lado afetivo, Catherine renunciou ao marido e foi contra todas as expectativas para criar o filho de sua falecida filha, que se suicidou logo após gerar Ryan em razão da violência sexual que sofreu. E esse é o ponto chave da narrativa: como cuidar de uma criança que sempre lembrará a morte e o sofrimento de sua filha? Muitas pessoas, sem ponderar os significados concretos, pretendem obrigar mulheres a terem filhos oriundos de estupro, mas será que refletem sobre as consequências de tal imposição? Como essas mulheres e meninas vão olhar para essas crianças depois? Será a vida dessas mulheres uma penitência sem fim? E os familiares, como lidarão? E quais serão as expectativas em torno dessa criança? Como essas crianças irão se relacionar com seus pais, agressores sexuais de suas mães? Tais questionamentos são abortados pela série na medida em que Catherine irá confrontá-los.

Com dinamicidade, mas sem perder a complexidade das relações, Happy Valley aborda as contradições acima, construindo uma narrativa que consegue nos colocar no lugar de uma mulher que tem que lidar com os efeitos e rastros de uma violência sexual sofrida por sua filha.

Apesar de sua filha não a ter procurado para falar sobre a violência que sofreu — em razão da vergonha e culpa que paira sobre as mulheres violentadas sexualmente — Catherine não a julga por sua conduta. E, embora entenda que seu neto não tem culpa da violência sofrida por sua mãe, os sentimentos em torno dele são contraditórios, humanizando-a. Nesse sentido, Catherine não consegue evitar um sentimento conflitante de raiva e amor em torno de Ryan: raiva porque, toda vez que o observa, lembra do sofrimento e da morte da filha, mas amor porque ele é, também, o que restou da filha. É claro que, abstratamente, Catherine defende que Ryan não está fadado a ter a mesma conduta do pai. Contudo, os receios aparecem, sobretudo quando Ryan apresenta comportamentos problemáticos e agressivos na escola. Catherine não consegue evitar o medo de que Ryan busque o seu passado e queira de alguma forma se identificar com o genitor agressor. Como se relacionar com um pai que foi o catalizador direto do suicídio da sua mãe?

As tensões familiares tornam Catherine mais estourada no ambiente privado e super focada no trabalho — o que também favorece para criação de uma personagem complexa.

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Além de lidar com o machismo presente na corporação policial — quando, por exemplo, conta como conseguiu afastar o assédio de seu primeiro chefe —, possui um olhar atento para proteger outras mulheres que podem estar sofrendo uma violência sexual e/ou doméstica.

Mesmo com a dedicação e devoção admirável ao trabalho, Catherine é uma heroína inacabada, que possui suas imperfeições, o que a torna mais interessante e verossímil. Nesse sentido, ainda que aguente e se saia bem durante períodos de pressão no trabalho, tem muito menos paciência para lidar com as questões relativas ao neto. Do mesmo modo, apesar de se preocupar com a equipe policial, exagera ao bancar a durona com uma de suas subordinadas. A ideia de uma boa chefe mulher vem permeada de estereótipos, quase sempre relacionada à visão de uma mulher que deve liderar, mas sem perder a delicadeza, que deve se impor, mas não demais, que deve ser eficiente, mas não assustar. Catherine não está alheia a esses estereótipos, mas o interessante da personagem é exatamente a desconstrução dessa imagem, de que a mulher ao liderar deve corresponder a todas as expectativas criadas, que muitas vezes atuam de forma a desmobilizar as mulheres a assumirem posições de chefia.

Em que pese tais dificuldades adicionais que recaem sob as mulheres, é incrível como Catherine, sem porte de arma de fogo — o que nos causa estranheza em um primeiro momento, considerando a truculência da polícia brasileira —, encarna a idealização de uma polícia combativa, ética e ao mesmo tempo não julgadora da moral sexual feminina; o que, muitas vezes, costuma ocorrer nos ambientes policiais.

Seguindo tal reflexão, o personagem de Tommy Lee Royce (James Norton), pai de Ryan e agressor sexual em Happy Valley, ainda que seja a pessoa mais odiada por Catherine, é representado considerando a complexidade de sua história. Primeiro, não temos a condenação criminal dele pelo estupro da filha de Catherine. O seriado apresenta apenas a manifestação da filha e seu suicídio, se muitas pessoas conseguem inverter a culpa pela violência sexual em casos envolvendo uma criança de 10 anos, o que se dirá de uma mulher de 18 anos que não fez uma denúncia formal da violência sexual. Importante nesse ponto, mais uma vez, lembrar que muitas mulheres não realizam a denúncia porque temem justamente a forma como serão julgadas na delegacia, na família e pela sociedade, como já citado acima.

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Em segundo lugar, Tommy é jovem, branco e atraente, o que poderia levar à conclusão, por alguns, de que ele “não precisaria” se valer de violência para ter relações sexuais e pelas mesmas razões, tendo em vista seus atributos estéticos, não se enquadra na visão estereotipada de um criminoso. Além disso, não é uma figura sem qualquer passado, é retratado um pouco do ambiente familiar de Tommy, a partir de sua mãe usuária problemática de drogas. E, para complicar ainda mais, Tommy quer se aproximar do filho, apesar de se valer de formas totalmente irresponsáveis. A escolha em criar o personagem de Tommy com nuances é oportuna para a compreensão de que não há um modelo pré-determinado de agressor e que, mesmo considerando o seu histórico (que pode não justificar, mas explicar, de alguma forma, parte do que se tornou), ainda assim, é preciso responsabilizá-lo pelos seus atos.

Sobre a ideia de responsabilização, tenho uma ressalva com a série, mas que dificilmente em uma série policial seria diferente: a crença que de que um sistema extremamente punitivista irá assegurar maior segurança às mulheres. Diversos estudos e pesquisas já indicam que criminalizar e punir mais severamente não implica necessariamente a diminuição de crimes, de modo que a série poderia avançar mais nesse assunto e, tal como é brilhantemente discutido em The Wire, indicar outros caminhos para uma mudança de pensamento e conduta.

No entanto, a gana por punição de Catherine não simplifica o desenrolar dos acontecimentos. A primeira e a segunda temporada se entrelaçam e formam uma continuidade perfeita. São formadas por seis episódios de uma hora, com um ritmo agitado, misturando o suspense dos crimes investigados e o da própria vida de Catherine. Abordam diversos temas relevantes para o feminismo, mas que também envolvem dilemas universais, como os já citados. Há cenas memoráveis, como a fuga do cativeiro, em que a união de Catherine com a vítima sequestrada e abusada sexualmente sintetiza a necessidade de união entre as mulheres para lutarem contra todas as formas de violência que nos atinge. A segunda temporada trata de forma muito perspicaz a problemática de algumas mulheres se apaixonarem por estupradores, tema muitas vezes evitado de ser debatido. A cena do diálogo de Catherine no final da segunda temporada com a mulher iludida e apaixonada por Tommy é magistral, revelando uma necessidade de empatia e comunicação até mesmo nas situações que nos parecem mais incompreensíveis.

“O processo de socialização das experiências permitiu às mulheres constatarem que os problemas vivenciados no seu cotidiano tinham raízes sociais e demandavam, portanto, soluções coletivas. Veio daí a afirmativa ‘o pessoal é político’, questionando não apenas a suposta separação entre a esfera privada e a esfera pública, como também uma concepção do político que toma as relações sociais na esfera pública como sendo diferentes em conteúdo e teor das relações e interações na vida familiar, na vida ‘privada’. Na medida em que a dinâmica do poder estrutura as duas esferas, essas diferenças são apenas ilusórias.” Cecilia M. B. Sardenberg em “O pessoal é político: conscientização feminista e empoderamento de mulheres”

Happy Valley, a partir da heroína Catherine, consegue ser mais do que uma série investigativa, na medida em que o suspense policial faz parte do próprio conflito pessoal da personagem. Ao buscar situar Catherine no centro dos conflitos humanos em que ela deveria solucionar, é criada uma tensão indissociável entre os impasses pessoais de Catherine e os que enfrenta no trabalho. Essa indissociabilidade não pode ser considerada mera coincidência, já que a ligação entre o privado e o público é uma das proposições mais fortes do feminismo, com o objetivo de observar a conexão entre as relações micro e macro e para que os problemas das mulheres não sejam alienados dos espaços públicos. Catherine quebra com essa barreira artificial e nos convida a quebrá-la também.

Yasmin Pestana é feminista, apaixonada por cinema e admiradora da literatura. Quando não está trabalhando como Defensora Pública, escreve sobre filmes e livros, com enfoque na representação e direitos das mulheres.


¹ Importante diferenciar a expressão “aborto”, crime previsto no Código Penal, e “interrupção de gravidez”, direito garantido às mulheres e meninas nas hipóteses em que não é considerado o crime de aborto, quais sejam, em circunstâncias em que as mulheres ou meninas foram vítimas de estupro, quando há risco de vida à mulher e na hipótese de anencefalia do feto (ausência ou má formação do sistema cerebral).

1 comentário

  1. Nada muito diferente de perfeito sua análise. Me deparei com esta série bem antes de você, meio que por acaso, também. Estranhei a mesma não causar mais barulho. Tudo que é colocado sobre a perspectiva feminina traz mais complexidade e substância, dá àqueles que tem certa capacidade de entendimento, muito mais sabedoria e posicionamento neste mundo cada vez pior. Já tens um fã. Sem falar na análise de “Better Things”, ambas maravilhosas: série e suas linhas.

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