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Eles fizeram de novo: D&D e as personagens femininas em Game of Thrones

Oito anos, oito temporadas e — até o momento — setenta e três episódios nos trouxeram até aqui. Game of Thrones, série inspirada por As Crônicas de Gelo e Fogo escritas por George R. R. Martin, se transformou em um dos programas mais lucrativos da HBO. Criada por David Benioff e Dan Weiss, a série conta a história de Westeros, os jogos de poder entre as famílias que comandam o continente e tudo o que vem no pacote (inclusive dragões e lobos gigantes) (inclusive não tanto quanto gostaríamos) — mas isso tudo você já sabe mesmo que não acompanhe o programa. Game of Thrones caiu tanto no gosto popular que é fácil conhecer o enredo da série e dos episódios mesmo sem tê-los assistido, e debater teorias é uma diversão à parte para os fãs.

Antes de ser fã da série, sou fã dos livros, mas tentarei separar uma obra da outra nesse texto. Sei que são meios diferentes para contar a mesma história, e isso não me incomoda — nem nunca incomodou. Leio livros e assisto séries e filmes baseados neles desde que me lembro, e nunca menosprezei um em detrimento do outro. O grande problema com Game of Thrones não é apenas se afastar de seu material base, visto que o próprio Martin já se manifestou publicamente a respeito da difícil arte de adaptar livros para outras mídias como cinema e televisão, mas os grandes furos de roteiro perpetrados pela dupla David e Dan, principalmente no que tange às suas personagens femininas e seu desenvolvimento. E isso não é de hoje.

Atenção: este texto contém spoilers!

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Ambas as mídias — livro e série — são violentas, isso é um fato. São mortes e batalhas acontecendo em sucessão, reviravoltas e traições, que por vezes é preciso parar um ou dois minutos para tomar fôlego e lembrar se determinado personagem permanece vivo ou não. Ninguém está a salvo em Game of Thrones e isso nós sabemos desde o momento em que o honrado Ned Stark (Sean Bean) foi decapitado logo no início da trama. Violência é uma constante no universo criado por George R.R. Martin, mas na adaptação feita por D&D há requintes ainda piores — e maiores — de crueldade.

Quer crueldade maior do que colocar na boca de Sansa Stark (Sophie Turner), a menina que foi abusada psicológica e fisicamente, vendida e estuprada, que ela só se tornou a pessoa forte de hoje em dia por conta dos abusadores que passaram por sua vida? Que Joffrey (Jack Gleeson), Mindinho (Aidan Gillen) e Ramsay (Ian Rheon) foram os responsáveis por transformá-la de passarinho assustado à Lady Stark de Winterfell? Para David Benioff e Dan Weiss — e tantos outros roteiristas —, uma mulher só pode se reerguer e se tornar forte após passar por um sem número de abusos, inclusive estupro, e ser grata por isso. Tal narrativa é típica de roteiros escritos por homens que não conseguem enxergar que a força de uma mulher não precisa, necessariamente, advir de traumas ou abusos; ela pode ser naturalmente resiliente, como no caso de Sansa.

Ainda adolescente, ela sobreviveu à Porto Real, à Joffrey e à Cersei (Lena Headey), e a todas as maquinações da corte. Soube se portar e ouvir, soube ver e aprender enquanto usava a fantasia de passarinho quebrado e desprotegido, e isso não lhe foi ensinado por ninguém. A narrativa do estupro é um recurso muito usado na cultura pop para construir personagens femininas que precisam demonstrar força ou crescimento, assim como para mover a narrativa adiante, algo para mostrar que a personagem feminina em questão tem motivos para agir da maneira que age, para partir em busca de vingança ou ser “difícil” — algo não destinado aos personagens masculinos, ou você já viu algum personagem do Liam Neeson sendo estuprado em algum de seus filmes para justificar o roteiro? Pois é. Eu também não.

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Daenerys Targaryen (Emilia Clarke), enquanto isso, perdeu metade de suas tropas — além de Sor Jorah (Iain Glen) — e não é tão amada ou bem recebida no Norte quanto pensou que poderia ser. O Rei da Noite foi derrotado, mas ela não vê ninguém a felicitando por ter ficado no Norte e lutado — não, no lugar disso ela precisa ver Tormund (Kristofer Hivju) exaltando o fato de que Jon (Kit Harington) montou em um dragão, algo que Daenerys vem fazendo desde que Drogon tinha tamanho suficiente para carregá-la, e que, apenas por isso, seria seguido por quem quer que fosse. Fica bem claro que o roteiro preguiçoso de D&D vem construindo a narrativa de Rainha Louca para Daenerys, desenhando a trajetória da Targaryen com base na loucura de seu pai, Aerys II. O curioso, para dizer o mínimo, é que Cersei não é chamada de Rainha Louca por ninguém mesmo após ter explodido o Septo de Baelor com boa parte das famílias nobres de Westeros dentro (adeus Tyrells) e a Fé Militante, e se sentado no Trono de Ferro em total plenitude sem ninguém pra reclamar — não era Margaery Tyrell (Natalie Dormer) amada pelo povo? Como a morte da jovem pode ter passado sem uma revolta por parte da população que tanto a amava? O conflito e a falta de coerência no roteiro permanece o mesmo se formos parar para pensar em como a família Tyrell era poderosa em Jardim de Cima e não foi enviado um mísero soldado de lá, clamando por vingança por seus familiares mortos. A essa altura, por exemplo, era a cabeça de Cersei que deveria estar presa em uma estaca nos muros da Fortaleza Vermelha.

Por meio dessa narrativa da crescente loucura em Daenerys — experimente perder dois de seus dragões, metade de seus exércitos, seu mais devotado conselheiro e protetor, e sua melhor amiga em pouco tempo e tente ficar são no processo — David Benioff e Dan Weiss dão início a mais uma desestruturação de trama e personagem, principalmente quando colocam Jon Snow como o único capaz de conter o “ímpeto de uma mulher poderosa que não consegue mais controlar suas emoções”. O legado de loucura e morte de Aerys II sempre retorna à mente de Daenerys visto que ela não quer trilhar o mesmo caminho do pai — seu comportamento, aliado à sua solidão, fizeram com que até mesmo seus conselheiros, Tyrion (Peter Dinklage) e Varys (Conleth Hill), conspirassem a respeito do direito de Jon ao trono em detrimento de Dany por ele ser, nas palavras de Varys, “moderado, comedido”, um homem, algo mais aceitável para os lordes de Westeros, alguém que amenizaria os piores impulsos de Daenerys.

Outro momento completamente fora de propósito para Daenerys, em “The Last of the Starks”, reside, também, na súplica feita por ela a Jon; se conhecesse realmente Jon — ainda mais que clama amá-lo —, Daenerys saberia que Jon não poderia viver em uma mentira, portanto esconder sua verdadeira origem jamais passaria pela cabeça dele, ainda que não queira se sentar no Trono de Ferro. Daenerys vem sendo desconstruída pedaço a pedaço, deslegitimando sua trajetória e crescimento durante toda a série, apenas para conveniência de roteiro — o problema não é fazer de Daenerys uma Rainha Louca, é fazê-la por interesse da trama, enaltecendo outro personagem, Jon Snow, para isso. Game of Thrones não é mais o que costumava ser.

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E, por último, mas não menos importante, chegamos ao destino de Missandei (Nathalie Emmanuel). Por mais dolorida que tenha sido a morte de Rhaegal em “The Last of the Starks” — Euron Greyjoy (Johan Philip Asbæk) ter se transformado em um exímio atirador é realmente uma conveniência de roteiro impressionante —  nada se compara ao tratamento dado à Missandei por parte de D&D: a única mulher negra com falas em Game of Thrones foi morta como ferramenta de roteiro, instando tanto Daenerys quanto Verme Cinzento (Jacob Anderson) a buscarem por vingança, entrando em uma espiral de fogo e sangue — principalmente quando a última palavra proferida por Missandei, Dracarys, reforça essa ideia. Como se Daenerys não tivesse motivação o suficiente para retirar Cersei do trono, sua trajetória precisa ser reafirmada por meio da morte da única mulher não-branca da série? Parece que para D&D, é exatamente isso de que Daenerys precisa para entrar em modo total madness, concluir sua narrativa como a Rainha Louca e queimar Porto Real até não sobrar nada, civis ou exércitos inimigos. Missandei, colocada novamente em correntes, é apenas uma peça no jogo de David Benioff e Dan Weiss — um jogo, diga-se de passagem, que não parece muito inteligente no momento.

Brienne (Gwendoline Christie) e Arya (Maisie Williams), por enquanto, não destoaram tanto do arco narrativo que foi construído para elas ao longo dos anos. Enquanto Brienne tem sua primeira noite com Jaime (Nikolaj Coster-Waldau) e é deixada por ele praticamente na sequência quando o cavaleiro parte em busca de Cersei, Arya declina a proposta de casamento de Gendry (Joe Dempsie), agora lorde de Ponta Tempestade. Apesar da construção de Brienne na série não focar tanto em seu desejo de ser vista como uma mulher comum — é só lembrar de como Brienne amou Renly Baratheon (Gethin Anthony) —, é perfeitamente aceitável vê-la chorar por Jaime. Ser uma cavaleira e uma lutadora poderosa não quer dizer que ela não possa, também, desejar ser amada por um homem — ainda que um tão problemático quanto Jaime. Para o Regicida, resta o benefício da dúvida e de que todo aquele discurso sirva para proteger Brienne, deixando-a em Winterfell enquanto ele parte para o Sul em busca do pescoço da irmã. E Arya, heroína de Winterfell, nunca quis ser uma lady, e não será um pedido de casamento que a fará mudar de ideia.

“The Last of the Starks” nos mostra, mais uma vez, que David Benioff e Dan Weiss não sabem fugir dos estereótipos quando o assunto é escrever personagens femininas — ou escrever um roteiro que seja. Ou essas personagens se odeiam e estão uma contra a outra, promovendo uma rivalidade feminina desnecessária, ou estão sendo subjugadas por homens sem metade do talento delas. Mulheres poderosas passam a ser consideradas loucas, mulheres traumatizadas são frias. A pouca diversidade da série é jogada no lixo por uma conveniência de roteiro, construções de personagens são completamente ignoradas por plot device e o resultado é um episódio fraco para uma série de escolhas narrativas ruins e pobres. No momento, nos resta aguardar os dois episódios restantes da derradeira temporada de Game of Thrones e que George R.R. Martin possa redimir seus personagens quando finalizar seus originais. A série de David Benioff e Dan Weiss é um eco distante do que foi quando estreou em 2011, uma versão esvaziada de alma de algo que eu verdadeiramente adorava.

6 comentários

  1. Nossa falou tudo, fiquei indignada com esse terceiro episódio, com a desconstrução da Daenerys para nós convencer a aceitar Jon como a melhor opção para assumir o trono, com a fala da Sansa, com a morte de Missandei, com tudo que brilhantemente foi exposto nesse texto. Obrigada por escrever esse texto com todas essas considerações!!!

  2. Texto muito bom e críticas pontuais. Só discordo no crédito que está sendo dado ao George Martin como se tudo de ruim fosse culpa apenas dos roteiristas; a essência de tudo que está acontecendo na série agora estava nos livros desde o início, não há realmente surpresas, sinceramente Martin nunca tratou as mulheres melhor do que a série trata. Obviamente tem muitos furos de roteiro – talvez pelo término corrido – GoT tem uma quantia enormes de personagens e parece que na pressa de encerrar simplesmente se ignora alguns ou dá-se fins deploráveis, acho que isso realmente George Martin pode – e deve – melhorar nos livros.

  3. concordo demaais com o texto.
    poreem, posso ser ingenua mas acho que os roteiristas estão só jogando com esse negócio da ‘loucura’ da daenerys, que ela vai ter uma ideia muito boa nos proximos episodios sem precisar apelar em queimar a cidade toda.
    eles já fizeram isso numa outra temporada, quando ela acabou queimando um navio só, dando um recado para os mestres e fazendo o povo que ia lutar contra ficar no exercito dela.
    ESPERO que ela faça algo muito daora pro povo de westeros ver o quão foda ela é, duvido muito que o jon vá realmente ficar como rei. se n for a daenerys, acho q n vai ser ele tb não
    bjss

    1. Texto ótimo!!
      Só discordo um pouco quando ouço pessoas falando sobre como a Sansa ficou foda “sozinha”. Não podemos esquecer que ela foi criada pela Kat, uma das personagens mais fortes dos livros, o que deve ter ensinado, de alguma forma, sobre as intrigas reais.

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