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5 brasileiras Extraordinárias para conhecer

“Cada mulher tem sua parte heroína”. É com essa frase que as autoras Duda Porto de Souza e Aryane Cararo abrem o texto de apresentação de Extraordinárias: Mulheres que Revolucionaram o Brasil, livro publicado pelo selo Seguinte da Editora Companhia das Letras. A premissa por trás do trabalho de Duda e Aryane é resgatar as memórias daquelas brasileiras que contribuíram de alguma maneira para construir nosso país, mas que nem sempre são lembradas pelos livros de História.

Extraordinárias vem na esteira de outros livros tão importantes quanto e que colocam as figuras femininas de volta ao seus lugares de direito: o de contribuidoras e autoras da nossa História. Assim como em Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes – 100 Fábulas Sobre Mulheres Extraordinárias e As Cientistas: 50 Mulheres que Mudaram o Mundo, Extraordinárias vem para suprir a falta de heroínas reais ao retomar as histórias pessoais de mulheres formidáveis que desafiaram as normas sociais das mais diversas maneiras — fosse lutando por igualdade de gênero, por melhores condições de trabalho, criando arte ou expandindo a ciência. Desvelar o protagonismo de tantas mulheres é recolocá-las em seus lugares de direito, ainda mais quando nossas histórias — e nossas vozes — vêm sendo silenciadas há tanto tempo.

Diferente de Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes ou As Cientistas, em Extraordinárias encontraremos histórias de brasileiras, mulheres que não fogem à luta e foram protagonistas de muitas transformações e conquistas sociais; mulheres que nasceram no Brasil ou adotaram nossa terra para viver. Para Duda e Aryane, é muito simples citar personalidades estrangeiras quando somos perguntadas a respeito de mulheres inspiradoras, e Extraordinárias surge exatamente para mudar esse cenário, para que saibamos que muitas foram as mulheres que lutaram antes de nós.

“Se várias gerações crescem sem saber quem são as mulheres que fizeram nossas histórias, que lugar no país e no mundo somos preparadas para ocupar? É urgente falar, conhecer, ilustrar e dar espaço para essas brasileiras que deixaram sua marca e se tornaram um divisor de água em suas áreas.”

Pensando nisso, e para começar a espalhar as palavras dessas brasileiras formidáveis, selecionei algumas entre as 44 personalidades presentes em Extraordinárias para compartilhar com vocês. As histórias dessas mulheres podem nos inspirar a não desistir da luta, cada uma a sua maneira. E como escreveu Sâmia Bomfim na contracapa da edição preparada com esmero — e até holografia! —, “Em um mundo onde tentam nos subjugar, suas histórias nos dão força para quebrar todos os grilhões que ainda nos prendem”.

Nísia Floresta

Extraordinárias

Nascida no pequeno vilarejo de Papari, no Rio Grande do Norte, em 1810, Nísia Floresta Brasileira Augusta foi batizada, na verdade, como Dionísia Pinto Lisboa e viria a se tornar uma lutadora ferrenha pela educação das mulheres, abolição da escravatura e a liberdade indígena. Ainda que filha de um pai relativamente liberal, o advogado português Dionísio, e parte de uma família com boas condições financeiras, Nísia não escapou de um casamento precoce, aos treze anos de idade. Imbuída de um espírito revolucionário, a jovem Nísia abandonou o marido antes da união completar um ano e acompanhou seu pai, perseguido politicamente, em fuga. Aos dezoito anos, Nísia se uniu ao estudante de direito Manuel Augusto de Faria Rocha, com quem teve dois filhos, mas foi perseguida por seu primeiro marido — este ameaçou processá-la por adultério e abandono do lar devido a sua fuga. Jornais a difamariam, anos mais tarde, por ter fugido do primeiro casamento, mas Nísia nunca se arrependeu de sua atitude.

Com a morte repentina de Manuel e precisando cuidar de dois filhos pequenos, Nísia mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1837, e mostrou seu pioneirismo ao fundar o Colégio Augusto para meninas onde ministrava aulas de língua estrangeira, além de história, geografia, matemática, caligrafia, latim, português e educação física. Pode parecer pouco, olhando diretamente de nosso século XXI, mas é importante lembrar que à época de Nísia, as meninas eram ensinadas a serem esposas e sua educação permanecia na esfera das prendas domésticas, o que incluía o ensino de contas básicas e bordados, além de português e francês — esta última, tida como a língua cosmopolita daquele século. O que Nísia fez, no longínquo ano de 1837, foi assegurar que meninas pudessem ter acesso a uma educação completa e de qualidade, revolucionando o ensino tradicional. A revolução promovida por Nísia não viriam sem ataques por parte daqueles que não concordavam com sua maneira de ver o mundo, e a imprensa da época passou a difamá-la nos jornais. A partir desse momento, Nísia tomou a caneta em punho e escreveu artigos e ensaios sobre seu ponto de vista educacional e foi ela, também nesse período, quem traduziu no país a primeira obra feminista. O escolhido por Nísia foi Woman Not Inferior to Man, de 1837, escrito por Mary Wortley Montagu; o livro, além da tradução do original, contava com contexto e reflexões inseridas por Nísia, o que transformou Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, no primeiro livro feminista publicado no Brasil. A revolução promovida por Nísia marcou até mesmo a pequena Papari, onde nasceu, que foi rebatizada, anos mais tarde, como Nísia Floresta.

Laudelina de Campos Melo

Extraordinárias

Nascida em Poços de Caldas, Minas Gerais, no ano de 1904, Laudelina de Campos Melo veio ao mundo apenas dezesseis anos após a promulgação da Lei Áurea. Isso significa dizer que a pequena Laudelina chegou em um tempo em que os escravos haviam sido libertos, mas pouco — ou nada — fora feito para inseri-los de maneira digna na sociedade. Sua mãe, Sidônia, trabalhava o dia inteiro como empregada doméstica na residência da família Junqueira, antigos donos de seus avós, e não foi apenas uma vez que Laudelina presenciou os maus tratos sofridos pela mãe por parte de seus patrões. O escravismo poderia estar abolido, mas as famílias ainda mantinham velhos hábitos, e foi em uma dessas ocasiões, quando Sidônia se negou a realizar um serviço que não lhe cabia ao alegar não ser mais escrava, que ela foi chicoteada por um capataz na presença de Laudelina. A menina, então com doze anos de idade, protegeu a mãe e avançou no agressor, contando, muitos anos depois em depoimento à professora Elisabet Aparecida Pinto, da UFBa, que o teria matado com as próprias mãos se não tivesse sido separada dele.

O que presenciou na infância levou Laudelina, quando adolescente, a frequentar e organizar grupos e associações voltados para a população negra. Seu primeiro grupo foi o 13 de Maio que evoca, já no nome, a data da Abolição da Escravatura, em 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea após seis dias de votação e debates no congresso. Por falta de oportunidades, assim como sua mãe, Laudelina começou a trabalhar como empregada doméstica aos dezessete anos. Sua vivência e a lembrança do que aconteceu com a mãe fizeram com que Laudelina percebesse como as questões de gênero, raça e classe interferiam em sua vida e nas vidas das pessoas que conhecia. Foi dessa maneira que, em 1936, se filiou ao Partido Comunista Brasileiro e fundou a Associação das Empregadas Domésticas, também naquele ano. A associação criada por Laudelina foi a primeira daquele tipo a existir no Brasil e tinha por objetivo garantir direitos trabalhistas para a categoria, além de oferecer serviços assistenciais, educativos e recreativos às trabalhadoras. Em plena Ditadura Militar, em 1961, Laudelina continuou a lutar por direitos à frente da Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas, em Campinas. Foi devido à luta de Laudelina que, na década de 1970, a profissão de empregada doméstica foi regulamentada com direito a carteira de trabalho assinada e acesso à previdência social. Antes de morrer, em 1991, Laudelina pôde ver a Constituição de 1988 assegurar às domésticas o 13º salário, repouso semanal remunerado, 120 dias de licença-maternidade, entre outras conquistas igualmente importantes e indispensáveis.

Dorina Nowill

Extraordinárias

Dorina de Gouvêa — Dorina Nowill pelo casamento — ficou cega aos dezessete anos, após uma hemorragia na retina. Seus pais fizeram o possível para provê-la com todos os recursos possíveis para reverter a situação, mas sem sucesso. Nascida em São Paulo, no ano de 1919, Dorina era uma jovem inteligente e curiosa, e sua primeira providência após ficar cega foi aprender o sistema braille para que não precisasse abrir mão de uma de suas maiores paixões: a literatura. O ano era 1939, a Segunda Guerra Mundial começava, e o único material disponível para que Dorina aprendesse o sistema braille, no Brasil, estava em inglês. No lugar de desistir, Dorina perseverou ainda mais e aprendeu inglês para, enfim, se entregar aos estudos do sistema braille. Baseado em pontos em relevo, o sistema braille foi aprimorado por Louis Braille, que ficou cego aos cinco anos de idade, a partir de um sistema utilizado para que soldados pudessem se comunicar à noite sem que precisassem acender velas ou falar, denunciando sua posição. Dorina, então, decidiu se matricular no Curso Normal da Escola Caetano de Campos, em São Paulo, uma escola de formação de professores, e concluiu o curso como melhor aluna da turma, mesmo enfrentando dificuldades com a ausência de profissionais capacitados e livros em braille para seus estudos.

Encarando essa falha como uma oportunidade, Dorina criou a Fundação para o Livro do Cego que iniciou suas atividades em março de 1946. Regina Pirajá, amiga de Dorina, foi a responsável por desenvolver um sistema para fazer pontos em relevo e logo a Fundação passou a capacitar voluntários e membros da Cruz Vermelha para trabalhar. Com a ideia de incluir na sociedade pessoas com deficiência visual, Dorina passou a escrever artigos para organizações internacionais relatando a necessidade de conhecimento e uma imprensa em braille no Brasil. Por conta de seus esforços, Dorina conseguiu uma bolsa de estudos na Michigan State Normal School, nos Estados Unidos, para se especializar na área de reabilitação para pessoas com deficiência visual. Em 1948, sua fundação recebeu por meio de uma doação uma imprensa braille completa, com maquinário e todo material necessário para produção, transformando a Fundação para o Livro do Cego na primeira na América Latina a imprimir e distribuir livros nesse sistema de leitura. No ano de 1964, por exemplo, mais de 10 mil volumes impressos pela fundação já circulavam pelo país, inclusive o Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Dorina sempre lutou pela inclusão e ampliação dos direitos das pessoas com deficiência visual, pela inserção delas no mercado de trabalho e seu acesso irrestrito à educação. Com o passar dos anos e o avançar das tecnologias, a fundação, agora rebatizada para Fundação Dorina Nowill para Cegos, passou a oferecer cursos de informática, livros digitais e revistas, sempre difundindo a leitura e promovendo uma vida independente para o deficiente visual.

Niède Guidon

Extraordinárias

A primeira escolha de Niède Guidon para o vestibular não foi arqueologia, profissão que a consagraria anos mais tarde. Sua primeira inscrição foi para entrar no curso de medicina, mas passou mal no dia da prova e não deu continuidade ao processo de seleção. Mais tarde, a jovem de Jaú, município no interior de São Paulo, decidiu cursar história natural e logo se viu apaixonada por botânica, zoologia e genética. Após se formar, Niède conseguiu uma colocação na sessão de arqueologia do Museu Paulista da Universidade São Paulo mas, por conta do curso feito na faculdade, não possuía nenhum conhecimento a respeito das técnicas necessárias para executar bem seu trabalho. Dessa maneira, Niède, após ser aconselhada pelo antropólogo Paulo Duarte, então responsável pela Comissão de Pré-História de São Paulo, decidiu estudar para se especializar em pré-história pela Sorbonne, conceituada universidade francesa, onde também viria a concluir o doutorado e pós-doutorado. Ao retornar para o Brasil em 1963, Niède organizou uma exposição sobre sítios rupestres em Minas Gerais, mas teria que retornar para a França no ano seguinte quando a Ditadura Militar começou a prender professores acusando-os de serem comunistas.

Quando pôde retornar para o Brasil, Niède deu início a um projeto de pesquisa no pequeno município de São Raimundo Nonato, a 530 quilômetros de Teresina, onde a pesquisadora registrou, apenas durante a primeira visita ao local, a existência de cinco sítios arqueológicos. Niède sabia que dali poderia vir muitos mais e, com financiamento do governo francês, ela conseguiu manter uma missão permanente na área que, ao total, conta com mais de quatrocentos sítios arqueológicos e registros inestimáveis de restos de mata atlântica na planície e floresta amazônica no planalto, um lugar que, há milhares de anos, foi a fronteira natural entre os dois biomas. Com base nas descobertas de Niède, o governo brasileiro criou, em 1979, o Parque Nacional da Serra da Capivara, iniciativa que tinha por objetivo proteger a região; o parque, no entanto, não foi suficiente para preservar o local da extração ilegal de madeira e caça, então Niède, junto de outros arqueólogos, criou, em 1986, a Fundação Museu do Homem Americano, visando a preservação permanente da área. Foi por conta das pesquisas e escavações que Niède promoveu no sítio de Pedra Furada, por exemplo, que caiu por terra a ideia de que o homem teria chegado à América há 15 mil anos: em suas escavações, foram encontrados vestígios de atividade humana que datam de 20 mil anos, mudando a compreensão da presença do homo sapiens na América do Sul para sempre. As pesquisas e a perseverança de Niède foram responsáveis por recolocar a linha do tempo em seu lugar, revelando o “alto grau de desenvolvimento cultural e tecnológico das populações que viveram no país antes da ocupação europeia”.

Sônia Guajajara

Filha de pais analfabetos e nascida nas terras indígenas de Arariboia, no Maranhão, em 1974, Sônia Bone Guajajara não imaginava que sua luta para manter sua identidade e seu espaço a levaria tão longe. Atualmente a líder mais expressiva do movimento indígena brasileiro, Sônia é responsável por dar voz à resistência de seu povo, denunciando violência, ataques e abusos sofridos por todos os povos da Amazônia. Com uma infância pobre, Sônia viu nos estudos o caminho a seguir para mudar não apenas a própria vida, mas também de seu povo: trabalhou como empregada doméstica e babá enquanto cursava o ensino fundamental e, a convite da Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, estudou magistério em Minas Gerais. Ao retornar para a aldeia em que nasceu, em 1992, atuou educando a todos com relação a saúde e alertando principalmente para os perigos das doenças sexualmente transmissíveis. Pouco depois, Sônia decidiu entrar para o curso de auxiliar de enfermagem, pagando seus gastos com o salário que recebia como professora da FUNAI. O caminho dos estudos se mostrou profícuo para Sônia, que não parou na enfermagem e se graduou ainda em Letras, fazendo pós-graduação, em seguida, na Universidade Estadual do Maranhão.

Parte de um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil, os guajajaras, Sônia se esforçou — e ainda se esforça — para quebrar os estereótipos que os perseguem. Nascida em uma cultura que respeita a diversidade, é difícil para ela entender como os estereótipos acerca dos povos indígenas ainda são tão perpetrados em nossas sociedade, e vê como sua a responsabilidade de desmistificar a imagem do índio, retratando uma realidade que é totalmente diferente do que nos diz a mídia, os livros ou o senso comum. Conhecer a real identidade indígena e reafirmar sua cultura, na opinião de Sônia, é o melhor caminho para dar visibilidade ao seu povo. Sônia está à frente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, e também atua na Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, lutando por saúde e proteção territorial, sempre reivindicando melhores condições para os indígenas. No Brasil, existem pelo menos oitenta grupos indígenas vivendo isolados, o que nos coloca como um dos países com a maior diversidade étnica e cultural, principalmente se levarmos em consideração que são faladas, também, cerca de 180 línguas e dialetos indígenas por aqui — e é aí que a importância do trabalho de Sônia é vista.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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