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Evil, primeira temporada: qual é o rosto do mal?

Você pode conhecer os nomes Michelle e Robert King pelo drama The Good Wife, que rendeu para Julianna Margulies um Emmy de Melhor Atriz, ou talvez pelo spin-off The Good Fight, focado em Diane Lockhart (Christine Baranski). Ou até mesmo pode conhecer os dois showrunners por Braindead, que ganhou pouco amor do público e acabou cancelada após um temporada, mesmo contendo uma trama interessante e peculiar. Mas o que quase ninguém sabe é que um dos trabalhos com mais potencial do casal, na verdade, está escondido na plataforma de streaming Globoplay. Com um total de treze episódios, a primeira temporada de Evil é tão inteligente e sofisticada quanto The Good Wife e The Good Fight, ao mesmo tempo que é mais peculiar e diferente do que Braindead. O roteiro é cheio de ambiguidades e questionamentos morais, tendo em vista discutir qual é realmente o rosto do Mal. Ou se ele sequer tem um.

Atenção: este texto contém spoilers!

A história começa com a psicóloga Kristen Bouchard (Katja Herbers) sendo recrutada pelo padre em treinamento David Acosta (Mike Colter). Ele trabalha ao lado do especialista em tecnologia Ben (Aasif Mandvi) na Igreja Católica, tentando solucionar casos que tem cunho sobrenatural ou religioso, decifrando se eles são fraude ou algo realmente real. O papel de Kristen, nesse caso, é fundamental: dar uma opinião baseada na ciência e na lógica, oferecendo um contraponto para a visão de Acosta. Apesar de ter uma terceira pessoa na dinâmica, a relação de Bouchard com o padre lembra muito a de Mulder e Scully, de Arquivo X. Ele, um homem de fé que acredita copiosamente nos casos, enquanto ela é voz da razão, cética e sempre colocando os pés do seu parceiro no chão. Dessa dinâmica, a série acha sua força.

Como os dois carregam pensamentos que são muito diferentes entre si, a relação que eles criam é baseada completamente em diálogos profundos sobre religião, fé e ciência no geral, ou até como eles aplicam tais conceitos na vida real. A química que compartilham é fácil e deliciosa de acompanhar, sendo que a dinâmica se apoia muito na ambiguidade da natureza da mesma. Eles são parceiros? Ou existe algo mais, sentimentos românticos na mistura? De qualquer forma, toda pequena cena que eles compartilham e expõem o que estão sentindo é rica em texto e atuações, fazendo com que seja fácil querer voltar para os próximos episódios. Até quando eles discordam e se distanciam, a narrativa dá um jeito de uni-los outra vez.

Evil

A primeira temporada da série começa de forma tímida e contida, apresentando o velho arroz com feijão de casos episódicos, quase como uma obra procedural. Em um primeiro momento, David e Kristen vão investigar um escritório onde o chefe tem um comportamento abusivo e louco, maltratando os funcionários e respondendo ordens de uma máquina como a Alexa, da Amazon (que eles mais tarde descobrem que foi hackeada); em outro momento, eles acompanham uma família cujo filho mais velho parece estar possuído, tentando até afogar sua irmã mais nova — e ainda bebê — na piscina. Mais pra frente, no entanto, todos os casos começam a se encaixar, ainda que de forma pequena, dando aval para uma trama conspiratória que envolve uma rede de psicopatas unidos por uma só missão: disseminar o ódio.

Durante investigações avulsas, Kristen e David descobrem que existe uma espécie de organização comandada por psicopatas, que usam de símbolos antigos e religiosos para criar códigos e recrutar pessoas para ajudá-los. A conspiração é muito maior do que o salário de ambos permite acompanhar, sendo que até mesmo o Vaticano parece estar envolvido e esconder alguns segredos. Esse ponto da história, no entanto, é fundamental para a trama e para o desenvolvimento da trajetória dos personagens.

O peso do racismo 

Ao descobrir os símbolos e para o que eles estavam sendo usados, David reconhece um deles presentes nas pinturas do pai. Assim, ele vai com Kristen em uma roadtrip para investigar por que ele estava embutido em todas as suas obras. O que ele encontra na vida do seu pai, no entanto, é algo diferente do que está acostumado: uma rotina poliamorista, baseada em uma religião desconhecida por ele e sua companheira. Ao beberem um líquido que contém uma droga alucinógena, em uma festa onde as pessoas clamam por seus ancestrais, tanto ele quanto sua companheira entram em uma jornada bem diferente entre si.

O foco principal, no entanto, recai sobre David. Durante uma festa na casa do pai, ele conhece uma mulher negra, que usa um vestido branco e pergunta seu nome. Ele responde, ela diz que é Anne. Mais tarde, não consegue achá-la por nada. Horas mais tarde, quando ele vai até o ateliê do pai, encontra um livro que contém uma foto da mesma mulher que conheceu mais cedo naquele dia, só que ela era, na verdade, uma escrava que morreu durante sua trajetória para os Estados Unidos. É mais ou menos nesse ponto que ele descobre que seu pai, na verdade, vem conduzindo uma pesquisa minuciosa sobre o assunto, e que o símbolo que aparece nas suas pinturas representa o racismo em si, o mal do racismo, e que foi criado por um homem que tinha muitos escravos.

De certa forma, é assim que o pai de David resiste e fala sobre a dor do passado dos seus antepassados: fazendo arte e usando esse símbolo, resistindo ao mal causado pelo racismo. David não entende, ao que seu pai responde: “Você vai carregar o peso disso do jeito que precisa carregar, e eu vou carregar da minha forma. Mas ambos vão carregá-lo.”

Lidar com esse mal não é uma opção.

Evil

Mais tarde, no episódio 11, David acaba em um hospital após ser esfaqueado, onde ele encontra uma enfermeira que mata pacientes negros. No começo da temporada, David, Kristen e Ben também lidam com um caso de uma menina negra que morreu, quando eles descobrem que o hospital passava mais tempo tentando ressuscitar pacientes brancos ao invés de pacientes negros. Assim, eles também tocam e exploram o racismo médico e suas consequências.

A forma com que David lida com esses casos está diretamente ligado com o jeito como ele vê Deus e o papel que a figura divina tem na sua vida — algo que ele discute abertamente com Kristen e que ajuda a estabelecer tanto sua personalidade, como a dela também.

Uma protagonista completa 

Apesar de Kristen dividir tempo de tela com David, sua trajetória é com certeza a mais completa da série — pelo menos até o final da primeira temporada. Inteligente, cheia de compaixão e, ao mesmo tempo, firme quando precisa ser, além de uma católica relapsa, seu trabalho como psicóloga dá profundidade aos seus sentimentos em relação ao que faz para a Igreja Católica, mas mesmo assim a forma como é afetada pelo que vê na sua jornada diária acaba afetando a protagonista de forma imprescindível. É por causa disso que ela começa a ter pesadelos com um monstro que ela chama de George. O bicho se faz presente na narrativa de forma constante, questionando sua sanidade e até mesmo sua segurança e a das filhas. Existe uma necessidade brutal pela parte de Kristen de tentar entender por que seu subconsciente está projetando George — ou como está fazendo isso.

Para Kristen, o mal se manifesta em mais de uma forma. No perigo eminente das suas quatro filhas, talvez quando ela tem que ir para o tribunal e expor seus casos, ou até mesmo quando vai investigar um caso para a Igreja. Grande parte da primeira temporada cobre sua tentativa de entender no que acredita e como isso afeta sua vida, tanto como mulher quanto como ser humano, mas ao mesmo tempo tendo que absorver todas as informações do novo trabalho, sua dinâmica com David e como isso afeta sua vida familiar.

Evil

Uma coisa que é muito interessante em Evil é a forma como o roteiro abraça todos os lados de Kristen. É comum ver uma personagem feminina ser explorada apenas por um viés: ou ela é apenas dedicada ao seu trabalho, ou é mãe, amante, e assim vai. Kristen, no entanto, é tudo isso e mais. O público tem a oportunidade de conhecê-la como a profissional e psicóloga, sendo que seu trabalho é parte fundamental da sua vida, bem como discutir e defender as suas crenças (algo visto na sua relação com David, por exemplo). Ao mesmo tempo, sua relação com as filhas cresce a cada episódio, mesmo que ela não seja retratada como a maioria das mães da ficção, que só se dedicam aos filhos. As quatro meninas, Lynn, Lexis, Lila e Laura, têm um papel fundamental na trama, enquanto o papel de seu marido Andy — que não é presente e passa muito tempo viajando — na sua vida é algo explorado na superfície, mas deve ser aprofundado nos episódios que virão a seguir.

Um vilão para amar odiar 

Logo nos primeiros episódios, Evil introduz um dos principais vilões da trama — e um dos principais catalisadores das dores de cabeça de Kristen e David. Quando Leland Townsend (Michael Emerson) aparece pela primeira vez, é apresentado como um psicólogo forense que refuta o ponto de vista de Kristen no caso de Orson LeRoux (Darren Pettie), um serial killer que conta uma história contraditória e cheia de furos. Logo, o personagem se torna um problema maior do que o previsto, ameaçando Kristen, suas filhas e chegando até mesmo a engatar um relacionamento com a mãe da protagonista, Sheryl (Christine Lahti), que tem uma relação próxima com a mesma e suas filhas. Aos poucos, a narrativa vai clarificando exatamente o papel de Leland na história e como ele é uma das principais cabeças por trás do movimento que reúne esses psicopatas em busca de tornar a sociedade um pouco pior do que ela é hoje.

Sua personalidade é uma representação clara da masculinidade tóxica. Inclusive, um dos seus papéis nessa organização é achar homens com cabeças vulneráveis e inseguras, trabalhando nessas características para transformá-los nos conhecidos incels, comunidade violenta, machista e misógina, que culpa mulheres por todos os problemas no mundo. Sua relação com Kristen representa muito essa característica da sua personalidade, sendo que ela se torna um alvo tão forte para ele justamente por causa da insegurança que causa nele — simplesmente porque não se curva ou se deixa intimidar por suas ameaças.

Evil

A narrativa é um belo jeito da série falar sobre machismo e a resistência de alguns homens em abraçar as mudanças do mundo, como se as mulheres devessem alguma coisa para eles. Leland, no caso, está no centro desta narrativa porque sente que as pessoas lhe devem algo apenas porque ele existe, como se ele merecesse mais, ser reconhecido e aclamado por ser homem. Quando vê que não consegue isso, opta por manipular as pessoas ao seu redor. Leland é um dos rostos do mal e é um rosto familiar e estrutural: o do machismo.

É importante também mencionar o incrível trabalho de Emerson. Esse é o segundo papel vilanesco que ele faz de destaque na TV, sendo que o primeiro foi Ben Linus em Lost. O personagem, que era cotado para aparecer apenas em alguns episódios, fez tanto sucesso que acabou se tornando parte do elenco regular. Leland mostra uma força parecida, e é uma figura impossível de não amar odiar. Aqui, mais do que nunca, ele incorpora uma personalidade manipuladora e problemática, muito mais assustadora do que qualquer caso de possessão apresentada pela série.

Se você já viu The Good Wife ou The Good Fight, sabe que um dos aspectos mais interessantes na forma como os King expandem suas narrativas são os recursos visuais presentes na trama. Quando precisam contextualizar alguma coisa, por exemplo, eles não têm medo de usar e abusar de uma pequena animação no meio do episódio. Isso pode parecer anticlimático, mas é feito de forma tão elegante que acaba sendo sempre divertido e bem-vindo, às vezes até para quebrar o clima sério de um episódio. Eles também usam da música para chamar a atenção para pequenos detalhes. Aqui não é diferente.

É bem verdade que, porque os King mostram tantos elementos em comum com suas outras produções, Evil parece transitar entre gêneros com mais frequência do que o normal. Às vezes, a série parece focada completamente no horror, explorando os pesadelos de Kristen; às vezes, quando a protagonista tem que defender um caso na corte, parece uma série sobre a Lei; ou até mesmo quando ela e David entram em questões profundas e importantes, parece uma produção filosófica e dramática. A boa notícia é que todos esses elementos são compostos em uma narrativa que é orgânica e fácil de acompanhar. Na verdade, eles se completam de forma tão suave e harmônica que é quase impossível imaginá-la sem que eles estivessem presentes.

The Good Fight, que ainda é exibida na TV e atualmente está indo para sua quarta temporada, é uma série que levanta questionamentos pertinentes para a era de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Como ele influencia a política, questões sociais e raciais no país, como seu governo prejudica e acaba com direitos alcançados no últimos anos. Evil é tão política, atual e importante quanto TGF, mas sua narrativa não coloca apenas Trump no alvo, mas ambientação mundial por completo.

As perguntas que Evil levanta são sobre moral e ética, sobre o bem e o mal, e como um mundo globalizado e tecnológico ajuda para que esses conceitos sejam estudados e trabalhados. E as respostas raramente vêm dentro de uma caixinha, em preto e branco. Geralmente, existe mais de um explicação lógica, mais do que uma resposta simples. O mundo é colorido, às vezes cinza, mas nunca preto e branco.

Evil fala sobre os problemas da Igreja Católica, de Deus e o que ele representa para um dos personagens, mas ao mesmo tempo tem uma trama moderna e atual. É por isso que essa série, que está escondida na Globoplay e teve pouquíssima divulgação, é uma das coisas mais assustadoras, esquisitas e maravilhosas disponíveis no entretenimento hoje. Uma segunda temporada já foi confirmada pela CBS (que produz a obra nos EUA) e com alguma sorte, o nível tende apenas a aumentar.