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Dias Perfeitos: o que há na vida além do trabalho?

No capitalismo, o trabalho se torna — facilmente e infelizmente — o núcleo das nossas vidas. Um exemplo que demonstra como o trabalho é parte central da nossa existência é que, se você é uma pessoa adulta, é difícil se apresentar sem falar o que você faz, com o que você trabalha. E, ao mesmo tempo que o trabalho é uma forma de produção de valor, ele também acaba definindo o quanto valemos.

Há as profissões valorizadas, consideradas “produtivas” e úteis para a sociedade. Já outras, apesar de essenciais — como os serviços de limpeza — são menosprezadas e invisibilizadas. E temos inúmeros filmes e biografias sobre os “grandes homens” em “grandes profissões” ou que mudaram o mundo e “venceram na vida” a partir do trabalho. Porém, no mais recente longa de Wim Wenders, Dias Perfeitos, o diretor alemão escolhe uma outra perspectiva: seu protagonista, Hirayama (Kōji Yakusho) é um senhor japonês que limpa banheiros em Tóquio. Sem muito glamour, mas preenchido com detalhes, o filme acompanha a rotina de um trabalhador comum que encontra beleza em coisas que parecem simples.

Dias Perfeitos

Dias Perfeitos concorreu à Palma de Ouro em Cannes em 2023 e recebeu uma indicação ao Oscar de 2024 de Melhor Filme Internacional, representando o Japão. Roteirizado por Wim Wenders — cineasta alemão conhecido por Paris, Texas, Asas do Desejo e O Sal da Terra — e Takuma Takasaki, o filme nasce de uma proposta inusitada. Wenders havia sido convidado pelo empresário japonês Koji Yanai a conhecer a iniciativa The Tokyo Toilet. O projeto consiste em uma série de banheiros distribuídos por Shibuya, bairro de Tóquio, elaborados por diferentes arquitetos. Os banheiros foram projetados com a intenção mostrar a cultura japonesa de hospitalidade e atenção aos detalhes.

No entanto, ao invés de lançar uma série de curta-metragens ou um documentário sobre o The Tokyo Toilet, Wenders optou por um longa de ficção sobre quem é responsável por manter esses banheiros impecáveis. No filme, acompanhamos um estudo de personagem de Hirayama, um senhor japonês que vive sozinho, tem uma rotina extremamente repetitiva e trabalha limpando os banheiros de Tóquio.

O protagonista acorda sem necessidade de um despertador, dobra o tatame, rega suas plantas, apara o bigode, pega um café de máquina, escuta suas músicas favoritas gravadas em fita cassete no rádio do carro enquanto vai ao trabalho, limpa os banheiros de forma meticulosa, come no parque — onde fotografa os raios de sol entre as folhas das árvores —, toma banho em um banheiro coletivo, janta sempre no mesmo restaurante e finaliza o dia lendo. No dia seguinte, a mesma coisa se repete. Durante os finais de semana, ele revela as fotos das árvores, descarta as que não gosta, e come em um restaurante diferente dos do dia da semana.

Dias Perfeitos

Essa rotina extremamente solitária e repetitiva de uma pessoa comum que não tem, necessariamente, um trabalho valorizado, é o mais longe de um “dia perfeito” para muita gente, mas se assemelha ao dia a dia de muitos trabalhadores da vida real. Acordar, se preparar para o trabalho, comer o que dá tempo, passar o dia trabalhando, voltar pra casa, tentar descansar e começar tudo de novo no dia seguinte.

Dias Perfeitos poderia facilmente cair em um extremo, tanto pessimista (mostrando que realmente não temos alternativa a esse mundo massacrante), como idealista, defendendo a ideia de que podemos ser plenamente felizes se valorizarmos as “coisas certas”. No entanto, o filme escapa dessa dicotomia, muito devido à atuação impecável de Kōji Yakusho (que, aliás, venceu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes em 2023).

Hirayama parece contente com a sua rotina perfeitamente calculada e fica claro que ele gosta do seu trabalho, mesmo sabendo que aquela não é uma profissão valorizada. Ele se atenta aos mínimos detalhes, sem se importar que, minutos depois de fazer seu trabalho, o banheiro precisará de uma nova limpeza. E, apesar de se concentrar na jornada de trabalho e no dia a dia repetitivo, o filme mostra que a vida acontece na imprevisibilidade e nas coisas que não estavam necessariamente planejadas.

Dias Perfeitos

Ao longo do filme, Hirayama tem interações com pessoas mais jovens, como o seu colega de profissão que detesta ter que limpar banheiros e está tentando impressionar uma garota, e a sua sobrinha, que tem alguns problemas com a mãe (irmã do protagonista), e aparece de surpresa na casa de Hirayama, passando alguns dias com ele. O Japão vem passando por um envelhecimento populacional que terá consequências cada vez mais significativas com o passar do tempo, principalmente quando falamos sobre previdência, economia e mercado de trabalho. Assim, é interessante perceber como o filme retrata o encontro entre diferentes gerações. O mais interessante é que elas acabam se conectando através da arte e não, necessariamente, por meio do trabalho. Músicas antigas e a paixão pela fotografia, por exemplo, é o que une pessoas de idades e realidades tão distantes.

Ainda sobre a imprevisibilidade da vida, Hirayama é uma pessoa que vive no presente. Nos seus dias de trabalho, ele vai almoçar no parque e leva sua câmera para fotografar os raios de sol atravessando a folhagem das árvores. Os japoneses têm uma palavra que traduz exatamente esse momento que os feixes atravessam as frestas: komorebi (木漏れ日). Podemos até ter imagens semelhantes e repetitivas (como de certa forma é a rotina do protagonista), mas na realidade, aquele momento só acontece uma única vez. Assim, as fotos de Hirayama demonstram o apreço do personagem pelo agora e revelam um dia perfeito de cada vez.

“A próxima vez é a próxima vez. O agora é agora.”

Dias Perfeitos

Dias Perfeitos não tem grandes reviravoltas, mas Hirayama precisa adaptar sua rotina com a chegada inesperada da sua sobrinha. Ela o acompanha em seu trabalho e eles parecem estar sempre em sintonia. Ela, com a sua própria câmera, também registra o komorebi. Apesar desses momentos de felicidade compartilhada entre os dois, quando a irmã de Hirayama aparece para buscar a filha, nos é revelado um pouco do passado do personagem. As falas de sua irmã dão a entender que Hirayama teve problemas com o seu pai, que agora não reconhece mais as pessoas, e isso o fez se afastar do restante da família. Nesse momento, percebemos que viver uma vida extremamente solitária pode até ter sido uma escolha, mas não quer dizer que ela foi fácil. É também nessa cena que vemos Hirayama, que até então transparecia apenas gentileza e quietude, transbordando suas lágrimas.

São essas nuances da vida do personagem que impedem Dias Perfeitos de retratar um idealismo ingênuo em relação à realidade. A cena final mostra Hirayama dirigindo para o trabalho ao som de “Feeling Good”, de Nina Simone. Ele está sorrindo e chorando ao mesmo tempo, enquanto várias emoções passam pelo seu rosto, tornando a conclusão e os reais sentimentos do personagem abertos à interpretação. Afinal, ele é realmente feliz com essa vida simples e solitária?

Dias Perfeitos não é uma propaganda que defende a positividade no capitalismo tardio e, ao contrário do que o título pode sugerir, afasta a ideia de que “basta querer para ser feliz”. Porém, encontrar alívio e felicidade nas pequenas coisas, na contemplação da natureza, na arte, na literatura, na fotografia, nas músicas e naquilo que leva tempo e paciência para vermos algum resultado, como cuidar de uma planta diariamente, ou se encantar quando um feixe de luz atravessa as folhagens, talvez seja a única forma de sobreviver nesse mundo hiperconectado e moldado pelo trabalho, que exige que tudo seja útil e produtivo.