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A Grande Jogada e o blefe no patriarcado

Se existe um gênero de filmes que os estadunidenses amam (principalmente na época do Oscar) é filme biográfico. Atores se transformando em pessoas reais, histórias de vitórias na adversidade, exceções à regra que conquistam a glória, e todos os clichês possíveis que se inserem no tropo do self-made man.

Faz sentido: pensando que o país preza muito por sua história de lutas sociais e busca pela liberdade — mesmo que a realidade não seja das melhores, o que mais vemos em filmes e séries dos Estados Unidos são pessoas reafirmando que o país foi construído em cima da Primeira Emenda, aquela que garante a liberdade de expressão. Dito isso, acredito ser possível afirmar que as duas coisas mais estadunidenses possível, segundo a cultura popular, é o self-made men, ou as pessoas que conquistaram o sucesso por conta própria, vencendo uma série de infortúnios; e pessoas que prezam pela liberdade de expressão antes de qualquer coisa. Para ilustrar melhor, é só pensar em qualquer cena de Parks and Recreation com Ron Swanson (Nick Offerman) e o final de Tom Haverford (Aziz Ansari), quando ele alcança o sucesso contando as histórias de seus fracassos.

A Grande Jogada (Molly’s Game, no original) transita entre esses dois conceitos: é uma história real de como uma ex-atleta que, depois de um acidente que antecede sua aposentadoria do esqui, se tornou a organizadora do jogo de pôquer mais exclusivo do mundo, perdeu milhões de dólares e quase foi presa depois de se tornar evidência chave de uma investigação do FBI contra a máfia russa. Tudo isso antes dos 30 anos. É uma história de fracassos e sucessos que termina nas mãos do sistema judiciário. O que o filme tem de diferente das outras milhares de histórias semelhantes que já vimos por aí? Ora, A Grande Jogada também é a história de como as mulheres sempre acabam perdendo quando querem vencer o jogo criado por homens. O filme também é um retrato muito bem desenhado do que é o patriarcado.

O filme é a adaptação cinematográfica da história real de Molly Bloom, apelidada pela mídia como “princesa do pôquer”, que se tornou a dona do jogo de pôquer mais exclusivo do mundo, com presença de atores de Hollywood, políticos e membros da máfia. Após o FBI acabar com o jogo e a imprensa tomar conhecimento dos envolvidos e dos escândalos possíveis, Molly transformou sua história em livro (Molly’s Game, que também dá título à versão cinematográfica) e, desde então, tem lutado para que o livro se tornasse filme.

a grande jogada

Molly Bloom (Jessica Chastain) nasceu para ser vencedora. Seu pai, um psicólogo severo demais com a educação de seus filhos, a incentivou (ou obrigou) a seguir a carreira no esporte, mesmo depois de uma cirurgia invasiva na coluna para corrigir a escoliose aos 12 anos. A história do pai é importante porque é a redenção dele que marca o ponto de virada para Molly. É quando ela — e os espectadores — percebem que mulheres não precisam seguir as regras dos homens para vencer: elas podem criar o seu próprio jogo.

Apesar de ter sido escrito e produzido antes dos escândalos e denúncias de assédio em Hollywood, é impossível assistir ao filme e não relacioná-lo a esse movimento. Em todas as entrevistas à imprensa, a atriz Jessica Chastain deixou clara sua opinião e posição frente a tudo isso. Ela acabou se tornando uma das muitas vozes de Hollywood a se posicionar em apoio às mulheres e às denúncias que não param de acontecer. Em uma entrevista ao jornal The Guardian, ela disse:

“I can’t imagine anyone releasing a movie right now and not having everyone talk about it,’ she concedes. ‘But this is really important for me, that this does not get swept under the rug of ‘this is a Hollywood issue’. Because this is a societal issue.”

“Eu não consigo imaginar alguém lançar um filme agora e não ter todo mundo falando sobre isso’, ela admite. ‘Mas isso é muito importante para mim, que não vá ser varrido para debaixo do tapete como ‘isso é um problema de Hollywood’. Porque isso é um problema social”

O filme também é a estreia de Aaron Sorkin, mais conhecido como o roteirista de A Rede Social, como diretor. Sua marca registrada são os diálogos longos, rápidos e um humor irônico e sarcástico. Tudo isso está presente em A Grande Jogada. Todas as cenas de Molly com seu advogado, Charlie Jaffey (Idris Elba) são ótimas e muitas vezes bem engraçadas. Outro ponto positivo são as cenas de pôquer. O filme tem uma narração em off de Molly que explica algumas situações, como se estivesse lendo seu livro em voz alta. Em algumas cenas, saber as regras do jogo é essencial para entender o que está acontecendo, e o filme fornece explicações que conseguem fazer leigos — como eu — acompanhar e compreender a trama.

a grande jogada

O advogado também tem um importante papel para Molly, pois a princípio ele está relutante em aceitá-la como sua cliente — consequência de todos os escândalos hollywoodianos em que ela está envolvida —, mas após ouvi-la e ler o seu livro, Charlie percebe que Molly é muito mais do que sua imagem pública aparenta ser. A relação de extrema confiança entre os dois é de longe a melhor parte do filme. Charlie se torna uma espécie de pai para Molly, e Molly se torna uma inspiração para a filha de Charlie. Apesar de mimetizar a relação pai-filha, no entanto, Charlie não precisa ensinar nada para Molly. A grande virada do filme é quando os dois apenas confiam e acreditam um no outro. Molly cresceu sem ter confiança nem credibilidade de seu próprio pai e era apenas isso que ela precisava para não desistir de mostrar o seu lado da história.

Independente do filme flertar com a ideia de que é o pai de Molly o culpado pelo seu fracasso, Molly deixa claro que assume a responsabilidades por todas as suas escolhas. Ela decidiu sair da legalidade para ganhar mais dinheiro, ela aprovou membros da máfia russa no seu jogo, ela começou a usar drogas para se manter atenta e acordada por dias, até o jogo acabar. Foi Molly quem decidiu construir um negócio a partir de jogos de pôquer. Foi ela quem roubou o jogo de seu antigo chefe e montou o seu próprio, que se tornou o maior e mais exclusivo jogo de pôquer do mundo. Ela se apropriou das regras em vez de criar novas e talvez esse tenha sido o seu erro.

Molly venceu no jogo que só homens participavam. As mulheres eram apenas convidadas a assistir, ou pagas para servir comidas e bebidas. Como ela mesmo afirma, as mulheres faziam parte do ambiente, faziam parte da atmosfera, estavam ali para seduzir e fazer os homens acreditarem que eram capazes de conquistar qualquer mulher. Molly criou um papel para si mesma no jogo que construiu, mas as regras já estavam postas na mesa. E é por isso que Molly acha tão importante se colocar como culpada, porque no sistema falido que é o patriarcado, nenhuma mulher vai conseguir vencer. Podemos seguir as regras e até ter sucesso em algumas batalhas, mas sempre que uma mulher poderosa ameaça subverter o sistema, ela irá cair. Molly aprendeu da pior forma essa lição, mas que bom que sua história continua a ser contada, pois é só aprendendo com os erros que será possível construir um mundo mais justo.

A Grande Jogada recebeu 1 indicação ao Oscar, na categoria de: Melhor Roteiro Adaptado (Aaron Sorkin)


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.