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Lena Waithe: mais uma voz para as mulheres negras na televisão

“Todos os dias, quando você passar pela sua porta, coloque sua capa imaginária, vá e conquiste o mundo — porque o mundo não seria tão bonito quanto é se nós não existíssemos nele”. O conselho foi de Lena Waithe para a comunidade LGBTQIA+, a qual ela agradeceu em seu discurso após receber o Emmy de Melhor Roteiro em Comédia ao lado de Aziz Ansari por Master of None. A escritora e atriz foi a primeira mulher negra (e lésbica) a receber o prêmio.

O episódio pelo qual o talento dela e de Aziz foi reconhecido é “Thanksgiving”, da segunda temporada da série. A história gira em torno dos Dias de Ação de Graças que Denise (Waithe) e Dev (Ansari) passaram juntos na casa dela desde que os dois eram crianças. Mas a tradição familiar era só um pano de fundo (como os feriados geralmente são na ficção) para o amadurecimento da sexualidade de Denise ao longo dos anos e as tensões que isso gerou dentro de sua família.

Não é uma coincidência que tanto Lena quanto Denise sejam lésbicas. A ideia inicial de Aziz Ansari e Alan Yang, idealizadores da série, era de que a melhor amiga de Dev fosse uma mulher branca e heterossexual. Mas o plano foi deixado de lado quando Lena fez a audição para a personagem.

Entretanto, não foi apenas na identidade de Lena que a história de Denise se inspirou. O roteiro de “Thanksgiving” bebeu direto da experiência da escritora. Ela tinha ido a Nova York se encontrar com Aziz e Alan para uma reunião. Mal tinha entrado na sala, Alan perguntou a ela: “Hey, como você se assumiu?” Ela contou. Não deu tempo nem de ela voltar para o hotel em que estava hospedada. No meio do caminho Aziz ligou pra ela, dizendo que eles precisavam fazer um episódio baseado na sua história. Lena topou.

“Vou ser honesta, escrever aquele episódio foi a coisa mais libertadora que eu já fiz. É a diferença entre ser uma escrava e ser liberta. Eles não trouxeram ninguém para reescrever ou para passar por um filtro de alguém que não seja como eu para transformar [o episódio] em algo mais palatável para uma audiência maior”, ela disse em entrevista para a The Atlantic. “O Aziz me deixou liderar. Ele disse: ‘Essa é a sua história, eu não posso contá-la do jeito que você pode e você precisa fazer isso do seu jeito’. Pra mim, ter aquela experiência era o suficiente, mas a reação a ela foi a cereja do bolo”.

Catherine (Angela Bassett), a mãe de Denise, também foi inspirada na mãe de Lena. “Minha mãe ficava me perguntando ‘Pra quem você contou?’ Isso era uma questão pra geração dela. E a outra camada era que ela não queria que a minha vida fosse mais difícil do que já seria por eu ser uma mulher negra. Mas ser quem eu sou, uma mulher negra e lésbica, foi exatamente o que me trouxe o sucesso que eu tenho na minha vida. As pessoas ficam encantadas com isso, ou surpresas por eu ser tão aberta e orgulhosa”, a escritora explicou para a Vogue.

A escolhida para viver Catherine foi Angela Bassett — ainda que Lena tenha ficado muito cética com a possibilidade de a atriz realmente topar participar de Master of None. “Angela Bassett é uma lenda. Sem Angela Bassett não existiria Viola Davis. Sem Angela Bassett, não existiria Halle Berry. Foi ela quem veio e fez as coisas que a Meryl Streep estava fazendo, mas sendo uma atriz negra”. Quando a estrela veterana aceitou o papel, o episódio ganhou mais uma camada de pressão para Lena. “[Eu pensei] ‘ah, merda. Agora eu realmente tenho que me impôr. Agora eu realmente tenho que subir de nível’”, ela contou para a Vanity Fair.

Outros detalhes do episódio também vieram diretamente da vida de Lena. Ela realmente achava que indianos eram negros também. A crush pesadíssima pela Jennifer Aniston? Diretamente de um pôster que a Lena adolescente tinha no quarto. Ela também namorou garotas como Nikki-nipplesandtoes23 — embora nunca tenha levado nenhuma delas pra casa no Dia de Ação de Graças.

“Thanksgiving” foi dirigido por Melina Matsoukas, que já levou para casa Grammys por vídeos como “Formation”, de Beyoncé. “Nós nunca tínhamos tido aquela experiência antes”, ela contou para a Vogue em uma entrevista sobre o episódio. “Eu tenho muitos amigos que tiveram experiências como essa, mas ficava desapontada por nunca termos visto nada daquilo representado na TV, ou mesmo em um filme”.

“É interessante porque [o diretor] Barry Jenkins disse que fez Moonlight para uma audiência de duas pessoas, ele e [o seu corroteirista] Tarell McCraney”, Lena disse para a The Atlantic. “Eu fiz o episódio para uma audiência de uma pessoa: eu mesma. Essa é uma coisa sobre a qual eu nunca imaginei que escreveria, não por eu ter vergonha, mas por me sentir meio ‘Eu sou gay, é claro que eu tenho uma história de ter me assumido’. Essa é uma parte da nossa narrativa, mas eu acho que as pessoas precisavam daquela história do meu jeito único, específico. E as pessoas terem acolhido [a história] do jeito que elas acolheram, eu sinto como se o mundo estivesse acolhendo, não só a mim, essa queer negra do sul de Chicago, mas eles também estão acolhendo a minha voz. É como se eles dissessem ‘Nós te vemos, nós te apreciamos e nós te amamos’, e esse era todo o combustível que eu precisava”.

Lena Waithe nasceu em maio de 1984, na região Sul de Chicago, e cresceu grudada na televisão — a obsessão dela por Jennifer Aniston não é à toa, afinal, mas ela sempre cita A Different World como sendo sua maior referência, sitcom americana que ficou no ar entre 1987 e 1993 e acompanhava os estudantes da fictícia Hillmann College, uma universidade historicamente negra inspirada em instituições de mesmo perfil nos Estados Unidos. A série foi uma das primeiras a tratar de temas que a televisão americana evitava, como a questão racial no país e também a epidemia de HIV do período. Lena contou no podcast Dinnerparty que era aquela criança esquisita, que, quando perguntavam o que ela queria fazer quando crescesse, respondia: “Eu quero escrever um episódio de ‘A Different World’”.

A Lena adulta não mudou de ideia. Ela se formou no Columbia College de Chicago, com graduação em roteiro, onde teve a oportunidade de escrever muito. Ela contou para o Buzzfeed News: “Eu acho que muitas pessoas não têm o luxo de escrever roteiros na faculdade. Eles chegam aqui [em Los Angeles] e tem que aprender já sendo adultos, mas eu venho escrevendo roteiros ruins há um bom tempo, então quando eu cheguei aqui e fiquei confortável, os roteiros começaram a ficar melhores”. Depois da formatura, ela se mudou para Los Angeles, onde começou na carreira do entretenimento, primeiramente, como assistente. Ela esteve na equipe do seriado Girlsfriends, do filme A Vida Secreta das Abelhas e foi coordenadora de produção de I Will Follow, primeiro longa dirigido por Ava DuVernay.

“Honestamente, eu aprendi sobre decoro e sobre como especificamente as mulheres negras precisam se portar nessa indústria”, Lena comentou com a revista Atlantic sobre os aprendizados que teve nesse começo de carreira. “Você não pode ficar irritada por causa de algum comentário, você não pode ficar com raiva por causa do jeito que alguma coisa está acontecendo, você não pode ficar infeliz com o processo criativo. Você tem que lidar com isso, você precisa ser a Claire Underwood em House of Cards. Naquela cidade, existe um estigma em ser mulher, principalmente uma mulher de cor, em que as pessoas estão sempre prontas pra te rotular como ‘difícil’ ou alguém com que ‘não é fácil de se trabalhar’. Isso já aconteceu comigo. Então, no fim, a gente precisa navegar por essa indústria de uma forma diferente. Às vezes a gente precisa ser gentil com quem não é gentil com a gente, às vezes a gente precisa ser educado mesmo quando não tá a fim, a gente tem que lidar com os executivos de uma forma diferente porque senão corremos o risco de sermos colocados na ‘cadeia da indústria’.”

Enquanto aprendia o necessário jogo de cintura para sobreviver em Hollywood, Lena conseguiu encontrar uma comunidade em Los Angeles. Com um grupo de amigos tão talentosos quanto ela, a “grande garota de Chicago” se envolveu em projetos que iam na contramão do que é produzido no mainstream tão somente por retratar pessoas como ela. Lena foi responsável pela produção do longa Dear White People, escrito e dirigido pelo amigo Justin Simien, filme que deu origem à série homônima da Netflix. Ela escreveu e dirigiu o curta Save Me, em que um menininho vai à busca do homem que o salvou de um incêndio. Com a amiga Ashley Blaine Featherson, escreveu a primeira temporada da websérie Hello Cupidem que duas garotas se aventuram pelo nada glamouroso mundo do namoro on-line. Com Anthony Hemingway e Mark Taylor, produziu o piloto de apresentação de Bros Before Hos escrito por Benjamin Core Jones, sobre a vida três irmãos (um deles gay). Os personagens principais de todos os projetos são negros.

Mas o nome dela ganhou destaque mesmo com o piloto de apresentação de Twenties, criado e escrito por ela e dirigido por Justin Simien, Ashley Blaine Featherson no elenco, etcs, ou seja: Lena estava rodeada por amigos e confortável para o que ela chamou de seu projeto “mais autobiográfico” até aquele momento em entrevista para a Jezebel. Twenties tem como foco Hattie, uma jovem com seus 20 e poucos anos, e aspirações de youtuber — com todos os percalços que isso inclui. À época do piloto de apresentação, na entrevista para a Jezebel, Waithe disse acreditar que a ótima repercussão que o projeto recebeu veio do fato de não ser nada muito ambicioso ou aspiracional, como a maior parte das narrativas centradas em negros: “Não é como Pense Como Um Homem, mas também não é Preciosa. Nós não estamos neste extremos.” A ideia inicial era tentar vender Twenties para alguma emissora, mas o projeto encontrou resistência da indústria, que não achava que haveria público para uma série dominada por jovens negros ou, em atitude contraditória, acreditava que a “cota” de show com protagonistas negros já havia sido preenchida graças a atrações como Scandal“Mas eu sou uma mulher com opiniões, crítica, que fala muita merda, que é dona de um toca-discos e não é só influenciada pela cultura negra. E eu não estou vendo isso na televisão. E eu acho que existem milhões de garotos negros assim. A gente assiste Downton Abbey. Eu assisto Girls”, ela defendeu na ocasião

Foi também na época de Twenties que a carreira de atriz de Lena começou — e tudo graças a um erro do site Refinery29, que disse que ela, além de ter escrito o piloto da série, também havia atuado nele. Alisson Jones, que ajudou a lançar carreiras de gente como Seth Rogen e James Franco, procurou sobre Lena, achou a escritora “original e engraçada” e entrou em contato com ela para um teste. Lena não tinha ideia de quem Alisson era, mas acabou topando por causa da sua própria filosofia de “fazer e ver o que rola”. O primeiro papel que Lena conseguiu foi em uma participação como uma blogueira meio blasé na série The Comeback, estrelada por Lisa Kudrow, de Friends, uma das séries prediletas de Lena (nunca esquecer da crush por Jennifer Aniston). Quem estava dirigindo aquele episódio em particular? Michael Patrick King, showrunner de Sex and The City, outro seriado que a escritora cresceu assistindo nos anos 90.

A vida continua após um Emmy histórico. Lena Waithe está com dois projetos engatilhados. O primeiro é a participação, como atriz, na adaptação cinematográfica do livro Jogador Nº1, dirigido por Steven Spielberg e com previsão de estreia para março do ano que vem. O segundo é a série de drama The Chi, que foi adquirida pela Showtime. A série havia sido anunciada em 2015, mas após o descarte do primeiro piloto (que já havia sido filmado), ainda não foi divulgada uma data oficial de estreia. Rick Famuyiwa, do filme Dope, será o produtor executivo além de dirigir o novo piloto. “É pra ser sobre Chicago. É pra ser sobre humanizar pessoas negras. Vai ser multiprotagonista”, Lena disse para o Buzzfeed News. Ao ser perguntada se estaria nervosa, ela respondeu: “Ficar nervoso é um desperdício de emoção. Você não pode ter nenhuma expectativa, boa ou ruim. Sempre há coisas a serem aprendidas, mas pra mim, o que se ganha dessas situações é que você não repete os mesmos erros uma segunda vez”.

Ela também está tentando tirar do papel um outro seriado, desta vez se passando em Los Angeles. A personagem principal será uma mulher negra, e a história se baseia nas experiências que ela teve quando se mudou para a cidade após a graduação. “A verdade é que o paradigma está mudando”, ela constatou para a The Atlantic. “Eles precisam de mulheres negras agora, pra ver. Olhe para a Ava, olhe para a Issa [Rae], olhe para mim mesma (…). Não se engane, as pessoas que são donas dessas grandes corporações e redes ainda estão mandando. Mas não existe coincidência. Quantos mais sucessos de bilheteria ou Globos de Ouro vão ser necessários pras pessoas perceberem ‘Ah, as pessoas que estão ‘no comando’ precisam se render ao que a cultura está querendo e precisando, pelo que ela está faminta’?”.

Mas no fim do dia, o que Lena Waithe quer ainda é o mesmo que aquela garota de sete anos grudada na televisão queria: escrever coisas que as pessoas possam se identificar. “Eu quero criar personagens que sejam duradouros e causam impacto. Porque pra mim sempre foi, tipo, A Different World. Eu era uma garotinha crescendo na zona sul de Chicago, e aquele show me fez perceber ‘Ah, existe um mundo além do meu quintal’, então, pra mim, a razão pela qual eu quero escrever é porque eu estou sempre pensando em quem será aquela garotinha que eu talvez possa inspirar e fazê-la pensar ‘Ah, o mundo é maior do que o meu quintal’”.

Odhara Caroline. Escritora. Continua sendo jornalista do mesmo jeito que continua acreditando em coisas boas — só de birra. Adora se apropriar de xingamentos dizendo que é feminazi, persegue cachorros na rua, explica tudo o que faz com base no mapa astral, sempre acaba fazendo drama demais e pedindo desculpas depois. Como boa millennial, não tem a menor ideia do que tá fazendo com a própria vida.
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