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Três Anúncios Para um Crime, muito aquém do esperado

Após longos meses de espera infrutífera pela solução do caso envolvendo o estupro e assassinato de sua filha Angela (Kathryn Newton) em uma estrada deserta próxima à cidade fictícia de Ebbing, Missouri, Mildred Hayes (Frances McDormand) finalmente perde a paciência e resolve tomar medidas “drásticas”. A mulher contrata a empresa de publicidade responsável por três outdoors abandonados na mesma estrada em que aconteceu o crime e — com fontes garrafais sobre um fundo vermelho — lança ao mundo a pergunta que não quer calar: Como pode, chefe Willoughby?

Como é de se esperar quando mulheres e outros grupos subalternos são vitimizados e protestam contra isso, não é expressivo o número de pessoas que apoiam a manifestação de Mildred. Muito pelo contrário: em sua imensa maioria, a reação da população da pequena cidade é de reprovação explícita, incluindo sua própria família, na figura do filho adolescente, Robbie (Lucas Hedges), e do ex-marido abusivo, Charlie (John Hawkes). A partir do momento em que o protesto é conhecido pelo público, a personagem precisa enfrentar a hostilidade da cidade inteira, agravada pelo fato de o chefe de polícia Bill Willoughby (Woody Harrelson) estar sofrendo de câncer em estágio terminal.

Atenção: esse texto contém spoilers!

As únicas pessoas que demonstram algum tipo de apoio direto à empreitada de Mildred, de forma não muito surpreendente, calham de ser de outros grupos minoritários, como a amiga e colega de trabalho Denise (Amanda Warren), o funcionário da empresa de publicidade Jerome (Darrell Britt-Gibson), ambos negros, e o anão James (Peter Dinklage), que tem uma paixonite nada disfarçada por Mildred. O grande problema é: nenhum deles recebe a menor atenção. São todos figuras fortemente secundárias sem nenhum destaque e que, no fim das contas, fazem pouco mais do que destacar o quão branco, heterossexual e masculino é o elenco principal do filme. Com exceção da própria Mildred, nenhuma personagem feminina tem o mínimo destaque, e as poucas que ainda existem são meramente acessórias a algum homem — como Anne Willoughby (Abbie Cornish), esposa do chefe de polícia, e a mãe do policial Dixon (Sandy Martin), que nem nome tem e é uma pessoa horrível e rasa. Isso sem falar em personagens como Pamela (Kerry Condom), namorada de 19 anos de Charlie, que é uma garota completamente estereotipada e sem nenhum conteúdo, que só serve como um alívio cômico descabido sem de fato subverter estereótipo nenhum.

Três Anúncios Para Um Crime

Quando vem à público o motivo do protesto da Mildred, o estupro, assassinato e a queima do corpo de Angela perde completamente qualquer relevância no filme. Quando muito, o crime é lembrado de forma rápida e de passagem, na maioria das vezes como instrumento para avançar ou introduzir algum ponto novo no conflito central da trama — o fuzuê causado pelos outdoors. Muito mais do que acrescentar para qualquer debate real sobre machismo, o que vemos em Três Anúncios Para Um Crime é mais um caso de violência de gênero usada como gancho para alavancar uma trama que pouquíssimo tem a ver com isso e que não acrescenta de nenhuma forma produtiva ao debate, à conscientização ou mesmo para a sensibilização quanto ao assunto. “Estuprada enquanto morria” é tudo o que sabemos e o único flash que temos da vítima do crime é, mais uma vez, para construir outros personagens que não ela, além de ser altamente desfavoráveis e até propensos a gerar culpabilização da vítima e da mãe pelo crime em um púbico mais amplo.

Outro problema social gravíssimo e muito atual é também usado de forma irresponsável pelo roteiro: a brutalidade policial contra populações negras. Nós, audiência, somos informados sem maiores preocupações de que o policial Dixon (Sam Rockwell) é acusado de torturar um homem negro que estava detido, e nada aconteceu com ele. No meio disso tudo, o chefe Wolloughby ainda solta a maravilhosa piada de que “se fossemos exonerar todos os policiais racistas só iam sobrar três, e todos eles odiariam viados (sic)”. Quem escolher assistir Três Anúncios Para Um Crime no cinema com toda certeza vai ouvir risadas do público não só nesse momento, como também em diversas outras passagens altamente inapropriadas e insensíveis. Usar o sofrimento de grupos oprimidos para fazer humor não é nada novo sob o sol: a diferença é que agora está na moda distorcer a história e conseguir manter a máscara de “engajado” enquanto se faz isso. Não dá para esquecer, especialmente nesses momentos, que o diretor e roteirista Martin McDonagh é, sempre foi e sempre vai ser um homem branco, um homem branco fazendo piada “engajada” com o sofrimento de outras pessoas.

Nada de novo. Ele se apropria de discursos revolucionários que estão em alta na mídia para ganhar público fazendo apenas mais do mesmo.

A premissa central de Três Anúncios Para Um Crime não tem espaço para o riso. Temos uma menina morta e estuprada, uma mãe que busca responsabilização e, sem nenhum propósito, homens negros sendo torturados pela polícia. Isso é dor, isso é dolorosamente real e cotidiano para muita gente e não é gancho para piada.

Três Anúncios Para Um Crime

Mais uma questão séria levianamente levantada e desconsiderada é a questão da violência doméstica. Segundo nos contam, durante o casamento, Mildred sofria violência de Charlie, mas mais uma vez o tópico é apenas jogado no ar e desconsiderado, a não ser no momento absolutamente desnecessário em que o ex-marido vai até a casa e começa a enforcar a personagem, cena que é interrompida de forma insólita e pseudo-cômica, mais uma vez fazendo piada e jogando a real questão para debaixo do tapete.

Se for preciso destacar algum ponto positivo nessa história toda, dá para dizer que pelo menos Mildred se afasta bastante dos estereótipos femininos tradicionais. Além de, em geral, performar pouquíssima (se é que alguma) feminilidade, não usando maquiagem, por exemplo — o que é algo bem bacana de se ver em um filme —, ela também foge da imagem tão conhecida e batida da mãe abnegada e sofrida que busca vingança pela filha passando por cima de todos os seus escrúpulos da boa mãe de família. Ela apenas não é. Isso não significa que ela não esteja sofrendo pela filha e nem queira ver os responsáveis punidos, mas claramente não houve nenhuma grande mudança de caráter e personalidade em função da morte da filha, como fica bem visível no único flashback do filme — essa é apenas quem ela é. Essa caracterização da personagem não deixa de ser bastante subversiva, mas considerando que — mais uma vez — Três Anúncios Para Um Crime foi roteirizado e dirigido por um homem branco, fica a dúvida real se essa intenção subversiva realmente existe ou se uma mãe estereotípica e feminina simplesmente não combinaria com a atmosfera agressiva e relativamente gore do filme.

O final é uma festa de outro elemento que conhecemos de longe: homens brancos defendendo homens brancos. Mesmo quando o policial Dixon finalmente é demitido, seus ex-colegas continuam a defendê-lo, incluindo o então já falecido chefe Willoughby, que deixa uma carta tão altamente ridícula que me rouba palavras para expressar minha raiva, dando um voto de confiança que acaba sendo o gatilho para uma — absurdamente inexplicável, inacreditável e absurda — redenção do personagem. Uma redenção que é tão sem sentido que consegue pegar um filme completamente problemático mas, em outros sentidos, não tão ruim, e levá-lo sem escalas à beira do ridículo. Um homem que tortura homens negros, incrimina mulheres negras para atingir seus objetivos e joga pessoas da janela, e de uma hora para a outra se torna aliado da protagonista em uma jornada final para caçar um estuprador que na verdade é muito pouco diferente dele. O nonsense final entre os muitos que compõem o filme vem a ser esse: pegar toda a trama construída, incluindo os ganchos oportunistas com problemas sociais, para culminar na justificação de uma dupla bizarra de justiceiros descontentes com os problemas de ineficiência do sistema criminal.

No meio disso tudo e partindo de um roteiro absurdamente fraco e mal fundamentado, a única coisa que realmente segura o filme enquanto produção e nos deixa em dúvida se realmente odiamos tanto o filme quanto nossos instintos nos dizem que odiamos, são as atuações, que são realmente tão boas quanto esperávamos, considerando os nomes que compõem o elenco. Infelizmente, não dá para separar as atuações do conteúdo problemático de Três Anúncios Para um Crime, e elas podem no máximo ser uma gota de alívio em um mar de desespero.

Três Anúncios Para um Crime

Três Anúncios Para um Crime recebeu 7 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson e Sam Rockwell), Melhor Roteiro Original, Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

21 comentários

  1. Também achei totalmente nada a ver a suposta redenção do personagem. Ficou ridículo e tudo o que ele fez de ruim foi ignorado no final, como se ele tivesse se tornado uma pessoa boa em cinco minutos. Eu também gostaria de ter descoberto mais sobre a filha da Mildred. Ela foi bem deixada de lado, quando deveria ter ganhado um espaço significante na história.

  2. Parabéns pela crítica brilhante. Três Anúncios… é um filme irresponsável e nocivo. E, desgraçadamente, vem sendo elogiado pela crítica e pelo público. Isso deixa claro a falta de empatia da maioria pelo sofrimento dos excluídos. Pior: o filme ainda pode ganhar o Oscar de Melhor filme. A sociedade vai da mal a pior. Mais uma vez, parabéns pela sua coerência. Vou compartilhar a sua crítica.

    1. Acabei de assistir esse filme entendo que tem finais que seus propósitos são de deixar o público angustiado mas o final desse filme não fez muito sentido e o objetivo principal da protagonista do filme foi jogado de lado , jogando toda a drama pelo ralo mas não deixa de ser um ótimo filme bem produzido com diversas críticas mas de um ponto de vista duvidoso , a pessoa que fez essa crítica realmente é incrível e agora sabendo que o diretor é uma pessoa branca uma cena faz muito sentido quando o homem negro que vai substituir o chefe da polícia que se suicidou entra e fala que esses branquelos não trabalham aí o dixth algo do tipo ( o policial que tacou uma pessoa da janela ) fala isso também não é racismo achei incrível vendo desse ponto de vista.

  3. Concordo plenamente!! Fazer um filme que fala sobre estupro é uma responsabilidade, envolve questões sociais e culturais que não podem ser deixadas de lado. Saí do filme me sentindo desrespeitada, achei extremamente indelicado.

  4. Meu deus, eu só assinaria embaixo falando: É isto. Eu terminei o filme sentindo um gosto estranho na boca, por mais que a Frances estivesse perfeita, eu ainda pensava que tinha algo errado. Foi necessário algumas horas, muitas pra entender todos os pontos e você colocou todos de uma maneira muito pontual.
    Obrigada por isso. Tem tanta gente falando bem que por um minuto achei que tava doida, mas vi que não.

  5. Também fiquei incomodada com esses aspectos do filme! Dava para a história ser boa ser essas ridicularizações e sem alguma redenção desmerecida. Preciso dizer, também, que tenho dificuldade em ver gente sendo inconsequente, então embora ela tenha seus motivos, quando a Mildred decide colocar fogo na delegacia, eu não consegui defender muito os motivos dela… também não gostei muito do jeito que tratou o personagem do Peter Dinklage.
    Achei as atuações interessantes e a história em geral, mas realmente tem essas falhas de ofender gratuitamente minorias.

  6. Vocês sabem ver filmes? Ou apenas querem mais uma aula de sociologia de segundo grau?
    Ou melhor: vocês entenderiam qualquer aula?

  7. Eu estava gostando , porque mostra como muitos humanos são idiotas, ignorantes, péssimos profissionais, e tão cagando pelo sofrimento dos outros. Achei que o final seria , mesmo com uma vingança, um alívio para a personagem e para nós. Mas o final do filme foi igual estar transando e tocar o cel avisando que a mãe morreu. Jogou por terra a chance de um grandioso final com ela crucificando o estuprador e tacando fogo nele, tendo como testemunha um ex-policial racista e descontrolado, que iria ocultar esse crime de vingança.

  8. Oi Paloma, não achei legal o jeito que você se refere ao homem branco. Quando você fala do homem branco (refiro-me ao diretor), é como se você estivesse falando de um brutamontes sem nenhuma empatia e que não sabe olhar pelo próximo.
    Outro ponto que eu queria destacar é que na sua conclusão você fala do “roteiro absurdamente fraco e mal fundamentado”, porém no próximo parágrafo tem as indicações ao Oscar, e um deles foi do melhor roteiro original. Talvez isso tenha feito com que seu texto tenha perdido um pouco de credibilidade, ao meu ver.

  9. Critica cheia de retórica e vazia de conteúdo. Não fez nada do que se propõe, analisar a obra cinematográfica. Melhor fazer um blog sobre minorias, etc.

    1. Pode até ser, mas que esse filme é super estimado, eu não tenho a menor dúvida. tô até agora tentando entender, porque foi tão aclamado pela crítica.

    1. O filme é uma maravilha: retrato crítico , sem dó, da sociedade americana, o resto é detalhe, detalhes que servem de ancoragem para as criticas a essa espinhosa sociedade: preconceituosa, violenta, homofóbica, reacionária, machista , unilateral na defesa dos direitos minoritários…é isso : navalha na carne americana!

  10. Gostei do filme. Penso que o final foi muito bom. Penso que o Dixon arrependeu-se do que fez. Ficou claro que a mãe dele que perturbava a cabeça do mesmo. E em sua cabeça perturbada, matou a mãe para se libertar.

  11. Nunca vi uma crítica tão desesperada por exibição contínua e ininterrupta de lacração nas telas do cinema. Nem tudo na sétima arte precisa ser um manual de bons comportamentos e costumes. Vocês podem viver sem isso

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