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Infiltrado na Klan: a obra necessária de Spike Lee e os legados do cinema

Spike Lee construiu sua carreira de diretor aliando cinema e combate ao racismo. Filmes como Faça a Coisa Certa (1989), Malcolm X (1992), Irmãos de Sangue (1995) e, o recente, Infiltrado na Klan (2018) são provas da bandeira que ele levanta constantemente. O diretor trabalha visando gerar debate para além da sala do cinema, seja contando histórias reais ou fictícias, amarrando-as com seu humor ácido e objetivo. Ele sabe muito bem o poder de perpetuar ideias que a comunicação tem através do cinema e faz uso dela para deixar seu próprio legado.

Infiltrado na Klan conta a história real do policial negro Ron Stallworth (John David Washington) que, como o título em português já dá a entender, se infiltrou no grupo racista e antissemita Ku Klux Klan, nos anos 70. O feito de Ron chegou às mãos do diretor por meio de Jordan Peele, diretor de Corra!, após Peele adquirir os direitos do livro de mesmo nome, escrito pelo próprio Stallworth, e confiar a Spike a missão de contar a — quase — inacreditável história.

Ron Stallworth foi o primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs, nos Estados Unidos, e também era o mais jovem entre os colegas. O verdadeiro Ron conta que sempre quis ser policial, mesmo sabendo do histórico de discriminação e violência da instituição para com os negros, que ainda hoje inspira movimentos como o #BlackLivesMatter e #VidasNegrasImportam, que ganhou força recentemente no Brasil depois do assassinato de Pedro Gonzaga. Ao ser entrevistado na seleção para entrar para a polícia, ele teve que responder como se sentiria em um ambiente no qual algumas pessoas tinham uma atitude negativa em relação a negros. O alerta de que o uniforme policial não o livraria do racismo dos colegas foi dado ali.

Já dentro da polícia, o primeiro trabalho de Ron como detetive foi monitorar um líder do movimento negro associado aos Panteras Negras, organização revolucionária americana que contestava o racismo e denunciava abusos da polícia — entre outras cositas más.

spike lee

Para entrar na KKK, Ron precisou apenas ligar para um número do grupo em um anúncio de jornal. Manifestando repulsa por negros e outras etnias não-brancas, ele não só conseguiu se infiltrar, como ainda conquistou a confiança de um dos membros e estabeleceu contato direto com um líder importante da organização, David Duke (Topher Grace). Tudo por telefone. Mas quando precisava comparecer a reuniões pessoalmente, por motivos óbvios, quem ia era seu colega Flip Zimmerman (Adam Driver).

O filme é bonito de se assistir e ouvir. Enquadramentos, fotografia e direção de arte reforçam as denúncias que Spike Lee faz ao longo do filme. A trilha sonora ora nos leva para a década do ocorrido, os anos 70, ora nos traz de volta. Esse movimento pode ser percebido em vários momentos, já que a intenção é justamente essa: fazer paralelos entre presente e passado, contando de forma contemporânea algo que aconteceu 40 anos atrás, e o final não nos deixa esquecer que essa história está mais próxima do que gostaríamos. Seja como thriller policial, drama ou filme de humor, Infiltrado na Klan cumpre seu papel dentro dos gêneros, passeando entre eles. Mas ele se propõe a muito mais que isso.

Spike Lee é bem didático e não é preciso muito para captar os subtextos que expandem a problemática do racismo institucional a outras questões. Através de discursos objetivos e subjetivos, o diretor joga luz também em temas como antissemitismo, machismo, ideologias nacionalistas e até às diferentes formas de enfrentamento ao racismo. Mas há, especialmente no filme, uma crítica ao próprio cinema enquanto difusor de estereótipos.

Spike Lee insere ao longo da história obras como …E o Vento Levou e O Nascimento de uma Nação, dois filmes importantes para a história do cinema, mas extremamente questionáveis, principalmente O Nascimento de Uma Nação, quiçá o filme mais racista de todos os tempos.

…E o Vento Levou romantiza a Guerra Civil no Sul, além de perpetuar o estereótipo da mammy, personagem de Hattie McDaniel. A descrição básica da mammy diz respeito a uma mulher negra e gorda, que cozinha muito bem, desprovida de vaidade, vida própria ou ambições. Esse perfil se incutiu no imaginário popular e apareceu em várias outras mídias norte-americanas, além de servir de “inspiração” para alguns autores brasileiros. É importante lembrar, ainda, que McDaniel foi a primeira mulher negra a ganhar um Oscar por seu papel no filme, em 1940. A atriz fez a maior parte de sua carreira interpretando personagens como a de …E o Vento Levou.

Em O Nascimento de Uma Nação, de D.W. Griffith, a representação dos negros é ainda pior. A começar pelo fato de que não há nenhuma pessoa negra no filme. Os atores fazem blackface (nome dado à caracterização de pessoas brancas como personagens negros, com estereótipos racistas atribuídos a eles). O filme também relativiza a Ku Klux Klan, faz uma caricatura da população negra, além de popularizar várias conotações negativas. Mesmo sendo muito criticado na época, no entanto, Griffith é, ainda hoje, considerado o pai do cinema moderno pelas inovações atribuídas a ele na sétima arte. Mas o legado deixado com esse filme foi muito mais prejudicial do que de algum modo revolucionário.

spike lee

Através dessa metalinguagem, usando cinema para debater a responsabilidade do próprio cinema, Spike Lee lança no ar mais uma crítica ao racismo institucionalizado. Afinal, o cinema funciona como um termômetro da sociedade. Ao mesmo tempo em que bebe da realidade para contar histórias, também joga referências de volta. E, querendo ou não, isso é uma responsabilidade muito grande.

Infiltrado na Klan é uma história necessária não só pelo teor extraordinário, como também por ser ainda muito atual. Para reforçar essa similaridade, Spike Lee encerra o filme com imagens reais dos atos em Charlottesville, nos EUA, em que a extrema-direita, racista, antissemita e homofóbica se mostrou bem viva. Por outro lado, o que não faltam são exemplos de que o “Black Power” segue firme, forte e mais afrontoso que nunca. All the power to all the people!


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!