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As influências do punk na reconstrução de Cruella

Brilhante, má e louca; essa é a natureza da Cruella a que somos apresentados na obra homônima que nos apresenta à sua história. Esses títulos são ecos da icônica personagem de 101 Dálmatas, mas um breve olhar pelo filme nos mostra que ela mudou do vinho para a água. Deixando de lado as peles e o cigarro, Cruella (Emma Stone) revela sua rebeldia e raiva a partir da incorporação de diversos elementos do estilo punk, tão marcante na Inglaterra dos anos 1970 e 80. Menos que uma personagem ligada ao consumismo, a nova Cruella utiliza a moda como arte performática. Contudo, suas motivações pessoais podem ir contra suas principais influências.

Enquanto a natureza original de Cruella marcava uma personalidade extremamente sádica e, de certa forma, cruelmente cômica, sua versão de 2021 parte do comum caminho dos traumas de infância que desencadeiam suas ações de vilania (embora sua natureza maligna seja marcante desde o nascimento). A obra nos mostra uma pequena menina de cabelos pretos e brancos, dotada de um talento nato para a moda e a destruição como forma de criatividade, mas as suas perdas são o estopim para sua transição de Estella, que quer apenas ser aceita, para Cruella, que quer dominar. Desde cedo, a personagem manifesta sua originalidade ao customizar seu uniforme escolar com patches, bottons, frases rabiscadas e diversos acessórios comuns ao mundo punk. Além disso, está sempre em posição de contra-ataque ao bullying sofrido, o que demonstra ser essa sua fase mais punk por justamente lutar contra um sistema opressivo, não tornar-se parte dele.

Vemos uma Estella adulta escondendo sua verdadeira personalidade, camuflando-se para se encaixar, sonhando com uma chance de mostrar o seu talento para a Baronesa (Emma Thompsom), símbolo da alta costura de Londres. Estella sente que finalmente encontrou seu lugar quando seu ato de vandalismo em uma vitrine desperta a atenção da Baronesa, que enxerga nela um potencial que há tempos não conhecia. No grande estilo O Diabo Veste Prada, a Baronesa representa a tradição e o monopólio das decisões que importam no mundo fashion, e tem a exploração da mão de obra dos seus trabalhadores como principal característica de sua personalidade de liderança.

É interessante perceber que, enquanto nada se sabe sobre a ligação da Baronesa com o passado sofrido de Estella, a aspirante a estilista venera o controle de sua chefe, e não demonstra perceber os conflitos éticos sobre a forma como está sendo explorada. Essa visão somente sofre reviravoltas ao perceber a influência da chefe em suas perdas e traumas de infância, quando o ódio vingativo aflora em seu peito. A motivação da personagem é o que mais causa contradição com a sua estética punk, pois a vingança é uma motivação puramente pessoal, não ideológica. Ela quer acabar com a Baronesa, não com a exploração no mundo da alta costura.

Emma Stone e Emma Thompsom dão vida à guerra marcada pelos figurinos de suas personagens, e o visual parece ser uma extensão natural das atrizes. A Baronesa quer se manter no pódio, com seu estilo completamente inspirado por visuais da Vogue e grifes como Dior e Balenciaga, e que se encaixam perfeitamente com o gosto da atriz. Enquanto isso, Cruella revela sua atitude ao incorporar o estilo das ruas, da contracultura, influenciada principalmente por uma grande figura do estilo punk: a estilista Vivienne Westwood. “O futuro” aparece literalmente manchado no rosto de Cruella, e vem para cravar o fim da ultrapassada Baronesa (a escolha da frase também faz referência ao sloganNo future”, “sem futuro” em tradução para o português, que os punks escreviam em suas roupas).

A recepção de Cruella mostra que o novo assusta, encanta, mas acima de tudo, não passa despercebido. Sua entrada triunfal no baile Black and White, um dos mais tradicionais da Baronesa, é marcada pelo casaco branco que pega fogo ao maior estilo Katniss Everdeen, e se transforma em uma versão totalmente desconstruída do vestido vermelho da coleção da anfitriã. O código Black and White [preto e branco] é mantido pela cor dos cabelos, mas a atenção de toda a festa foi roubada pelo visual extravagante e provocador, já que a principal característica desse tipo de festa luxuosa é a padronização dos convidados, todos vestidos de preto e branco.

Os figurinos são os verdadeiros divisores de água entre Estella, a personagem marcada pelas madeixas ruivas em um coque comportado, e Cruella, com seu conhecido penteado preto e branco. Emma Stone entrega um excelente trabalho ao atuar como duas personagens distintas, uma fadada ao esquecimento e a outra fadada à loucura. Os elementos da contracultura estão presentes não somente nas características das vestimentas, mas em toda a performance por trás delas. Vestidos feitos de jornais com o seu nome, desfile em caminhão de lixo, shows de pirotecnia introduzem Cruella ao mundo da moda.

Jenny Beavan é a mente por trás dos quase trezentos figurinos da trama. Em pouco tempo de produção, a estilista conseguiu trazer para o filme a estética punk presente desde o seu trabalho em Mad Max: Estrada da Fúria, que lhe rendeu um Oscar em 2016. Na cerimônia de entrega do prêmio, a designer abriu mão dos trajes de gala e andou pelo tapete vermelho com uma jaqueta de motoqueira condizente com o estilo dos personagens da distopia. Nada melhor que tal experiência para introduzir a moda punk à personagem até então conhecida pela tradição da alta costura e do consumismo.

Jaquetas de couro, cortes assimétricos, mensagens rebeldes, vermelho, preto e branco. O que caracteriza a criação caótica de Cruella é ricamente reaproveitado da produção de Vivienne Westwood. Essa estilista  esteve profundamente ligada ao movimento punk dos anos 1970 e 80, e foi responsável por trazer o estilo das ruas ao mundo da moda. Sua própria trajetória vai da customização dos uniformes escolares à vandalização de vitrines, letras de protesto e estilo motorcycle. Esses elementos influenciam não somente o estilo, como a própria construção da história da personagem. Outras inspirações para o novo visual de Cruella também possuem Vivienne Westwood como fonte original, tais como Alexander McQueen e John Galliano.

Além da moda, o movimento punk teve grande expressão no mundo da música, o que também se manifesta na escolha da trilha sonora do filme. Grandes nomes do rock clássico e do punk rock, como David Bowie, The Clash, The Blondies, Queen, Nina Simone e Black Sabbath, entre outros, ajudam a compor a atmosfera punk e acompanham a progressão da narrativa. Florence and the Machine empresta a magia de suas composições em “Call Me Cruella”, canção temática da personagem, cheia de referências à sua clássica natureza maligna:

“Beauty is the only thing that matters
The fabric of your little world is torn
Embrace the darkness and be reborn”

“Beleza é a única coisa que importa
O tecido do seu pequeno mundo está rasgado
Abrace a escuridão e renasça”

O duro trabalho para criar uma personagem rebelde não é acompanhada por motivações revolucionárias em sua guerra contra o império da Baronesa. O movimento punk tem sua origem em pessoas pobres e foi, desde sempre, muito politizado e crítico das esferas governamentais. Nesse sentido, Cruella não é uma personagem da contracultura, pois seu objetivo é meramente ultrapassar e vencer sua inimiga mortal. Com a manutenção do status quo, ela não quer destruir o império da Baronesa; pelo contrário, quer tomá-lo para ela. Quase em uma relação de monarquia hereditária e talentos de berço, é como se o mundo da moda londrina trocasse uma rainha por outra.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!