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A vez das mulheres em Game of Thrones?

Não há dúvidas de que Game of Thrones seja um dos maiores fenômenos audiovisuais da década. No ar desde 2011, a série baseada nas Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin acompanha as vidas de um extenso elenco de personagens, que transitam em um universo onde feiticeiras, dragões e exércitos de mortos-vivos são uma realidade, e cujas vidas são imediatamente impactadas pelo jogo político que se desenvolve no primeiro plano. 

Embora tenha se consolidado como um sucesso de público e crítica, reiterado a cada temporada, o tempo foi implacável em revelar as limitações da produção, sobretudo no aspecto narrativo. À medida que se distanciava do material de origem, Game of Thrones também deixava para trás muitas das qualidades que a haviam tornado uma série aclamada em primeiro lugar, desviando personagens e tramas sólidas sem, contudo, alcançar melhores resultados. D. B. Weiss e David Benioff, showrunners da série, repetem artifícios que tornam-se mais e mais desgastados com o tempo. Exemplo disso são os estupros de Sansa Stark (Sophie Turner), Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e Cersei Lannister (Lena Headey), desnecessários ao desenvolvimento narrativo tanto quanto um problema de discurso. Se, enquanto adaptação, a série está sujeita a reinterpretações do texto original, muitas dessas mudanças não necessariamente acontecem para melhor. Como escreve Clarice França, em um excelente texto sobre o assunto:

“Estamos falando de universos ficcionais, onde podemos colocar magos, elfos e dragões e fazer sentido, ficar plausível e divertido para quem lê/assiste/joga. Por que na cabeça de alguns fãs é mais fácil acreditar em dragões que falam do que num mundo em que uma mulher não seja maltratada a todo momento? Já que não estamos fazendo um relato histórico, podemos criar qualquer coisa, inclusive um mundo que seja mais igualitário.”

Naturalmente, a ficção não tem qualquer obrigação de criar mundos perfeitos ou livres de problemas e muitas histórias se utilizam de um contexto fantástico justamente para abordar questões presentes na realidade. Não é o caso de Game of Thrones: a série, de fato, não parece realmente disposta a propor algum tipo de discussão (embora seja difícil imaginar que o sofrimento, pura e simplesmente, possa ser considerado mero entretenimento).

Atenção: este texto contém spoilers

A sexta temporada, no entanto, propôs algumas mudanças. Pela primeira vez, mulheres assumiram papéis determinantes (mais ativos, menos passivos) e traçaram caminhos que as levaram a posições inéditas de autonomia e poder. Não foi, contudo, um caminho sem percalços.

Sansa Stark é quem exemplifica mais claramente o caso. Tirada de Winterfell para viver o que acreditava ser um conto de fadas, Sansa sofreu durante todo o período que viveu em Porto Real, mas cresceu em igual proporção, tendo ganhado algumas das tramas mais ricas e interessantes da série. De uma menina boba e inocente a uma mulher resiliente e sagaz, Sansa se tornou uma personagem notável e complexa, que crescia a olhos vistos, e assim continuaria sem a necessidade de um estupro — estupro este que serve muito mais ao desenvolvimento de Theon Greyjoy (Alfie Allen) do que ao seu próprio. Mesmo depois de assumir seu lugar em Winterfell, o que a torna uma peça decisiva na ascensão dos Stark, a coroação de Jon Snow (Kit Harington) como Rei do Norte é um lembrete do quão longe ela continua de uma posição de liderança. Se parece pouco provável que ela quisesse estar nessa posição, menos provável ainda parecem ser suas chances de chegar até lá, uma vez que a possibilidade nem sequer fora cogitada.

A morte de Ramsay (Iwan Rheon) é, em comparação, mais eficiente. Game of Thrones não precisou fazer de Sansa uma assassina para garantir sua vingança: ela viria, mas ela não necessariamente teria que sujar as próprias mãos. E, como no passado ele havia dado fim a tantos outros, são seus cães que garantem o fim de Ramsay. Sansa observa a cena impassível enquanto os animais se alimentam daquele que a violentara, em um momento de grande potência que não se esquece quem ela é em primeiro lugar: uma mulher cujas armas nunca foram óbvias.

É diferente do que acontece em Dorne. Muito diferente dos livros, Game of Thrones faz dos dorneses uma caricatura de si mesmos. As próprias Serpentes de Areia, que poderiam ir muito além da vingança pela morte de Oberyn Martell (Pedro Pascal), não fazem mais do que proferir frases de efeito. A aliança formada com Olenna Tyrell (Diana Rigg) pode indicar uma mudanças interessantes no futuro, mas essas continuam sendo apenas especulações até que deixem de sê-lo — ou nunca sejam concretizadas.

Em um extremo oposto, o retorno de Yara Greyjoy (Gemma Whelan) possibilita a visualização de uma mulher que desafia os papéis de gênero em sua terra de origem. Diferente do que ocorre no Norte, Yara é quem reivindica o trono das Ilhas de Ferro e não seu irmão, Theon — menos por uma questão política do que pela força da figura de Yara, nascida e criada nas Ilhas, e muito mais familiarizada com seu povo do que Theon. O que não torna menos positivo vê-la reinar: Yara é uma mulher lésbica e multidimensional, e mesmo o fato de ser delineada a partir do modelo de masculinidade que rege as Ilhas de Ferro não a torna menos interessante — criada por homens, ela emula os mesmos padrões de comportamento e é, de fato, considerada um deles.

Ao firmar uma aliança com Darnerys Targaryen, a série abre espaço para que Yara possa construir uma dinâmica mais profunda com alguém que não o seu irmão, e que, tanto quanto ela, foge à curva dentre as demais personagens. Embora tracem caminhos muito diferentes, ambas são mulheres que não se contentam com a submissão, mas precisam se esforçar para alcançar o poder, e a quem o casamento e a maternidade são questões secundárias ou de origem prática, como a necessidade de um herdeiro para a sucessão. Rumo à Westeros, as duas tem a chance de protagonizar cenas intensas de estratégia e batalha, podendo ultrapassar os limites de uma aliança meramente política.

Nem todos os personagens ganham maior dimensão no decorrer dos episódios. Brienne (Gwendoline Christie) e Melisandre (Carice Van Houten), embora centrais ao desenvolvimento da trama, não são delineadas de forma mais complexas para além do núcleo em que estão inseridas. Brienne, ao lado de Sansa, protagoniza uma bela cena, mas não lhe resta muito o que fazer quando as duas encontram-se a salvo. Melisandre, por sua vez, permanece à beira de um desenvolvimento que nunca se concretiza. No primeiro episódio, quando revela sua verdadeira face, a feiticeira parece bastante cansada, o que, somado à perda de sua fé, torna difícil entender as motivações que a levam até a Muralha. Nenhuma das suas questões pessoais, no entanto, são relevantes para a trama, fazendo com que ela só seja importante na medida em que é responsável pelo retorno de Jon Snow.

Longe dali, em Braavos, Arya Stark (Maise Williams) vive como Ninguém, em uma jornada que se desenvolve lenta e paulatinamente. Embora tenha uma rivalidade com a outra única garota do lugar, Game of Thrones traça a dinâmica entre as duas com considerável desenvoltura, aliando um contexto que, de fato, torna impossível que as duas não sejam, de certa forma, inimigas. É ao rejeitar a chance de se tornar Ninguém, no entanto, assumindo novamente sua verdadeira identidade, que Arya se vê novamente em movimento. O retorno também a possibilita colocar seus planos de vingança em ação, e eles não demoram a acontecer. Ao assassinar Walder Frey (David Bradley) fica claro, porém, que, embora continue sendo Arya Stark, Braavos foi um divisor de águas em sua vida, e a jovem que retorna a Winterfell não é — e nem poderia ser — a mesma que deixou seu lar anos antes.

Dentre todas as tramas, no entanto, é aquele desenvolvida em Porto Real a mais interessante. Com a ascensão de Cersei ao Trono de Ferro, a ambiguidade de sua posição é evidente. Desde o princípio, ela desempenha uma extensa gama de papéis — da mãe feroz, capaz de qualquer coisa por seus filhos, à vilã implacável e fria, à mulher apaixonada, à ambiciosa, ou àquela atormentada pelos fantasmas do passado —, o que torna sua nova posição, ao mesmo tempo, assustadora e extraordinária. Se é verdade que Cersei nunca foi uma pessoa agradável nem uma personagem menos do que controversa, ela também é a primeira mulher a conquistar o trono de Westeros, e embora seu amor por aqueles que ama seja indiscutível (ainda que nem sempre saudável), é longe da sombra dos filhos e dos homens da sua vida que ela tem a chance de concretizar suas ambições.

Não é por acaso que, desde seus anos iniciais, a sexta temporada de Game of Thrones seja uma de suas mais consistentes incursões, suprindo expectativas e desenvolvendo praticamente todos os núcleos de forma satisfatória. As barbaridades dos últimos anos não podem ser apagadas, mas os deslizes são um lembrete daquilo que pode — e deve — ser melhorado. Em seis temporadas, apenas quatro episódios da série foram escritos por mulheres, enquanto somente outros quatro contaram com direção feminina. Considerar Game of Thrones uma série feminista talvez seja ir longe demais, mas esse é um primeiro passo e, agora, a esperança que fica é a de que, cada vez mais, a série prove que a força de fato está em suas mulheres.