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A representação feminina no cinema brasileiro: uma breve história

Não é de hoje que a imagem da mulher e a representação da mesma na literatura, no cinema, na música e na televisão, se tornou objeto de pesquisa das mais diversas áreas de estudo. Desde meados do século XX, questões sobre o papel da mulher em sociedade e os estereótipos atribuídos ao feminino já eram analisados por teóricas feministas, que desde os primórdios do movimento dedicaram seus esforços a compreender como problemas de uma sociedade patriarcal eram refletidos em diferentes esferas midiáticas, e como o olhar masculino contribuía para a construção de arquétipos irreais, equilibrados no limiar entre a sexualização e a representação pouco complexa da figura feminina.

Quando pensamos no cenário brasileiro, essa configuração é mantida. Ainda que, em sua essência, o cinema brasileiro tenha incorporado diversos contextos em suas produções, mulheres foram com frequência moldadas a partir de uma perspectiva exclusivamente masculina. E. Ann Kaplan, teórica feminista pioneira no estudo da representação feminina no cinema e na produção cinematográfica realizada por mulheres, afirma, em A Mulher e o Cinema: Os Dois Lados da Câmera, que o estereótipo feminino projetado pela indústria cinematográfica foi idealizado por homens para o prazer e satisfação de outros homens. À época, a ausência de profissionais do sexo feminino por trás das câmeras contribuía para a construção desse cenário opressor. Entretanto, mesmo hoje, esse ainda é um problema recorrente; a diferença é que, no século XXI, essas questões são mais facilmente trazidas à tona e debatidas ampla e abertamente.

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Quando o cinema surgiu no Brasil, ainda em meados do século XIX, os espaços políticos eram constituídos homogeneamente por homens letrados, maiores de 21 anos, excluindo-se, portanto, mulheres e proletariado. Embora a Declaração dos Direitos Humanos considerasse a igualdade entre indivíduos, mulheres não eram contempladas pelo documento, o que viria a reforçar o aspecto inferior do seu papel na sociedade. Com a ascensão do discurso naturalista, que legitimava a figura masculina como determinante para a ordem social, e que tornou-se bastante influente entre a classe dominante da época, essa visão fez-se ainda mais forte, contribuindo para a manutenção do status quo. E no cinema, as coisas não eram muito diferentes: o olhar masculino era responsável por direcionar as narrativas cinematográficas, que refletiam a ordem social vigente. Conceitos como o fetichismo e o voyeurismo passaram a ser utilizados para descrever os diferentes prismas pelas quais eram concebidas personagens femininas, ao passo que estas se tornavam cada vez mais sexualizadas e submissas por consequência. Tentativas de ruptura existiram ao longo do tempo, sobretudo a partir da década de 1960, quando movimentos por direitos sociais de minorias começaram a ganhar força, mas os poucos avanços alcançados não foram suficientes para interromper a propagação de estereótipos nocivos. Como escreve a britânica Laura Mulvey, crítica de cinema feminista, no artigo intitulado “Prazer Visual e Cinema Narrativo”:

“O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia. Em seu papel tradicional exibicionista, as mulheres são, simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer que conota a sua condição ‘para-ser-olhada.’”

Somente em meados de 1932 as mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto e à candidatura eleitoral, um feito ainda inédito em muitas partes do mundo. Entretanto, as mudanças não foram acompanhadas em esferas mais amplas; a esse exemplo, a educação das mulheres brasileiras à época continuou a centralizar o trabalho doméstico, a maternidade e o casamento, não tendo incentivado a formação acadêmica, tampouco a carreira política. Aos homens, por sua vez, eram ensinadas qualidades como o respeito, a honestidade e a importância do trabalho. Em ambos os casos, o objetivo era o mesmo: reforçar papéis sociais a partir da distinção de gênero, algo que também se estendeu ao cinema. A década de 1930 foi marcada principalmente pelos dramas populares e as comédias carnavalescas que consagraram Carmen Miranda, mas porque o cinema continuava a ser uma indústria machista e misógina, mulheres continuaram a ser silenciadas. A própria Carmen Miranda é um exemplo disso, tendo sido camuflada pelo estereótipo da latina burra de grande apelo sexual em Hollywood, não muito diferente do que acontecia no Brasil. Alô, Alô Carnaval, comédia musical de Adhemar Gonzaga, tornou-se um grande sucesso por reunir alguns dos maiores nomes da música e do cinema da época (inclusive, a própria Carmen Miranda), mas também foi responsável por incluir diversas piadas de cunho machista em seu roteiro, além de utilizar, com alguma frequência, mulheres como objeto de cena, cuja única função era servir ao olhar e desejo dos homens ao seu redor.

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A escritora Kelly Sue DeConnick, anos mais tarde, viria a afirmar que “se você pode substituir personagens femininas por uma lâmpada sexy e a história basicamente funciona, talvez você precise de outro rascunho”, chamando a atenção para um problema ainda bastante recorrente. Alô, Alô Carnaval viria a utilizar muitas de suas personagens como recursos narrativos, a quem voz e autonomia não eram uma possibilidade. Longe de ser um caso isolado, o filme também evidenciaria a existência de uma abordagem bastante distinta no que diz respeito às mulheres na obra. Ambientado em um cenário festivo, Alô, Alô Carnaval encontra espaço para apresentar personagens ligeiramente subversivas, que conseguiram se desvencilhar dos moldes tradicionais para seguirem carreira na arte. Muitas incorporaram personas que viriam a se tornar grandes ícones do cinema brasileiro, o que não foi suficiente para livrá-las de outros estereótipos, contudo. Mais do que mulheres que apenas queriam — e serviam para — o divertimento, a aparente liberdade mascarava uma realidade de instabilidade, polêmicas e abusos, cujas consequências ficavam restritas aos bastidores e com os quais muitas lidavam sozinhas, na intimidade. Em decorrência, muitas artistas desenvolveram transtornos psicológicos ou doenças como o alcoolismo, e tiveram vidas bastante breves.

Ainda na década de 1930, Bonequinha de Seda, de Oduvaldo Vianna, presenteou o público brasileiro com a história de Marilda (Gilda de Abreu), uma jovem brasileira que se passa por uma francesa educada em Paris e recém-chegada ao Brasil. A beleza, o gosto refinado, a educação de requinte e o conhecimento sobre música clássica logo chamam a atenção de todos ao seu redor, que encantam-se com suas qualidades. Marilda é bajulada, cortejada e agita a elite do país, quando seu principal objetivo é, na verdade, vingar-se do homem que a humilhou no passado e salvar a própria família da miséria. À medida que a história avança, contudo, ela se apaixona pelo homem de quem buscara se vingar, um sentimento que é retribuído, e termina por colocar um ponto final ao plano. É um desfecho clichê, mas não inteiramente problemático: ao longo da trama, Marilda não perde o protagonismo e mantém autonomia para tomar as próprias decisões. Mesmo que desista do plano, ela o faz porque é assim que deseja e não por influência de terceiros ou obrigação, uma possibilidade rara para muitas personagens naquele período. Como esclarece a psicóloga Rosália Duarte, no livro Cinema & Educação:

“A mulher é, quase sempre, coadjuvante. De um modo geral, o protagonismo feminino em narrativas fílmicas é fortemente marcado por definições misóginas do papel que cabe às mulheres na sociedade; casar-se, servir ao marido, cuidar dos filhos, amar incondicionalmente. Mulheres livres, fortes e independente são frequentemente apresentadas como masculinizadas, assexuadas, insensíveis e traiçoeiras. São comuns as situações em que elas atual como elemento desestruturante, como a força de ruptura na narrativa.”

Em Bonequinha de Seda, Marilda é essa força: ela é uma mulher ativa, que possui voz própria e conta com a ajuda de outras mulheres para colocar seu plano em ação. O fato de assemelhar-se a uma heroína romântica clássica, reunindo qualidades como a delicadeza e o bom gosto, não a impedem de ser também transgressora, livre e independente ou de estar sempre em uma posição superior ao seu antagonista.

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O papel de Marilda foi escrito especialmente para Gilda de Abreu e muito da história da personagem confunde-se com a trajetória da atriz, que nasceu na França, mas veio para o Brasil ainda criança, com apenas quatro anos de idade. Durante as gravações e ao longo de grande parte de sua carreira, no entanto, Gilda teve de adequar-se aos padrões da época para garantir novos trabalhos, submetendo-se a uma adaptação tão radical que, entre outras coisas, exigiu que ela mudasse seu sotaque e fizesse uma cirurgia plástica para que suas feições se tornassem mais harmoniosa na câmera.

Anos mais tarde, Carnaval de Fogo, de 1949, demonstra que o cenário no cinema brasileiro continuaria o mesmo. No filme, somos apresentadas a Marina (Eliana), uma jovem artista que trabalha no hotel do namorado, o diretor artístico Ricardo (Anselmo Duarte). Quando uma quadrilha se hospeda no local, o casal se vê em meio a uma imensa confusão, que atormenta especialmente Marina, que passa a acreditar que seu amado é, na realidade, um criminoso. Sucesso de público, mas não de crítica, Carnaval de Fogo possui um elenco composto principalmente por homens brancos, sendo Eliana a única mulher cuja presença é relevante para a trama. Entretanto, seu papel em muito resume-se ao sofrimento pelo amor, que ela lamenta por a ter enganado, não sendo parte integrante da ação, tampouco da resolução do problema. É diferente do que acontece, por exemplo, com a Julieta de Grande Otelo, sátira que referencia uma das mais famosas personagens da literatura mundial e que eventualmente tornou-se uma das representações mais icônicas do cinema brasileiro.

Durante a década de 1940, todavia, mulheres brasileiras passaram a assumir tarefas mais amplas, nem sempre limitadas à esfera doméstica. A Segunda Guerra Mundial, sobretudo, possibilitou que novas configurações sociais fossem timidamente estabelecidas no mundo inteiro. Meninas deixaram de ser educadas em suas próprias residências para frequentarem colégios de freiras, ao passo que muitas mulheres passaram a exercer uma jornada de trabalho dupla, assumindo cargos em empresas ou grandes corporações. Ainda restringiam-se aos homens os cargos de gerência e liderança, mas, aos poucos, mulheres estavam conquistado novos espaços. O mundo, de forma lenta, estava mudando — o cinema, nem tanto.

Após o fim das duas grandes guerras que marcaram a primeira metade do século XX, o cinema hollywoodiano viveu os chamados “anos dourados”, quando foram produzidos os maiores clássicos da indústria norte-americana. O mesmo período foi caracterizado pelo retorno gradual das mulheres às tarefas domésticas (elas não eram mais necessárias em outros espaços), pelo baby boom e pela reconstrução dos países afetados pelo conflito. As narrativas cinematográficas foram diretamente influenciadas por esse contexto, que fez nascer um novo estereótipo: o das divas, que tanto podiam ser um exemplo de sofisticação, feminilidade e ingenuidade, a exemplo de atrizes como Audrey Hepburn e Grace Kelly, quanto de sensualidade, liberdade e mistério, como as também atrizes Marilyn Monroe e Brigitte Bardot.

No Brasil, essas figuras também existiram e representaram uma nova geração de mulheres. Destaca-se, a esse exemplo, a atriz Eliane Lage, notadamente um dos maiores nomes do cinema brasileiro. A alcunha de diva surgiu após protagonizar o filme Sinhá Moça, em 1953, no qual interpretou a personagem-título, papel também responsável por consagrar sua carreira como atriz. Baseado no romance homônimo da escritora e jornalista Maria Camila Dezonne Pacheco Fernandes, Sinhá Moça é ambientado em um Brasil escravocrata, às vésperas da abolição, onde a jovem Sinhá Moça, filha de um grande fazendeiro local, luta pela liberdade e direitos civis dos negros. O filme foi responsável por introduzir uma personagem feminina que era, ao mesmo tempo, romântica e determinada, feminina e destemida, e cujas opiniões eram franca e independentemente expressadas. Com base nos conhecimentos que adquiriu durante o período em que viveu fora da cidade, Sinhá Moça argumentava a favor dos escravos, mas muitas vezes era silenciada pelo fato de ser… mulher. Assim, quem termina por guiá-la é o jovem advogado Rodolfo Fontes (Anselmo Duarte), com quem compartilha ideais e, posteriormente, vive um romance proibido.

Entretanto, ainda que seja uma jovem muito bem intencionada, Sinhá Moça ainda é uma mulher da elite brasileira, branca e letrada, e é pela sua perspectiva que conhecemos a história. Os principais personagens do filme não estão na senzala, e a trama se desenvolve à moda hollywoodiana, tradicionalmente racista. Os escravos de Sinhá Moça são frequentemente tratados como pessoas a quem a capacidade de organizar-se em prol de uma luta que lhes diz respeito não é uma realidade, fazendo com que seja necessária a presença e apoio (e não tão dificilmente, o protagonismo) de personagens brancos para que a causa seja validada, e a opressão e a violência que sofrem, finalmente, questionadas e extintas. Quando conquistada, a liberdade termina por ter um gosto agridoce: trata-se de uma rendição politicamente correta, dentro dos moldes de uma sociedade que continuaria a explorar, silenciar e assassinar negros, mas que a partir daquele momento fora absolvida da culpa pelos crimes infligidos a eles anteriormente.

Em uma mudança de direcionamento, Sinhá Moça poderia ter seu panorama alterado: desenvolvido a partir da perspectiva de Sabina (Ruth de Souza), importante personagem no já tão pouco evidente núcleo das senzalas, o filme permitiria um desfecho mais consciente, tanto em questão de raça quanto de gênero, sem a necessidade de abrir mão de outras narrativas, que poderiam continuar a existir em segundo plano.

É perceptível que, embora tenha evoluído de forma considerável a partir da década de 1960, muito do que hoje conhecemos sobre a história do cinema brasileiro foi concebido por uma ótica masculina, cuja relevância ainda se mantém muito forte na indústria do entretenimento. Muitas foram as mulheres que estiveram nesses espaços, sobretudo como atrizes, mas poucas são aquelas que são celebradas até hoje ou que foram devidamente celebradas no passado. A falta de cuidado na preservação e manutenção da maior parte desses filmes, além dos incêndios que destruíram grandes acervos ao longo da história, fez com que muitos homens que participaram ativamente da história do cinema brasileiro também tenham sido esquecidos com o tempo. Entretanto, não é preciso ir muito longe para perceber que, em comparação, as mulheres sempre saíram em desvantagem.

Ao relatar essas histórias por uma perspectiva única, a indústria cinematográfica (e o cinema brasileiro) está, também, reforçando padrões nocivos, que até hoje são um problema recorrente. Nos últimos anos, em particular, muito tem sido dito sobre a representação feminina no cinema, mas ainda é preciso percorrer um longo e tortuoso caminho até alcançarmos a tão almejada paridade de gênero. De forma gradual, mas constante, o mundo está mudando — e é preciso que o cinema brasileiro comece a mudar também.