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O Serviço de Entregas da Kiki: uma história sobre crescer e se tornar adulto

Como você gostaria que uma nova jornada na sua vida começasse? Para a jovem bruxa Kiki, decididamente, será numa noite de lua cheia. Preferencialmente, em uma de céu limpo. Assim, quando ela ouve a previsão do tempo no rádio, ela não tem dúvidas: chegou o momento perfeito para iniciar seu treinamento. Assim começa O Serviço de Entregas da Kiki, animação de 1989 do aclamado Studio Ghibli. Prestes a completar treze anos, chega a vez da bruxinha de seguir uma velha tradição do mundo bruxo: sair de casa por um ano e vivenciar seu treinamento. Durante esse período, ela deve se mudar para outra cidade e descobrir sua vocação, que seguirá na vida como bruxa. Parece um cenário familiar? É porque não é muito diferente da transição da adolescência para a vida adulta. Na animação, Kiki pode ter treze anos e ser uma bruxa, mas vivenciar as dores e dificuldades do que é crescer, conquistar sua independência e se colocar no mundo, é algo comum a todos nós.

Atenção: este texto contém spoilers!

Expectativas x realidade

Vestido preto, laço vermelho no cabelo, a vassoura da mãe, rádio do pai a tiracolo, uma mala e Jiji, seu gatinho preto. Kiki não precisa de mais do que isso para sair em sua grande jornada. A partida para o treinamento em “uma noite perfeita” era a maneira ideal de começar a nova fase da vida com o pé direito. Nada poderia dar errado, certo?

Pelo contrário. Previsões se chamam assim pois mesmo com as melhores tecnologias e estudos sobre meteorologia, a natureza ainda se mantém imprevisível. O céu limpo dá lugar a uma noite chuvosa e Kiki, para se proteger, acaba se esgueirando em um trem fugindo da chuva. De uma sky trip agradável com a trilha sonora perfeita, a bruxa acaba passando a noite em meio ao feno, com direito a algumas vacas amigáveis de companhia.

Nem a noite desastrosa abala o otimismo de Kiki. Como toda boa jovem em busca de sua independência e um mundo de sonhos e expectativas guardados no peito, ela se mantém confiante e animada com o início de seu treinamento. Tudo bem, a partida não saíra como o planejado. Mas o trem — um elemento totalmente inesperado — a levara para a cidade dos sonhos: uma metrópole à beira-mar, com direito a bondinho e uma torre com relógio. Um serendipity — aquele acontecimento ao acaso, que soa como se o universo tivesse conspirado a seu favor para você encontrar esta surpresa boa.

No universo de Kiki, só se pode ter uma bruxa em cada cidade. Apesar de conviverem normalmente com humanos e eles saberem de sua existência, elas não são muito comuns neste mundo — o que, é claro, faz com que ela atraia bastante atenção. Kiki não apenas é uma bruxa, mas é também uma garota recém-chegada na cidade — uma que, diga-se de passagem, aterrissa com a vassoura no meio da multidão e leva o gato preto no ombro. Esse lado outsider é reforçado também pelo vestido preto — simples, largo e com mangas longas — e o grande laço vermelho na cabeça, que destoam completamente das roupas que os habitantes da cidade usam. Essa questão é algo que a animação usa não apenas com um elemento estético que destoa Kiki das outras pessoas, mas também como parte do sentimento dela própria de se adaptar a um local novo, no qual ela se sente fora do lugar.

O Serviço de Entregas da Kiki

As dificuldades de se adaptar a uma nova cidade e, consequentemente, aos seus costumes, a um novo estilo de vida e a pessoas diferentes é algo que acompanha Kiki do início ao fim do filme. Vemos essas mudanças e novidades tanto externa como internamente, em questões práticas, como encontrar um lugar para morar, e também subjetivas, quando a personalidade e o modo que Kiki vê a vida vão se modificando. Hayao Miyazaki — produtor, diretor e roteirista da animação — apresenta isso como parte do processo de amadurecimento da personagem. O ano de treinamento não é só um período em que Kiki descobrirá sua vocação como bruxa, mas também é o período de transição entre a infância e a vida adulta.

O Serviço de Entregas da Kiki é mais um exemplo de coming of age da Ghibli. As dores e medos que Kiki sente ao crescer — de entender as mudanças e aprender a deixar uma parte de seu mundo partir — me lembram muito o sentimento que Lorde descreve em “Ribs”, música do seu primeiro álbum, Pure Heroine.

“This dream isn’t feeling sweet
We’re reeling through the midnight streets
And I’ve never felt more alone
It feels so scary, getting old

I want ‘em back (I want ‘em back)
The minds we had (the minds we had)
How all the thoughts (how all the thoughts)
Moved ‘round our heads (moved ‘round our heads)”

Esse paralelo fica para mim ainda mais evidente em uma das falas mais conhecidas do filme. Após se recusar a sair com Tombo e seus amigos, Kiki volta para casa e desabafa com Jiji:

“Jiji, eu acho que há algo errado comigo.
Eu faço amigos e depois não quero mais ficar com eles.
Parece que aquela eu, alegre e honesta, foi embora”

A sensação de se sentir sozinha, o desejo de resgatar o seu eu mais livre e otimista de antes e a própria dor que é encarar que a realidade da vida adulta não faz jus às nossas expectativas são quase que sentimentos universais dessa transição da adolescência para a vida adulta. Kiki vive isso ao mesmo tempo que conquista a sua independência e passa a conhecer mais de si mesma.

Entendendo seus limites

A Kiki otimista, do rádio e danças com o pai, ansiosa pelo futuro e uma cidade grande com discotecas, onde ela encontraria um namorado, dá lugar a uma jovem mais insegura quanto a suas habilidades e sua própria condição de bruxa.

Como a própria Kiki explica no filme, ela nunca pensou muito sobre a bruxaria em si e todos os pormenores que envolvem seu treinamento. É no voo, por acaso, que ela encontra algo de onde pode tirar seu sustento. Mas o quão especial é isso, se todas as bruxas podem voar? Todas as pessoas à sua volta tem um talento e uma paixão pela qual se movem — sua mãe com as poções, Tombo com a aviação e Ursula com suas pinturas. E Kiki? O que representa isso para ela?

Essa é uma questão que fica ainda mais forte quando Kiki perde, temporariamente, a habilidade voar. É a força de seu espírito — sua energia e força de vontade — que a permite ser capaz de fazer isso e no momento, Kiki se sente esgotada. Por sua natureza proativa e generosa, sempre disposta a ajudar os outros, além da necessidade de trabalhar, ela aceita entregas que exigem muito dela: longas distâncias, viagens na chuva… Há também imprevistos, que a fazem gastar ainda mais tempo e energia no trabalho.

Não demora e a rotina de Kiki se torna completamente voltada ao serviço de entregas. Por viver sozinha, ela ainda conta com outras demandas do seu próprio dia a dia, como fazer compras, cozinhar sua comida, arrumar o quarto, cuidar de Jiji e outras tarefas domésticas. Além disso, ela também se pressiona para ser melhor — para melhorar seu trabalho, conseguir mais clientes, errar menos e não decepcionar ninguém. Tudo isso consome tempo e energia, e sem um espaço para descanso e lazer, Kiki se vê esgotada — mentalmente e fisicamente. Nos termos atuais, é o chamado burnout, como bem discutido neste texto do The Face e na conversa da Glênis Cardoso com Max Valarezo no podcast méxi-ap.

O Serviço de Entregas da Kiki

É só quando Kiki descansa e passa um tempo com Ursula em sua cabana na floresta que ela consegue entender melhor o que está sentindo e passando. Na conversa com a amiga, fica clara a importância do distanciamento e repouso, além do cultivo de hábitos e hobbies que nutram seu ser, como uma forma de preservar sua energia, cuidar de si mesmo e manter a inspiração viva, para que lhe guie todos os dias.

Vínculos e vulnerabilidade

Na jornada de Kiki em busca de sua vocação, as personagens mulheres da trama criam um círculo de apoio e suporte à bruxa. A primeira de todas é Osono, que oferece um lugar não só para Kiki morar, mas também para ser a base de seu serviço de entregas. Depois, Ursula, que a ajuda com sua primeira entrega e se torna uma amiga, e posteriormente, Madame, cliente e figura que sempre a trata com carinho. Todas elas, à sua maneira, ajudam Kiki a ganhar mais confiança em si mesma e acreditar em seu trabalho. São vínculos que ela constrói e nascem de imprevistos ou situações fora do comum, que nos lembram da força que um ato de gentileza pode ter em nossas vidas.

Outra relação importante que Kiki desenvolve no filme é com Tombo, o garoto fascinado por ela desde que a conhece. No início, ela é fechada e se mostra resistente em aprofundar a amizade, especialmente por se sentir diferente dos amigos dele. Com o tempo, ele vai conquistando o carinho de Kiki e no final, também a ajuda a recuperar sua capacidade de voar.

Se mostrar mais vulnerável com as pessoas ao seu redor e entender que ela pode sim cometer erros, passar por dificuldades — e que ela não é um fracasso por isso — é crucial para que Kiki cresça como personagem. Mesmo com seu amadurecimento, ela não perde sua essência: continua a garota resiliente, gentil e generosa que sempre foi. O início da jornada de Kiki não foi perfeito. Mas, mesmo com todas as dificuldades, ela dá todos os dias o seu melhor. Os imprevistos, às vezes, têm sua graça (e propósito). Assim é a vida e seguimos, um dia após o outro, descobrindo e aprendendo como é ser adulto.

6 comentários

  1. Acabei de assistir o filme e adorei. Me senti muito tocado. É como se os poderes e a habilidade de falar com o gato fosse parte da infância. Então quando ela perdeu essa habilidade e no final não parece ter recuperado a capacidade de entender o gato, eu fiquei triste e imaginei que isso envolvia o fato dela ter amadurecido. Mas tb notei que ela reagiu embora com tristeza, também acolhimento e aceitação sobre isso, quando o gato sobe no pescoço dela após ela salvar o garoto. O que vc acha disso?

    Apaixonei pelo seu texto. Você trouxe coisas que eu ainda tava cozinhando na cabeça pra conseguir entender melhor. E sua visão e escrita foi apaixonante pra mim. Muito obrigado!

    1. Eu também me senti assim como você quando percebi que a Kiki não havia recuperado a sua habilidade de falar com Jiji, mas depois achei a explicação que isso é um simbolismo referente ao amadurecimento e crescimento pessoal de Kiki. Não fiquei menos triste com tal explicação, mas são coisas da vida…

      1. Exatamente, Ewerton! Super concordo com você: é triste, mas você meio entende que são coisas da vida.

      2. É exatamente como quando deixamos a infância, ganhamos coisas boas como a independência, maturidade, fibra, mas também perdemos coisas valiosas que não vão voltar.

    2. Oi, Marcelo! Eu concordo com você. Acho que a Kiki perder essa habilidade de falar com o Jiji, o gatinho dela, simboliza muito esse amadurecimento. É algo que parece ser meio inevitável, mas dá um sentimento meio agridoce, né? Acho que crescer, no fim das contas, é bem isso.

      Fico feliz que tenha gostado do texto! Abraços <3

  2. A direção desse filme soube usar o apelo emocional para desenvolver os sentimentos da personagem de forma leve mas também categoricamente fiel às expectativas e nostalgias do expectador. Amei o artigo, soube explicar a mensagem principal do filme muito bem.

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