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Coisa Mais Linda: Brasil para gringo ver

Quando Coisa Mais Linda foi anunciada pela Netflix como sua mais nova produção original brasileira, fiquei empolgada. Os teasers divulgados pela gigante do streaming mostravam imagens centradas em uma fotografia impecável do Rio de Janeiro do final da década de 1950, figurino, arquitetura e cenografia belíssimas, e um grupo de personagens femininas que parecia interessante. Desde sua estreia, na primeira semana de abril, foram muitos os comentários exaltando a série, a qualidade de suas atrizes e o enredo cativante. Mas será tudo isso verdade ou mera empolgação de um amor à primeira vista?

Atenção: este texto contém spoilers!

Quando a série começa, acompanhamos Maria Luíza (Maria Casadevall) chegando ao Rio de Janeiro. A moça está à espera do marido, que deveria buscá-la no aeroporto, mas ele nunca chega. Cansada de esperar e com o endereço do novo apartamento dos dois na Cidade Maravilhosa, Maria Luíza chama um táxi e vai ao encontro dele, apenas para descobrir uma série de engodos e decepções. O restaurante que os dois deveriam abrir juntos no Rio de Janeiro, sonho que ela nutriu e cuidou por anos, simplesmente não existe e tudo o que há no lugar é um salão arruinado e móveis empoeirados. No apartamento em que o marido deveria viver, há roupas espalhadas e a bagunça generalizada de quem partiu apressado e, o que é pior, a marca de que ele não estava sozinho: a mancha de batom deixada em um copo com uísque é o símbolo que Maria Luíza precisa para concluir que foi roubada, traída e abandonada por aquele que jurou amá-la até que a morte os separasse.

A raiva que sente do marido e da traição faz com que Maria Luíza, em um rompante de raiva, comece a destruir o apartamento e coloque fogo nas roupas deixadas por ele, dando início a uma fogueira que logo foge de seu controle, tornando-se um incêndio. Exausta da raiva e da fúria, Maria Luíza se desespera vendo-se encurralada pelo fogo, e é nesse momento que Adélia (Pathy Dejesus) invade o apartamento e salva a moça desiludida do fogo iminente. É com esse início que Coisa Mais Linda coloca todas as suas cartas na mesa: Maria Luíza, a pobre menina rica, abandonada pelo marido que foge com todo o dinheiro destinado a construção e inauguração do restaurante, precisa se reerguer e encontrar meios de realizar seus sonhos mesmo que a situação pareça a pior possível — mas será que é mesmo?

Coisa Mais Linda

Ainda que seja realmente uma perda digna de todo o ódio do mundo, afinal Maria Luíza se vê traída, abandonada e roubada pelo próprio marido, a moça ainda conta com o amparo da família rica que vive em São Paulo e está cuidando de seu filho. Ela não é uma mulher completamente sozinha e sabe que terá um lar para onde voltar caso tudo dê errado — após uma epifania regada à champagne e uma tarde à bordo de um luxuoso iate, Malu decide permanecer no Rio de Janeiro e erguer o restaurante de seus sonhos, mesmo que para isso tenha que ficar longe de seu filho por um tempo. Seu pai, Ademar (João Bourbonnais), um rico empresário paulistano, ameaça cortar sua mesada e privilégios, além de ficar com a guarda do neto, caso ela não retorne para São Paulo, mas Maria Luíza é irredutível e fica no Rio de Janeiro mesmo sem a aprovação da família. É tudo muito dramático, mas é sabido que, caso ela se mostre arrependida e tente retornar para a família, seu pai a receberá como se nada tivesse acontecido — o que realmente acontece, não muito tempo depois. Mas estou me adiantando.

É a partir desse momento de decisão, em que Maria Luíza fica no Rio de Janeiro para correr atrás dos seus sonhos e independência financeira, que tem início, também, a sociedade entre ela e Adélia. Maria Luíza sabe que precisa de alguém em quem confiar, e a moça parece ser a pessoa ideal para dar início ao seu restaurante ou, melhor, seu bar de bossa nova com música ao vivo e tudo o que há no pacote. Adélia não acredita de primeira nas boas intenções de Malu, mas aos poucos coloca também as suas fichas na aposta maluca da moça paulistana e, juntas, as duas criam o bar que teria tudo para dar certo — até que não. Coisa Mais Linda mostra que nem tudo é tão simples assim na vida, mesmo ficcional, e um alagamento leva embora tudo o que Malu e Adélia construíram para si, fazendo com que a primeira tenha um breakdown, reclamando como tudo é injusto e tão difícil para ela.

A cena mais memorável e importante de Coisa Mais Linda acontece exatamente nesse momento e a Netflix, que de boba não tem nada, a usou para promover a série em seu período pré-lançamento. Cansada do drama que Maria Luíza está fazendo sobre perder tudo, Adélia diz para ela com todas as letras que se estava difícil para Malu, filha de pais ricos, menina branca e bem cuidada a vida inteira, o que dirá para ela, moça negra, mãe solo, cria da favela? Poucos momentos na série ecoam toda a diferença entre mulheres brancas e negras quanto essa cena entre Maria Luíza e Adélia, e é uma pena que seja um dos únicos a dar a verdadeira dimensão do recorte de raça que há na vida de cada mulher, assim como as divergências — e diferenças — entre feminismo branco e negro. Mas Coisa Mais Linda não está interessada em aprofundar essa discussão, e a incrível personagem de Pathy Dejesus, inclusive, não recebe muito mais do roteiro do que isso. Ao contrário, todos os esforços são direcionados para a personagem rasa e mecânica de Maria Casadevall que parece nunca encontrar o tom certo de sua heroína e segue transitando entre Midge Maisel, a protagonista de Rachel Brosnahan em The Marvelous Mrs. Maisel, e a Lidia de Blanca Suárez em Las Chicas del Cable.

Coisa Mais Linda

Com a destruição do bar, Malu retorna para a casa dos pais em São Paulo, abandonando Adélia à sua própria sorte no Rio de Janeiro. Mas é por meio da interferência de sua mãe, Ester (Ondina Clais), que Maria Luíza percebe que não quer mais essa vida para si — não quer ser apenas a filha de alguém, a esposa de outro e a mãe de seu filho. Ela quer ser sua própria pessoa e dona de sua vida, de suas escolhas, e, dessa forma, decide retornar para o Rio de Janeiro e tentar de novo. Dessa vez suas motivações estão mais certeiras, mas Maria Luíza precisa se esforçar para trazer Adélia à bordo novamente — reconquistar a confiança de alguém leva tempo, mas para Malu é tudo simples e rápido. Coisa Mais Linda, o bar, logo entra em funcionamento e se transforma em uma das melhores atrações noturnas do Rio de Janeiro, reunindo música de qualidade, bebidas de origem duvidosa e uma hostess, Malu, que segue tentando acertar.

Ao redor de Maria Luíza orbitam, além de Adélia, Lígia (Fernanda Vasconcellos) e Thereza (Mel Lisboa), todas com histórias de vida e personalidades muito mais interessantes e efervescentes do que Malu. Lígia é amiga de infância de Malu e vive no Rio de Janeiro, ao que parece, em um casamento perfeito. Seu marido, Augusto (Gustavo Vaz), é político e tem como objetivo chegar ao governo do estado, então segue envolvido em comícios e jantares com figurões cariocas, tentando angariar apoio de seu partido para a nomeação. Lígia, enquanto isso, tem a única obrigação de se manter sempre bela e sorridente para as fotos e os eventos, mas seu verdadeiro sonho é cantar, algo que o marido proíbe terminantemente. O casamento que parecia tão incrível é, na verdade, uma prisão para Lígia que começa a ser espancada e estuprada por Augusto quando ela revela sua vontade de cantar. O relacionamento abusivo se desenrola em cenas dolorosas de assistir, e o olhar intenso e a interpretação de Fernanda Vasconcellos fazem com que tudo soe ainda mais verossímil e assustador. A história de Lígia é a da dor da mulher que vive em uma prisão a olhos vistos mas que não conta com o apoio de ninguém para se libertar afinal, é (só?) a década de 1950 e o papel da esposa é o de ser submissa e complacente às vontades do marido.

Thereza, enquanto isso, é casada com o irmão de Augusto, Nelson (Alexandre Cioletti) e parece ser a mulher mais moderna de seu grupo de amigas. Bissexual, liberal e abertamente feminista, Thereza trabalha na edição de uma revista feminina e tenta diariamente incluir mais mulheres na redação que, não choca ninguém, é composta apenas por homens. É tentando diversificar e mudar o discurso da revista que Thereza contrata Helô (Thaila Ayala), uma jovem que aspira ser escritora mas trabalhava como modelo para um influente ateliê de costura. Com toda uma postura liberal, relacionando-se romanticamente com homens e mulheres, o sonho de Thereza é ser mãe, algo que não consegue sê-lo e que a marca mais profundamente do que gostaria de admitir. Talvez como meio de aliviar a dor de não poder ser mãe, Thereza se entrega à diversos amantes e a um relacionamento aberto com o marido que, enquanto isso, também mantém seu próprios casos e amantes.

Coisa Mais Linda

Coisa Mais Linda usa o Rio de Janeiro do final da década de 1950 como pano de fundo para tratar de temas universais e atuais às mulheres como independência financeira, relacionamentos abusivos, maternidade, machismo e sexismo no ambiente de trabalho, violência doméstica e aborto. A série é mais uma a beber da fonte do feminismo liberal, apropriando-se de um movimento social para se vender como inclusiva e imprescindível. Coisa Mais Linda é, sim, um material de qualidade e que aborda temas relevantes e importantes, mas o faz de maneira muito mecânica e engessada — os diálogos entre as personagens, por exemplo, são sempre muito didáticos e expositivos, e a entrega nem sempre corresponde às expectativas colocadas sobre os temas debatidos. Outro incômodo causado pela série é que algumas personagens parecem ter sido apenas transportadas de uma época à outra e seus discursos parecem desconexos da realidade carioca do final da década de 1950. Não há o menor problema em tratar de temas atuais em uma série de época se isso é feito de maneira crível, o que não acontece em diversos momentos da trama.

Ainda assim, Coisa Mais Linda se esforça para cativar seu público. Tecnicamente, a série é impecável e mostra um Rio de Janeiro mágico filmado permanentemente com o filtro Early Bird do Instagram. É um produto para exportação, sem a menor dúvida, e as cenas são feitas milimetricamente para encantar — os figurinos e penteados de 1950 estão todos lá, os automóveis e cenários belíssimos e, claro, a Bossa Nova. Criada em parceria pela norte-americana Heather Roth e pelo brasileiro Giuliano Cedroni, que atuam como produtores e roteiristas da trama, não é de se espantar que Coisa Mais Linda retrate, ao final da primeira temporada, um Brasil para gringo ver. A diversidade de nosso povo está escondida nessa série da mesma maneira que está escondida nas novelas das nove. Adélia parece presente no grupo de amigas apenas para cumprir cota e o morro que Malu visita com seu interesse amoroso, Chico Carvalho (Leandro Lima), para ouvir Bossa Nova, só serve para ela até o cair da noite — depois disso fica perigoso demais para a menina branca suportar. Coisa Mais Linda tem méritos quando trata da amizade entre Malu, Adélia, Lígia e Thereza e a rede de suporte que elas criam, reunidas pelas circunstâncias da vida, e acerta também, por exemplo, ao abordar a dor de Lígia ao ser humilhada e agredida pelo marido e como a personagem decide, não sem dificuldades e percalços, por um aborto e pelo sonho de ter uma carreira como cantora.

Não tiro os méritos da série; ela consegue ser envolvente e tem personagens com histórias interessantes interpretadas por atrizes dedicadas, mas Coisa Mais Linda não é diferente de outras séries que surfam na onda feminista e trazem histórias pautadas nesse tema, universalizando as dores das mulheres de maneira que possam ser assimiladas por elas em diferentes partes do mundo. Coisa Mais Linda peca por ter um texto fraco e simples, por ter uma protagonista que soa forçada em diversos momentos e que trata sua personagem não-branca mais importante apenas como um token — personagem, inclusive, com uma história batida e repetida à exaustão visto que Adélia engravidou de Nelson enquanto trabalhava na casa dos pais dele, e a diferença aqui, pelo menos até certo ponto, é que havia amor entre os dois, que foram separados pela mãe do rapaz. Coisa Mais Linda tem boas personagens femininas, mulheres que estão em busca da liberdade de serem quem são em um mundo pautado pelo machismo e a misoginia, que sabem que a sororidade é o caminho para essa liberdade, mas isso não é o suficiente se a ideia é a série se destacar entre várias que apostam no mesmo nicho para alcançar o sucesso. Com uma segunda temporada já confirmada pela Netflix, fica a expectativa para saber se Coisa Mais Linda se tornará relevante ou apenas mais uma dentre várias.

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