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Anne With an E: o que transforma o mundo

“O mundo não é um lugar incrível?”, pergunta Anne Shirley-Cuthbert (Amybeth McNulty) na frase que abre o trailer da segunda temporada de Anne With an E, adaptação da Netflix para o clássico da literatura infantojuvenil Anne de Green Gables. Em seu contexto dentro da série, a frase de Anne é dita apenas de passagem, uma entre as muitas coisas que fala enquanto observa grãos de areia em um microscópio. Mas foi a escolha perfeita para aquele que foi nosso primeiro vislumbre do segundo ano de Anne, resumindo perfeitamente o olhar que sua protagonista cheia de vida lança sobre Green Gables, Avonlea e todo o mundo que existe para além de lá.

Atenção: este texto contém spoilers!

O primeiro ano da série nos apresentou à personalidade forte, espevitada e alegre de Anne ao mesmo tempo em que revelou com sensibilidade e cuidado seus traumas e inseguranças, fruto de uma vida de abandono e violência, e à sensação de não pertencimento que ela constantemente sentia em Avonlea. Aos poucos, no entanto, essa sensação foi se dissipando conforme ela percebia quanto amor e carinho podia existir lá. Ao longo da primeira temporada, Anne e os irmãos Marilla (Geraldine James) e Matthew (R. H. Thomson) se transformam em uma família pouco convencional, mas nem por isso menos significativa — e nessa família podemos facilmente incluir Jerry (Aymeric Jett Montaz), o ajudante de Matthew na fazenda. Anne também descobre o quão poderosas podem ser as amizades verdadeiras, especialmente ao lado da incansável Diana (Dalila Bella) e, logo depois, de Ruby (Kyla Matthews). Não é um caminho sem percalços, é claro: Anne ainda é uma forasteira, é órfã, é ruiva, já viu e ouviu coisas que uma criança não deveria ter ouvido. Mas todas essas experiências também fazem dela exatamente quem ela é: única ali. Leva tempo, mas, com Anne, Avonlea descobre o quanto o novo e o diferente podem ser enriquecedores, e no segundo ano da série essa ideia será o tema central.

Ainda que centralize em primeiro lugar as experiências de uma menina transitando entre a infância e a adolescência, desde a primeira temporada ficou claro que a série busca abranger um público maior do que esse. Tanto o roteiro quanto a atuação impecável de Amybeth McNulty dão a Anne muitas camadas, permitem que ela vivencie uma porção de emoções conflitantes e explorem a mistura de ingenuidade e maturidade que coabitam a mente de Anne. Mas não é só às jovens meninas que a série dedica seu olhar, ainda que a experiência de ser uma garota no mundo seja um tema central. Na primeira temporada, os roteiros também se ocupam de dar muitas nuances às experiências principalmente de Marilla, Matthew e Gilbert (Lucas Jade Zumann), também obrigado pelas circunstâncias a assumir mais responsabilidades e olhar para a vida de um jeito muito mais sério do que um garoto deveria precisar. E é justamente em meio ao mergulho de roteiro no luto de Gilbert que passamos a perceber a história de Marilla com mais cores, quando ficamos sabendo de seu romance adolescente abortado e dos caminhos que foram fechados para ela e para Matthew em meio ao luto particular dos Cuthbert com a perda do irmão mais velho. De maneira semelhante, é quando Matthew percebe que Anne está crescendo e vai atrás de seu tão sonhado vestido de mangas bufantes que somos apresentados ao seu próprio drama. As histórias dos Cuthbert são tratadas com muita sensibilidade, e logo fica evidente que suas jornadas emocionais são tão centrais em Anne With an E quanto as aventuras e desventuras da menina que dá nome à série.

anne with an e

Um dos temas explorados na segunda temporada é justamente algo que desde o começo chamara atenção de Anne: o fato de os Cuthbert nunca terem se casado. Porque Anne e os colegas de escola estão crescendo, o romance começa a parecer mais uma possibilidade concreta do que apenas uma ideia que atravessa o imaginário coletivo. Como a leitora voraz que é, Anne tem muitas ideias sobre amor, e ela se pergunta como viver uma vida plena sem ele. Um dos momentos mais bonitos e sensíveis para ela é entender, junto aos Cuthbert, quantas formas diferentes o amor pode ter. É uma ideia que também é explorada com tia Josephine (Deborah Grover), que na temporada anterior surge como uma mulher idosa de luto pela perda de sua companheira. Anne não entende imediatamente o que Josephine quer dizer quando explica que fora casada à sua própria maneira, mas quando entende, reage de forma muito natural, escolhendo celebrar o amor. Embora possa falar demais em muitas ocasiões e seja excessivamente curiosa (acabando por falar a coisa errada com bastante frequência), Anne nunca faz isso por mal e, talvez por suas experiências próprias com o bullying, ela sempre parece mais disposta e pronta do que qualquer um para abraçar as diferenças que vê ao seu redor.

O segundo ano de Anne With an E é em primeiro lugar uma celebração do que nos torna únicos e daqueles que têm coragem de questionar os padrões socialmente impostos para mudar e transformar o mundo. O importante não é o que mundo tem a oferecer a você, diz Anne, mas o que você traz para o mundo. Especialmente neste segundo ano, Avonlea está cheia de pessoas que parecem não se encaixar de uma maneira ou outra. Mesmo com um grupo de mães que se autodenominam de Mães Progressistas, que celebram as lutas das sufragistas, trabalham para que educação e oportunidades sejam oferecidas às garotas, Anne leva tempo para ser completamente aceita por elas na primeira temporada. Agora, vemos uma comunidade que nem sempre sabe ou quer receber Sebastian (Dalmar Abuzeid), que é negro e estrangeiro; um grupo de alunos que deliberadamente exclui e por vezes rejeita Cole (Cory Gruter-Andrew), com comportamentos que desafiam as ideias vigentes sobre o que um garoto deve ser e como deve se portar; e vemos Marilla, que por vezes é desconsiderada até pela melhor amiga por ser uma “solteirona”.

O clímax dessa temática é a chegada de uma nova professora à escola. Vestindo calças, rejeitando o espartilho, andando de motocicleta e prezando por um ensino que não dependa tanto de alunos apaticamente repetindo leituras à exaustão, a Srta. Stacy (Joanna Doulgas) é rapidamente questionada pela comunidade — incluindo aí as Mães Progressistas. A caracterização dessas mães é, aliás, um dos maiores acertos da série. As intenções delas são nobres e a educação das meninas e mulheres é algo em que elas genuinamente acreditam; o sorriso contido de uma dessas mães ao ver a filha abandonar o altar diante da cidade inteira para priorizar seus estudos é um momento genuinamente bonito e especial da série. Mas o que é feito com essas mães é um questionamento sobre até onde estamos dispostos a levar nosso ativismo, a quem ele inclui, se estamos dispostos a lutar por aquilo que não nos afeta diretamente ou abrir espaço para aqueles que não compartilham nossas vivências — uma questão que continua viva e importante hoje.

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Mas Anne With an E enfatiza que a oportunidade de ouvir, aprender, mudar e crescer sempre existe. É Anne quem está passando pelo processo de amadurecimento típico de um coming of age, mas o roteiro insiste sempre que o aprendizado é o trabalho de uma vida toda e que, se não faltarem disposição e empatia, todos podemos nos tornar pessoas melhores. É natural que exista algum desconforto quando somos confrontados com o que desconhecemos — e ele aparece na série —, mas encará-lo e aceitá-lo como parte do processo é nossa obrigação. A reafirmação desses temas é um dos pontos fortes da temporada, que termina muito melhor do que começa, principalmente ao abrir espaço para que as perspectivas de mais personagens sejam trabalhadas.

A trama que coloca Avonlea em movimento nos primeiros momentos da temporada, com a chegada a Green Gables de uma dupla de vigaristas fingindo serem cientistas para tirar dinheiro do povo simples e interiorano, acabou parecendo bastante sem propósito para além de aventurar a vida de Anne e, talvez, mostrar a ingenuidade dos residentes de Avonlea — ao menos diante de um bem-apessoado jovem branco. O aspecto mais interessante dessa salada toda foi bastante inesperado, com o processo de se deixar seduzir e da subsequente vergonha e culpa que Marilla sente ao se deixar levar pelos modos calculados de um dos jovens que vem viver em sua propriedade, simplesmente porque isso traz ainda mais nuances para a personagem extraordinária que ela é. O que também não funcionou muito bem foram as aventuras de Gilbert trabalhando num navio enquanto tenta entender qual é seu propósito e vocação. As interações de Gilbert e Sebastian são momentos muito preciosos e é interessante vê-lo conhecendo de perto os efeitos de um processo de colonização em pleno curso, mas as quebras constantes entre Avonlea e o navio vêm em detrimento do bom ritmo que a série mantém no resto do tempo.

Mas são apenas alguns soluços em uma temporada que funciona bem e realiza sua principal proposta com sucesso, e é compreensível que o navio exista como o impulso que traz Sebastian para dentro da pequena Avonlea, ou então como o meio que permite que Gilbert explore melhor suas possibilidades antes de entender qual é sua vocação. O que, consequentemente, leva Anne a refletir bastante sobre seu próprio futuro, já que os dois vivem em constante competição. O processo de crescer, para ela, tem duas facetas: por um lado, entender qual é a vocação que deve buscar realizar; por outro, a ideia (ainda distante) do casamento. As inseguranças de Anne a respeito de sua aparência começam a transparecer com mais força conforme isso passa a parecer mais importante e concreto para ela, e a série destaca o quão cruéis são os padrões de beleza e com que força eles são impostos sobre as meninas. Mas a discussão não se limita a Anne; garotas como Josie (Miranda McKeon), que atormentam a vida de Anne, não são menos pressionadas por eles, afirma o texto da série, sempre com o cuidado de oferecer uma visão mais ampla daquilo que discute.

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Nas discussões que propõe a respeito de gênero, sexualidade, racismo e conservadorismo, Anne With an E se utiliza de uma sensibilidade que remete mais aos nossos tempos do que aos costumes e ideias do século XIX, e entendo o que Moira Walley-Beckett se propõe a fazer. Anne de Green Gables já foi adaptado bem mais de uma dezena de vezes para o cinema, o teatro e a televisão. Qual é o sentido de repetir a mesma coisa dezenas de vezes? As escolhas de Walley-Beckett permitem que Anne Shirley continue a falar conosco hoje. Apesar de trazer personagens complexas, as mensagens de Anne With an E são simples — o que funciona para crianças, mas funciona para adultos também. Afinal, estamos todos em constante processo de aprendizado, e é ele que transforma o mundo para melhor. Anne, privada por tanto tempo da liberdade de fazer escolhas, de ser uma criança com preocupações de criança, costuma ter um olhar muito gentil sobre o mundo. Ele não é sempre um lugar incrível, mas pode ser, se estivermos dispostos. Anne está, e o olhar que ela traz para o mundo, sua vontade de abraçar cada pedaço dele, é precioso demais.


** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine.

2 comentários

  1. Nota-se, claramente, que você, assim como eu, amou a série, desde sua primeira temporada.
    ” O mundo não é um lugar formidável?”… Com esta frase, iniciando o trailer da 2 temporada, já amei a nova temporada por vir.
    Foi, cara Kim, impossível não chorar em todos os episódios.
    Anne com certeza está bem a frente do seu tempo.
    Se já gostei da 1 temporada essa 2 temporada foi simplesmente maravilhosa.

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