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Alanis, Fiona, Meredith e Courtney: as mulheres raivosas dos anos 90 nos ensinaram a sentir

Em 2021, a Showtime exibiu a primeira temporada de Yellowjackets, série sobre um time de futebol feminino perdido na selva canadense após um acidente aéreo. Devido à ideia de reorganização social e à selvageria, a série foi imediatamente comparada a O Senhor das Moscas, romance de William Golding, também já adaptado para o audiovisual. A necessidade de encontrar um referencial masculino, por si só, fala alto sobre como certas características são percebidas dentro dos limites do patriarcado mesmo em análises bem intencionadas. E a primeiras dessas características é a raiva.

Na série, as mulheres retratadas estão constantemente à beira de uma explosão. Mas elas precisam ser gratas. Elas sobreviveram. E, depois, conseguiram vencer o circo midiático. Suas vidas são a maior prova de que elas não deveriam queimar por dentro. Ou matar coelhos. Ou assustar crianças. Ou maltratar idosos. Porém, elas só querem mandar tudo para o inferno e sentir o que precisam sentir uma vez na vida. Seja pela trilha sonora ou pela forma como aprendi a processar meus sentimentos, Yellowjackets me levou diretamente para um “estilo musical” comum na década de 1990: as mulheres raivosas.

raiva feminina

Elas podem ser descritas como cantoras/compositoras que, munidas dos seus instrumentos, vozes e queixas sobre o mundo, ensinaram meninas da minha geração (e de outras que vieram depois) que estava tudo bem em não ser uma boa garota. Usando a sua raiva como ataque e defesa, elas conseguiram conquistar o espaço que sempre foi negado às mulheres na indústria — especialmente àquelas que não estavam a serviço do desejo masculino. E, indo além, elas nos ensinaram a sentir.

Da sinceridade cortante de Meredith Brooks expondo sua ambiguidade à tristeza latente de Fiona Apple tentando encontrar o seu lugar no mundo, essas mulheres não tinham medo da vulnerabilidade — essa sim, uma característica feminina. Entretanto, usavam a sua nudez emocional para falar sobre aquilo que as enfurecia. Aquilo que fazia com que elas acordassem e simplesmente odiassem o mundo.

Talvez Alanis Morissette seja o exemplo mais lembrado de mulher raivosa. Seu Jagged Little Pill mostrou que havia milhões de outras como ela, cansadas de serem escanteadas, amadas somente sob certas condições e vistas como objetos decorativos. Com as suas camisetas largas e cabelos excessivamente longos, a canadense esbravejou o que estava preso no peito de uma geração que cresceu com outros ídolos e se inspirando em outros moldes inatingíveis e pensados para incomodar muito mais do que acomodar. Dizer que Alanis, Fiona ou qualquer outra mulher desse contexto quebrou padrões seria um exagero. Mas elas arranharam alguma coisa quando mostraram para as meninas da época que existiam possibilidades. E uma vez que você percebe que aquele “coitadinha de mim” em Just a Girl”, do No Doubt, na verdade, é um ataque, alguma coisa muda.

É nesse ponto que você começa a acreditar que Courtney Love realmente ensinou muito ao Kurt Cobain sobre escrita, ainda que ela seja acusada até hoje de explorar o talento do companheiro para alavancar a própria carreira. Porque, mesmo que ele tenha reafirmado em várias oportunidades a importância de Courtney no refinamento das suas habilidades de compositor, ninguém queria ouvir. O gênio era ele. A ela restava o papel de desequilibrada, de grande culpada por uma doença que já existia há anos.

raiva feminina

É ultrajante pensar que alguém atribui faixas como “Asking for It” e “Softer, Softest” a um homem. Como se ele, por mais sensível que fosse, pudesse compreender o sentimento de impotência evocado pelas figuras masculinas retratadas em ambas as músicas. É revoltante que uma mulher talentosa precise escrever uma letra debochando das acusações midiáticas sobre o seu corpo e outros aspectos da sua intimidade.

Por isso tudo, resta concluir que a raiva é extremamente feminina. Quem ainda não percebeu isso pode até estar ouvindo o que as mulher estão tentando comunicar, mas não de forma sincera e qualificada. É uma escuta voltada para a contestação. De alguém que espera a pausa para retrucar. E vocês sabem o que dizem por aí: nunca devemos considerar nada que venha antes do “mas”, porque ele separa a honestidade do fingimento.

Seja na música ou em Yellowjackets, as mulheres deveriam arder. A sua fúria possui um poder transformador. À medida que elas bradam, os seus entornos se movimentam rumo a um cenário no qual nenhuma de nós precisará ser uma boa garota para ter o mínimo de validação e respeito. A raiva feminina é revolucionária e ninguém demonstrou isso melhor do que as mulheres dos anos 90, tanto pelos caminhos abertos quanto pelo legado, lembrado e celebrado até hoje.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!