Categorias: LITERATURA

No Seu Pescoço, no meu pescoço, nos nossos pescoços

No Seu Pescoço, primeiro livro de contos da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie foi, coincidentemente, o primeiro livro da autora que li. Não por falta de vontade, mas por falta de energia para investir na área literária em geral, e — vamos admitir — por aquele medo nosso de cada dia de sair da zona de conforto. Eu tinha medo do desconforto, tinha medo de não me acostumar imediatamente a um estilo literário que eu nem sabia qual seria. Era um ponto importante demais para arriscar sem tremer.

O livro reúne contos de diversas temáticas, diversos pontos de vista, com tramas que giram em torno de personagens de diversas classes sociais e de ambos os sexos. A linha central comum que liga todos eles é a nacionalidade. Todas as histórias centram-se em pessoas nigerianas — sejam elas residentes da Nigéria, sejam emigrantes — mais precisamente da etnia igbo. O livro claramente dialoga de maneira muito forte com as origens da autora, filha de professor universitário e criada no campus da universidade de Nsukka, cenário de alguns dos contos contidos no livro.

O que considero mais interessante, e que se relaciona diretamente com o fato de se tratar de uma coletânea de contos, é justamente a diversidade das histórias retratadas. Isso me remeteu imediatamente à palestra dada por Chimamanda no evento TED de 2009, no qual ela fala do perigo da história única. O perigo para o qual a escritora alerta é o risco de comprarmos a narrativa midiática que transmite sempre a mesma imagem de pobreza extrema e violência relacionada “à África” (como se o continente todo fosse um único país com uma única cultura e um único destino inescapável). Essa narrativa única é incansavelmente transmitida e re-transmitida, ao ponto de ser a única história que o cidadão médio de outros países consegue associar a um continente tão grande, diverso e culturalmente rico quanto a África.

Ao concentrar todas as suas histórias no seu país de origem, e na sua etnia de origem, a escritora a um só tempo reforça a identidade nacional, que não se confunde com as identidades e realidades nacionais dos demais países do mesmo continente, como rejeita em algum nível todo o processo colonizatório europeu que foi imposto sobre o continente, distribuindo territórios entre si sem nenhum respeito pelas culturas e comunidades já existentes naqueles locais. Esse caráter anti e descolonial perpassa todo o livro, mas é observado de forma mais direta no conto “A Historiadora Obstinada”, que conclui a obra de forma magistral ao contar a história da evolução de gerações de uma família que perpassa simbolicamente desde a época pré-colonial, colonial e descolonial, seguindo a tendência de afirmação cultural e retorno às origens que pode ser observada na atualidade. No conto, cada uma das fases é representada por uma geração e há uma reconexão entre neta e avó em sua ligação com as origens culturais, enquanto o filho/pai representa o papel do colonizado que internalizou e abraçou as convicções e doutrinas colonizadoras.

No Seu Pescoço mostra, também, o lado pobre e violento da Nigéria. Mostra o lado da precarização dos serviços básicos, da brutalidade policial, da corrupção, da criminalidade, mas mostra isso tudo como apenas parte de um todo muito maior e mais diverso, e possivelmente como sintoma e reflexo da colonização e dos valores ocidentais impostos sobre os povos originários e atuais. Um conto que mostra isso sem rodeios é o “Jumping Monkey Hill” (possivelmente meu favorito de todo o livro), que conta a história de um workshop para jovens escritores africanos organizado por uma instituição inglesa em um resort na África do Sul. Jovens escritores de diversos países se reúnem e são instruídos a escrever um conto que será, em um segundo momento, discutido e analisado pelo grupo. O inglês que coordena o evento sistematicamente deslegitima e desmerece todas as histórias que não correspondem ao que ele considera a “verdadeira essência africana” — aquela velha história única de violência e pobreza.

Chimamanda Ngozi Adichie

No decorrer dos contos também somos confrontados com as diferentes perspectivas de nigerianos residentes na Nigéria, imigrantes nigerianos nos Estados Unidos e pessoas de dupla nacionalidade, todos de diversas classes econômicas, e como diversas perspectivas geradas pelo entrecruzamento dessas diferenças de posicionamento social afetam e definem as experiências individuais. Enquanto, com os residentes da Nigéria, somos levados um pouco mais próximo da realidade desse país, as perspectivas dos emigrantes trazem até nós as diversas formas pelas quais essas pessoas experienciam alheamento, solidão, vulnerabilidade, preconceito e xenofobia, o que pode acarretar tanto a recusa quanto o reforço da identificação com as raízes, questão que fica especialmente evidente no conto “Os Casamenteiros”.

Além de todas essas questões, No Seu Pescoço também traz abordagens variadas sobre a questão do colorismo e da misoginia, e como essas questões assumem facetas distintas no contexto de cada país e classe social.

Ao longo do livro, é ainda possível observar implicitamente como atua a construção do homem negro como violento e criminoso quando importada pelos próprios países africanos, pelo processo de materialização de um discurso histórico e midiático exportado especialmente dos países centrais, principalmente os Estados Unidos, para países periféricos. A linguagem, seja ela verbal ou não, molda a realidade e é um instrumento fundamental dos processos de dominação. A criação da imagem do homem negro criminoso nos EUA é muito bem explicada no documentário A 13ª Emenda, da diretora Ava DuVernay, e sua internacionalização segue o fluxo natural imposto pela dominação cultural extrema exercida por esse país ao resto do mundo.

Uma das grandes belezas de ler obras que fogem do eixo dos países centrais do capitalismo é a possibilidade da identificação em algum nível. Ainda que Brasil e Nigéria sejam países diferentes, com cultura e composição social diferentes e que passaram por processos colonizatórios diferentes, é possível encontrar pontos em comum, como por exemplo nos aspectos relativos à precarização de serviços básicos, sucateamento das universidades e brutalidade policial, todos aspectos retratados nos contos que compõem No Seu Pescoço. Dessa forma, a obra nos permite não só conhecer um pouco de uma cultura que nos é tão opaca em condições normais, como conhecer um pouco melhor a nós mesmos por meio do espelhamento no outro, o que é um processo importantíssimo para a conscientização a respeito dos nossos próprios problemas sociais.

No Seu Pescoço é um livro que vale muito mais do que o tempo investido na leitura, não apenas por conta do seu valor enquanto obra literária da mais alta qualidade, quanto pela importância social e política que ele possui. Não poderia ter inaugurado melhor minha relação com essa autora que merece profundamente cada milímetro da fama que vem alcançando no mundo todo, e garanto que foi só o primeiro contato de muitos que estão por vir.

No Seu Pescoço

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


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