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Os Defensores: um interlúdio

Em 2013, quando a parceria entre Marvel e Netflix foi finalmente oficializada, o maior questionamento em torno da união não dizia tanto sobre as gigantes do entretimento quanto sobre o futuro do Universo Cinematográfico Marvel e para onde ele apontava. Séries de televisão baseadas em histórias em quadrinhos, via de regra, não eram uma novidade: com o sucesso dos super-heróis no cinema e o novo momento que vivia a televisão norte-americana, parecia apenas uma questão de tempo até que eles obtivessem seu espaço também na tela pequena — o que, de fato, aconteceu. De heróis com poderes especiais a vigilantes e anti-heróis, passando por alienígenas, mutantes e viajantes do tempo, todos alcançaram destaque no entretenimento hollywoodiano, em narrativas tão distintas que o único denominador comum entre elas era o fato de serem inspiradas em universos semelhantes.

Esse pico de produções televisivas alimentou o interesse dos grandes estúdios, que enxergaram nessas narrativas uma oportunidade de fazer dinheiro. A própria Marvel já havia feito seu debute na televisão com Agents of S.H.I.E.L.D, em parceria com a ABC, cujo acordo também rendeu Agent Carter, cancelada precocemente ao fim da segunda temporada. A maior autonomia e liberdade criativa dos serviços de streaming, no entanto, abria um leque de possibilidades ainda inexploradas, que prometiam transformar não apenas a forma de narrar essas histórias, mas o modo como viríamos a consumi-las. A menor dependência de números tradicionais de audiência, restrições etárias (que não restringem o público da mesma maneira como acontece na televisão ou no cinema tradicional), grade horária e a maior autonomia no consumo, tornavam mais simples a tarefa de produzir histórias mais ousadas e maduras tanto em conteúdo quanto em estética, que se distanciassem daquilo que já vinha sendo feito até então.

É fácil entender por que, junto com os canais a cabo, os serviços de streaming são os maiores responsáveis por aquilo que hoje conhecemos como prestige TV (ou a TV de prestígio, em tradução para o português). Demolidor, primeiro fruto da parceria entre Marvel e Netflix, revolucionou o gênero ao apresentar um homem de bem, católico, cego, advogado em defesa dos fracos e oprimidos, mas cuja bússola moral não possuía um norte bem definido, inserido em um contexto deprimente e melancólico, e cuja estética faz referência ao estilo neo-noir. Diferente de sua adaptação cinematográfica, fiasco de público e crítica, a série ampliou as definições não apenas do que significa ser herói em um contexto não necessariamente assombrado por criaturas deslocadas da realidade, ameaças de outros planetas ou monstros de galáxias tão, tão distantes, mas também o modo como essas histórias eram concebidas, desde seus personagens até sua construção estética e ferramentas de storytelling.

A fórmula empregada na série não é nova nem na televisão, tampouco no cinema — The Sopranos, Breaking Bad e Mad Men já trabalhavam muito bem os famigerados homens difíceis enquanto, na tela grande, Christopher Nolan apresentava uma versão do Homem Morcego mais próxima do herói clássico das tragédias gregas, em um cenário escuro, deprimente e realista, que rendeu ao filme indicações em diversas categorias do Oscar, aos prêmios do Sindicato dos Roteiristas da América, do Sindicato dos Produtores da América e do Sindicato dos Diretores da América, do Critics Choice Movie Awards, do Screen Actors Guild Award e do Globo de Ouro, além de garantir uma vaga na lista dos dez melhores filmes do ano do American Film Institute, em 2009. Demolidor se aproveita desse padrão como forma de adaptá-lo ao seu contexto específico, tornando-se a prova de que, mesmo histórias de super-heróis são capazes de ocupar um espaço no seleto grupo das produções boas e sérias.

Os Defensores

De forma bastante similar, Jessica Jones e Luke Cage se apropriam de questões sociais fortes o suficiente para serem tratadas por aqueles que estão, de algum modo, acima de nós. São eles que salvam o dia e são eles que mantêm em ordem o mundo como conhecemos, mas o fazem porque esses também são problemas que, de maneira direta ou indireta, os atingem. Mesmo em Punho de Ferro, onde essa abordagem não fica tão evidente, existem questões que transitam de forma consciente em torno da narrativa, como o capitalismo, o american way of life, a influência política exercida por grandes corporações, o vício em drogas e relações familiares disfuncionais. São ameaças que dizem respeito a adversidades contemporâneas e revelam que mesmo super-heróis estão sujeitos às suas consequências mais severas. Ambas as séries não os impõe uma caricatura do herói unidimensional, tampouco os confina a um único papel, reconhecendo-os, antes, como seres humanos, e só depois como heróis; não se trata de ser bom ou ruim, mas tão somente ser — quem quer que seja.

O que os coloca frente a frente é a própria cidade de Nova York, cenário onde a pancadaria, o crime, a violência de gênero e o capitalismo pulsam como as luzes que iluminam o centro da cidade. A maior parte dos episódios desenvolve-se em diferentes bairros da cidade (Hell’s Kitchen, Harlem e a própria Manhattan), que são os lugares onde os personagens estão inseridos, em uma estrutura que nos permite visualizar as relações construídas com o ambiente e o senso de responsabilidade que surge a partir de então. O fato de lutarem — às vezes, literalmente — contra reis de muitos crimes não os distancia imediatamente de outras séries do gênero, de modo que é a estrutura narrativa dessas histórias e as relações que desenvolvem com outros personagens, com o ambiente e uns com os outros, mais importantes do que o fato de estarem em guerra contra um inimigo comum.

Atenção: este texto contém spoilers!

No caminho inverso, a trama de Os Defensores estrutura-se sobre o confronto dos quatro protagonistas contra um inimigo coletivo — o Tentáculo (The Hand, no original), que vai fazer com que uma conspiração tome forma na cidade, encabeçada pela figura de Alexandra Reid (Sigourney Weaver), a quem o único objetivo é continuar… viva. Eventualmente, a série revela que Alexandra não é uma pessoa comum, porém má, mas uma das cabeças do Tentáculo; uma mulher tão antiga quanto a organização milenar que representa. Douglas Petrie e Marco Ramirez, criadores da série, alteram momentaneamente o foco de “quem” e “por quê”, para “como” e “o quê”, que tornam a ação o ponto central do enredo. Faz sentido: a essa altura, já não há a necessidade de estabelecer quem são os personagens — exceto por aqueles que aparecem pela primeira vez, como a própria Alexandra —, menos ainda de onde vieram ou para onde vão, mas como todas essas pessoas foram parar justamente no mesmo lugar. Os Defensores faz uso moderado de flashbacks, preferindo apontar para o futuro, mesmo que isso não necessariamente signifique ignorar o passado. “The H Word”, primeiro episódio da temporada, recupera em alguma medida as pontas deixadas pelas jornadas individuais de cada um, mas o faz de modo a explicar como todas convergem para o mesmo lugar.

Jessica (Krysten Ritter), por exemplo, é procurada por uma mãe e uma filha em busca do marido e pai, respectivamente, mas só aceita o trabalho quando recebe uma ligação misteriosa pedindo que ela fique longe do sujeito. Paralelamente, Luke (Mike Colter) passa a investigar o caso de adolescentes e jovens adultos do Harlem que morreram em misteriosos acidentes após receberem uma proposta igualmente misteriosa de trabalho, cujo dinheiro todos viam, mas ninguém sabia de onde vinha, e é em sua busca que conhece Danny Rand (Finn Jones), que, por sua vez, tenta, sem muito sucesso, entender o que está acontecendo.

O que eles descobrem não poderia ser mais alarmante: o galpão onde se encontram, outrora um estabelecimento especializado em armas orientais, tornara-se palco de uma chacina, cujas vítimas têm suas identidades e corpos ocultados por jovens do Harlem, que precisam de dinheiro o suficiente para não fazer perguntas ou questionar a natureza do trabalho que paga suas contas. Não é uma surpresa que mesmo a possibilidade de serem perseguidos e mortos pelo Tentáculo não fosse suficiente para convencê-los a escolher outro caminho; simplesmente não há outro caminho. Luke compreende a situação de maneira profunda — compreensão esta que parte, principalmente, de sua vivência como homem negro e pobre em uma sociedade que marginaliza sistematicamente pessoas como ele. Danny não. Quando confrontado por defender aqueles garotos, Luke evidencia os privilégios de um homem branco, rico e heterossexual em comparação à realidade de jovens negros e pobres — um dos poucos momentos verdadeiramente memoráveis da temporada.

“A diferença é que eu vivo no mesmo bairro que eles. A diferença é que não sou um branco bilionário que faz justiça com as próprias mãos e joga um garoto negro contra a parede por uma vingança pessoal. (…) Conheço privilegiados quando os vejo. Pode achar que conquistou sua força, mas teve poder desde que nasceu. Antes dos dragões. Antes do chi. Você pode mudar o mundo sem machucar ninguém. (…) Eu pensaria duas vezes antes de usar essa coisa em gente tentando alimentar a família.”

Seria mais fácil que um único encontro tornasse a união entre os heróis possível, mas Ramires e Petrie possuem a consciência de que seus personagens não são pessoas fáceis e, pelo contrário, dificilmente estariam dispostos a trabalhar em equipe. Danny e Luke discordam um do outro, da mesma forma que Jessica vai repelir Matt (Charlie Cox) quando este cruza seu caminho, porque prefere trabalhar sozinha, e cabe ao roteiro uni-los, portanto. A união é o que possibilita a construção de momentos chave da trama, como quando uma conversa com Luke é responsável por abrir os olhos de Danny para o que o status lhe provém e, mais tarde, o coloca no enorme prédio da Midland Circle Financial, empresa utilizada pelo Tentáculo como fachada. Por motivos diversos, é exatamente no mesmo lugar que Matt, Jessica, e também Luke vão parar, o que finalmente coloca os quatro personagens lado a lado. É ali, também, que eles têm seu primeiro contato com Elektra (Elodie Yung), exceto por Danny e Jessica, que já haviam cruzado com a personagem anteriormente, que depois de falecer na segunda temporada de Demolidor, volta à vida por intermédio de Alexandra.

Mergulhando em suas memórias, descobrimos como se deu o processo que ressuscitou Elektra, agora conhecida como Céu Negro, e que a transformou em uma arma humana que serve tanto à própria Alexandra quanto ao Tentáculo. A relação que nasce entre as duas, no entanto, torna-se mais profunda à medida que a história avança, ultrapassando a linha entre servo e mestre, mentor e aprendiz, para comparar-se, em semelhança, a uma relação entre mãe e filha. Em “Take Shelter”, Alexandra revela que tivera uma filha, mas que a menina eventualmente viera a falecer. “Ela era boa demais para esse mundo”, confidencia, enquanto Elektra a observa em silêncio, sem saber que não muito tempo depois viria ela mesma a ocupar esse lugar. Se existe algo de humano em Alexandra, afirma o texto da série, esse algo diz respeito à Elektra, a quem cria, ensina e defende com unhas e dentes, e acredita de maneira quase cega. É essa humanidade que, mais tarde, lhe custa a própria vida: sem qualquer traço que indique o contrário, Elektra ataca Alexandra pelas costas durante uma reunião com outras cabeças do Tentáculo — menos por uma influência externa, mais por desejar ver-se livre do domínio de terceiros. “Ashes, Ashes” sugere que a morte de Alexandra é o que finalmente a permite conquistar sua liberdade e ter autonomia, o que de fato acontece. A forma como essa liberdade é alcançada, no entanto, evoca características que dificilmente poderiam ser atribuídas a ela, fosse sua versão do passado ou aquela do presente, após a ressurreição.

Os Defensores

Desnecessário dizer que, há muito, Elektra não é a mesma mulher que conhecemos em Demolidor. A experiência de vida e morte, em especial, modifica sua trajetória de maneira profunda e irrevogável, mas existe algo que continua a mantê-la conectada ao seu eu mais antigo. Muitos de seus melhores momentos continuam a ser aqueles em que ela olha para o passado na tentativa de reviver sentimentos e situações vividas principalmente ao lado de Matt, e são essas lembranças que também lhe cobram mais caro. Durante uma visita clandestina ao apartamento do ex, ela vasculha a memória na tentativa de compreender e reconhecer a si mesma como mulher, humana. A necessidade de reconectar-se a uma parte de si mesma é o que a leva de volta ao apartamento, livrando-se momentaneamente de todos aqueles que lhe diziam o que fazer, quem ser. Talvez por isso seja tão irônico que, ao livrar-se das amarras de maneira definitiva, ela não inicie uma jornada de busca pela paz que tanto parece almejar, ou que tampouco vá até Matt. Ao contrário, Elektra traça o mesmo caminho desenhado por Alexandra, e é em sua busca pela vida eterna que suas motivações tornam-se vazias e injustificáveis dentro de um contexto mais amplo.

Os Defensores não se debruça sobre suas escolhas individuais, preferindo tratá-la como uma antagonista unidimensional, a quem reserva-se tão somente a tarefa de ser habilidosa. Não há qualquer tipo de redenção em sua jornada ou uma razão que justifique seus atos, que se tornam cada vez mais confusos à medida que a história avança. Diferente de personagens a quem a ambiguidade serve como um traço da própria complexidade, Elektra limita-se ao papel de uma vilã vazia, em busca de um objetivo igualmente vazio, cujo único diferencial é ser também uma força sobre-humana criada para matar.

Consideravelmente mais interessantes são as novas revelações sobre o Tentáculo e a misteriosa origem de seus fundadores: antes habitantes poderosos de K’un-Lun, os líderes da organização foram expulsos da montanha devido aos seus interesses e opiniões questionáveis sobre como empregar o conhecimento e poder que possuíam. Unidos em sua própria desgraça, as cinco cabeças criaram, então, o Tentáculo, cujo poder de influência data de muitos séculos e abrange diversos lugares no mundo. A série cruza a existência da organização com tragédias históricas, como o acidente nuclear em Chernobyl, ocorrido em 1986, chamando a atenção para seu inegável poder de destruição. Os frequentes desentendimentos e a ascensão de Elektra, entretanto, colocam essa abordagem em perspectiva. Ao fim da temporada, perguntas como “para onde?” e “como?” surgem com alguma facilidade, mas não tornam crível a possibilidade de uma destruição completa. O Tentáculo, por fim, continua a existir, mas como uma sombra de si mesmo.

É evidente que a série não parece particularmente disposta a lidar com aquilo que existe de mais problemático em seu enredo — das incoerências presentes no roteiro até a inconsistência de seus personagens ou a falta de uma identidade própria, coletiva, e não individual. Em muitos momentos, Os Defensores assemelha-se a suas antecessoras e vai utilizar-se de referências que deram certo no passado — da cartela de cores até a trilha sonora, que navega entre o instrumental noir de Jessica Jones e o hip-hop de Luke Cage —, mas muito perde-se à medida que o conjunto passa a ser o foco. Em uma série que deseja abordar tantas narrativas e contextos tão distintos, é irônico que, por fim, ela comunique tão pouco. Longe de ser a última, Os Defensores dificilmente poderia ser considerada memorável, reservando a si mesma a sina de ser uma produção que poderia ser mais do que é, relegada ao papel de interlúdio entre aquilo que já foi e o que ainda pode acontecer.

1 comentário

  1. Sou super amante das series e por isso já vi muitas, assim que dificilmente uma serie me surpreende, mas Os Defensores é uma exceção, a história é realmente boa. Li que iam lançar esta serie e o tema não me interessou, mas um dia vi um capitulo e fiquei intrigada. Acho que vi toda a primeira temporada num final de semana. Já quero ver a segunda temporada porque o final da temporada foi inesperado, amei a participação de Rosario Dawson, sempre leva o seu personagem ao nível mais alto da interpretação, seu trabalho é dos melhores, é uma atriz preciosa que geralmente triunfa nos seus filmes. Recém a vi em Paixão Obsessiva, sendo sincera eu acho que a sua atuação é extraordinário.

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