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Crítica: A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata

Além da missão de ressuscitar as comédias românticas, o plano de dominação mundial da Netflix parece também incluir aquecer nossos corações com dramas de época. Prova disso é o seu mais recente lançamento, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata. Adaptado do romance homônimo de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, com direção do experiente Mike Newell (responsável por filmes como Quatro Casamentos e Um Funeral e Harry Potter e o Cálice de Fogo), o título pode soar (muito) estranho à primeira vista, mas é explicado logo nos primeiros momentos do filme. Com uma cena de abertura que dita o tom das mais de duas horas de duração do longa, somos apresentados a Elizabeth McKenna (Jessica Brown Findlay), Dawsey Adams (Michiel Huisman), Eben Ramsey (Tom Courtenay), Isola Pribby (Katherine Parkinson) e Amelia Maugery (Penelope Wilton), moradores da Ilha de Guernsey, pertencente à Coroa Britânica, mas que geograficamente está mais perto da França, um dos fatores decisivos para a invasão dos alemães ao território durante a Segunda Guerra Mundial, e para ser, historicamente, conhecida como o único local pertencente à coroa inglesa a cair nas mãos dos nazistas.

Atenção: este texto contém spoilers!

Vivendo uma nova e dura rotina com a presença do inimigo em suas terras, o grupo de amigos — que, como Adams destaca mais adiante, naquele tempo eram apenas conhecidos que tinham Elizabeth como amiga em comum — se reúne em uma noite para celebrar uma inesperada fartura de comida (e também, por que não, de carinho e amor ao próximo, tão em falta naquele local). Eles têm à disposição um banquete completo com carne de porco (cuja produção fora tomada pelos alemães) e outros acompanhamentos, incluindo aí a torta de casca de batata de Eben que dá nome à história. A torta (sem farinha, sem leite, sem ovos) é um reflexo da pobreza, uma das inúmeras dificuldades enfrentadas pelos nativos devido ao cerco nazista.

Ao voltar para casa mais tarde naquela noite, o grupo é interceptado por alemães que, tendo proibido reuniões de mais de três pessoas sem o devido registro, tinham autoridade para prender e deportar para campos de concentração aqueles que consideravam estar praticando atividades ilegais, seja qual fosse a definição e interpretação para tais atitudes. No momento de pânico paralisante dos outros amigos, momento que também é de certa forma cômico devido a bebedeira de Eben, Elizabeth surge com a mentira de que eles retornavam de um encontro da Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata, um clube de leitura.

A partir daí, eles passam a se encontrar para ler e debater as histórias e acabam descobrindo uma verdade quase universal: a leitura é um bote salva-vidas em tempos sombrios e um local seguro para manter a sanidade e construir laços. Embora o clube de leitura tenha começado como uma mentira, é possível ver como seus membros ganham vida a cada discussão conforme os encontros procedem. A literatura é, ao mesmo tempo, um escape e um território seguro para refletirem sobre si mesmos, além de uma fonte de conexão que garante que eles tenham sempre algo em comum para compartilhar. A literatura também funciona como uma divertida ponte entre os personagens e o público, já que o clube em geral discute livros hoje considerados clássicos da literatura de língua inglesa; para quem leu ou conhece as histórias de Jane Eyre ou O Morro dos Ventos Uivantes, por exemplo, é divertido perceber como personagens como Isola relacionam a própria vida com aquelas discutidas nos romances vitorianos, e a sequência performada durante os créditos finais do filme funciona especialmente bem como um adorável bônus para os amantes da literatura.

“Nosso clube do livro nas sextas à noite se tornou nosso refúgio. É uma liberdade particular perceber que o mundo se torna cada vez mais escuro à sua volta, mas que só é necessária uma vela para enxergarmos novos mundos se revelando. Foi isso que encontramos na nossa sociedade.”

O trecho acima é de uma das cartas de Adams para Juliet Ashton (Lily James), protagonista do filme, introduzida pelo roteiro já no período pós-guerra. Escritora residente em Londres, Juliet vive pela primeira vez o sucesso com a publicação de seu segundo livro, Izzy Bickerstaff Goes to War. Mesmo que seu agente e melhor amigo, Sidney Stark (Matthew Goode), esteja empolgado com as vendas, a agenda lotada e a proposta do The Times para que ela escreva sobre a importância da leitura, Juliet sente que falta algo — encontrar sua voz, talvez, achar a história certa para contar, quem sabe, ou até se achar digna das críticas positivas.

A primeira carta de Adams não poderia chegar em momento mais oportuno para a protagonista. O endereço dela, ele logo explica, estava em um antigo livro que ele adquiriu e, em busca de mais itens para ler, algo nada fácil de se achar em um ilha sofrendo as consequências de longos anos nas mãos do inimigo, pede a ajuda da única pessoa fora de seu círculo que pôde encontrar. O primeiro contato entre os dois logo se torna uma longa e intensa troca de cartas, culminando com Juliet se convidando para conhecer o amável e curioso clube de leitura e, quem sabe, de quebra conseguir um história real para inspirar seu artigo para o The Times.

Ao chegar a Guernsey, no entanto, a escritora não é recebida da maneira esperada. Ou melhor, é, mas apenas inicialmente: sua participação no clube, desfalcado de Elizabeth, que não está na ilha, é recheada de comida, conversas animadas, discussões acirradas, risadas e gim — além de um convite para fazer uma leitura não de seu best-seller, mas de seu primeiro livro, uma biografia crítica de Anne Brontë (definitivamente a irmã Brontë menos famosa) que vendera apenas vinte e oito cópias, mas que parece ser um trabalho do qual ela se orgulha muito mais. Tudo desanda quando ela revela a intenção de escrever para o jornal sobre o grupo, que, sem muitas explicações, recusa o convite e parece bastante incomodado — o que naturalmente desperta a curiosidade de Juliet. A fim de tentar entender o sumiço de Elizabeth, que pelas cartas de Adams parecia ser a alma do grupo, Juliet estende cada vez mais sua estadia na ilha, ainda que esteja hospedada na casa de uma mulher desagradável que parece acreditar que seu dever cristão é julgar e criticar o próximo.

Alternando flashbacks com passagens do presente e equilibrando momentos de mistério, romance, comédia e drama, as duas horas de duração do filme não parecem nada longas ao nos presentearem com uma história que cativa pela sensibilidade, doçura e emoção. O ponto-chave para esse resultado de sucesso reside na aposta do diretor pela simplicidade ao centralizar em primeiro lugar a ternura da história, e também nas boas atuações entregues por parte do elenco — elenco que, para os fãs da série britânica Downton Abbey, pode tornar a experiência um pouco nostálgica, já que grande parte dos atores principais também integrou, em algum momento, o programa de TV. Sem grandes inovações ou aposta na subversão de clichês do gênero, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é a prova de que não só de tramas originais vive o cinema, mas que também é possível entregar algo marcante e transformador ao se seguir à risca uma boa e velha receita, já conhecida do público.

Longe do conflito bélico que deixou milhões de mortos e mudou para sempre o curso da história do mundo, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata aposta em discutir a faceta doméstica da guerra. Como se sabe, um conflito nas dimensões das grandes guerras que o mundo atravessou não afetam apenas aqueles deslocados para os campos de batalha, mas nações inteiras, e nesse sentido é interessante que o longa se dedique a uma parte bastante desconhecida da Segunda Guerra. O roteiro faz uma escolha válida, embora sempre seja passível de críticas, ao optar por não explorar em tela os horrores da guerra para além da superfície, apostando na ideia de refúgio que o clube representava e na ideia de que o contato dos habitantes da pequena ilha com o conflito seria relativamente pequeno — e, provavelmente, no fato de a Segunda Guerra já ter sido representada bem mais de mil vezes no cinema.

E ainda assim estudos recentes apontam que, pelo menos entre os americanos, o Holocausto está desaparecendo da memória coletiva. Nesse sentido, uma escolha menos defensável é a forma bastante rasa com que é tratada a trama que traz para dentro do clube um dos soldados nazistas que ocupavam a ilha de Guernsey, que se torna amigo de todos os membros e especialmente próximo de um deles. O personagem é delineado e explorado de forma muito superficial, o que torna difícil entender por que cinco pessoas vivendo sob uma invasão promovida pelas entidades que ele, para todos os efeitos, defendia, cientes dos horrores promovidos pelo governo do país cujo exército ele representava, se afeiçoariam tanto a ele — que em seu (pequeno) tempo de tela não demonstra seu desacordo com as práticas do regime nazista e não oferece nenhum tipo de resistência significativa. Essa trama acaba por vir em detrimento do filme, que tem uma sensibilidade tão acertada para falar de seus outros temas.

Temas esses que incluem algumas discussões bastante pertinentes e alinhadas com o momento histórico em que o filme é lançado — afinal, ainda que se trate de um drama histórico, toda obra é em alguma medida um produto de seu tempo. Embora esses momentos possam soar um tanto quanto anacrônicos, é bastante prazeroso assistir Juliet reagindo a certas noções arraigadas na sociedade, mas que fazem parte das nossas lutas e discussões diárias. Quando Sidney pergunta se o namorado dela permitiria que ela viajasse sozinha para Guernsey, Juliet responde com um simples “me deixar?”, como se a noção fosse absurda para ela — e, bem, de fato era. Juliet também questiona a dona dos aposentos em que fica hospedada na ilha, afirmando seu erro em usar a Bíblia, “um livro cheio de amor”, como justificativa para disseminar ódio. Também chama a atenção a naturalidade com que ela fala com Isola sobre o fato de Sidney (que além de agente também é seu melhor amigo) ser gay — não é uma questão para ela, nem para Isola, como de fato não deveria ser para ninguém. São momentos pequenos, mas que evidenciam Juliet como uma personagem livre, questionadora e cheia de pensamento crítico, e Lily James domina particularmente bem esses momentos com sua performance.

Mas não só sobre Juliet que a trama se constrói, e o filme se dedica acima de tudo às experiências de uma gama de mulheres. Mesmo que Adams (o criador de porcos mais sexy e sensível do mundo) e o noivo de Juliet, o americano Mark Reynolds (Glen Powell), roubem a cena em alguns momentos, a trama gira em torno das mulheres da história — principalmente a que menos está presente, Elizabeth. Temos o tradicional e caricato papel materno e angustiado com Amelia, a solteirona convicta com Isola, que encontra conforto nos personagens dos livros e que, de forma poética e tocante até, nos faz ficar um pouco mais confortáveis com nossa própria solidão e com a perspectiva de desafiar a ordem social vigente ao não selar matrimônio; e, para quem está familiarizado com Elizabeth Bennet, a presença de Juliet será reconfortante, com sua personalidade progressista e de dona de si mesma.

Entretanto, é válido ressaltar que, apesar de o filme colocar mais do que uma mulher em destaque na trama, dando espaço para suas histórias serem contadas, mais uma vez esse espaço é reservado à mulheres brancas, nos fazendo questionar até que ponto, realmente, estamos avançando em uma representatividade diversa. A mesma questão também pode ser levantada com a produção do filme. Iniciada em 2010, na época, com Kate Winslet no papel principal, foram muitas idas e vindas até James abraçar o trabalho; e mesmo que o desenvolvimento da adaptação seja financiado pelo StudioCanal, com produção da Blueprint Pictures e Mazur/Kaplan Company, a Netflix tomou para si o dever de distribuir o longa mundialmente, após as estreias no cinema no Reino Unido e França no primeiro semestre de 2018. Apesar do tortuoso caminho traçado para tirar o projeto do papel, o que mais chama a atenção é a ausência de mulheres nos cargos principais de produção. Um diretor e três roteiristas homens são os responsáveis por dar vida a um livro escrito por duas mulheres. Mesmo que o trabalho tenha, em sua maioria, sido exitoso, é importante estar atento também para a diversidade por trás das câmeras dos produtos que consumimos.

Com o sucesso de Patty Jenkins na direção de Mulher-Maravilha e Greta Gerwig — responsável por Lady Bird — sendo ainda a quinta indicada na história da premiação a categoria de Melhor Diretor, nossa atenção se volta para uma questão cada vez mais urgente: a de que não basta cobrar representatividade somente frente às telas, mas que a briga por espaços também precisa ocorrer por trás delas; para diretores, roteiristas, produtores e outros cargos responsáveis por criar uma história para TV ou cinema. Afinal, opções com certeza não faltam.

No fim, ainda é bom ver mulheres em frente às câmeras (que seguem representando bem menos da metade dos personagens com falas e dos protagonistas no cinema, quando somos metade da população mundial) — mas é melhor ainda quando elas também estão envolvidas na construção da história. Mesmo que peque em algumas dessas questões e tenha lá seus problemas na construção de alguns personagens, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é o filme perfeito para aqueles que desejam se conectar com o poder da leitura e voltar a acreditar no amor ao próximo, em uma vida simples, sem pré-julgamentos e na beleza de encontrar, em meio a um grupo, o seu lugar no mundo.

Texto escrito em parceria por Debora e Fernanda.

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