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A origem do mundo: o fim do silenciamento dos nossos corpos

Caluniada, escondida, demonizada e desdenhada, aquilo que se costuma chamar de “genitália feminina” tem sido tratado como tabu na sociedade ocidental durante os últimos séculos. Mulheres e meninas não têm autorização para se tocar, para conhecer seus próprios corpos, para descobrir as sensações que eles podem lhes proporcionar. É sobre isso que a quadrinista e apresentadora de rádio Liv Strömquist fala no livro A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou a Vulva vs. o Patriarcado, traduzido por Kristin Lie Garrubo e lançado pelo selo Quadrinhos na Cia., da editora Companhia das Letras, em junho de 2018.

Entre dados históricos e antropológicos pouco conhecidos, lendas, mitos e crenças religiosas mais ou menos antigas, somos levadas a conhecer a história milenar dos nossos próprios corpos, história essa que já foi mantida longe do nosso alcance por tempo demais. O ponto de partida dessa viagem de autodescoberta proporcionada por A Origem do Mundo não é acidental: uma lista de homens que se interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar de “genitália feminina”, mas obviamente nunca em nosso benefício. Desde Harvey Kellogs, o pai do Sucrilhos, que queria impedir que todas as mulheres tocassem a própria genitália, até um grupo de cientistas (homens, desnecessário dizer) que abriu o túmulo da rainha Cristina da Suécia em 1965 porque acreditavam — com base em relatos históricos de seu comportamento “pouco feminino” — que a dita rainha era hermafrodita, nos deparamos com diversos relatos de homens que se sentiam tão ameaçados pelos nossos corpos que criaram todo tipo de teoria e prática sem nenhum fundamento cientifico válido para empurrar nossa anatomia para o canto mais escuro e isolado possível. Como disse, esse ponto de partida não tem nada de acidental; ele serve para entendermos por que, até hoje, nossos corpos são tão infames e clandestinos até para nós mesmas.

Isso leva diretamente até o ponto abordado em seguida: o apagamento da nossa anatomia. Os órgãos genitais femininos são, quando muito, definidos em relação e em oposição aos órgãos genitais masculinos. Nossa “genitália” é frequentemente descrita como interna, como se não passássemos de um buraco feito para servir ao pênis. Todas as partes externas dos nossos genitais são silenciadas e apagadas, não aparecem em materiais escolares, não têm nome, não existem. A questão de “não ter nome” é especialmente importante, porque na verdade ela tem nome, sim: vulva, nome que não é usado e é desconhecido a tal ponto que chega a soar estranho. Chamar a genitália feminina de vagina, que na verdade é o nome de apenas uma parte dela (adivinha qual? A interna, a única que o discurso oficial nos permite ter), contribui para o apagamento de todo o resto da nossa anatomia. Esse discurso sobre nossos órgãos sexuais também ajuda a perpetuar a heterossexualidade compulsória — se as genitálias masculina e feminina são anatomicamente opostas/complementares, isso só pode significar que elas foram feitas uma para a outra, não é mesmo? — deixando de lado que um dos centros de prazer sexual mais importantes do corpo feminino se encontra, na verdade, do lado de fora. Centro de prazer esse que é muito mais parecido com os genitais masculinos do que oposto a eles.

Imagens de vulvas
Vulvas de várias formas e tamanhos

A partir daí, o livro explora diversos temas relacionados à genitália feminina, como orgasmo, menstruação e, até mesmo, padrões estéticos para a vulva. No percurso, aprendemos que o orgasmo feminino nem sempre foi ignorado, e já foi considerado como um elemento importante para aumentar as chances de concepção. Aprendemos também que menstruação é possivelmente a origem da própria palavra “tabu”, hoje considerada suja, impura e vergonhosa (quem nunca ficou mortificada por sujar a cadeira da escola alguma vez?), mas que já foi associada ao sagrado e considerada mágica em outros tempos e outras sociedades. Até a famigerada e infame TPM, que hoje em dia é culpada toda vez que uma mulher não responde a qualquer coisa com a docilidade e gentileza esperadas, já foi considerada um fenômeno humano universal na época dos gregos antigos.

A questão dos padrões estéticos para a vulva é especialmente interessante e relacionada ao apagamento da nossa genitália externa, além de ter uma conexão muito próxima com outras questões feministas importantes, como os padrões estéticos em geral, e a disforia que muitas mulheres sentem com relação ao próprio corpo, assim como a cultura da pedofilia que reina na nossa sociedade. Ignora-se que a vulva, assim como todas as outras partes dos nossos corpos, vem nas mais diferentes cores e formatos. O apagamento da nossa genitália externa faz com que mulheres que têm os pequenos lábios mais longos se sintam constrangidas, envergonhadas e acreditem de verdade que exista algo errado com os seus genitais. Isso leva milhares de mulheres todos os anos a se submeterem a cirurgias eletivas estéticas para adequar suas vulvas ao que o discurso hegemônico considera uma “genitália feminina normal”, e o Brasil é o campeão mundial nesse tipo de cirurgia. Os padrões estéticos impostos sobre nossas vulvas são pedófilos e racistas, porque negam a anatomia normal de mulheres adultas e não brancas, e exigem que todos os corpos, em suas peculiaridades, se adequem a um modelo único e excludente, com cor definida, sem pelos, o mais invisível possível e sem cheiro. Além de serem mais uma forma de as indústrias estética e farmacêutica lucrarem em cima de nós, é algo que atrapalha diretamente a vida sexual das mulheres.

O enaltecimento das nossas vulvas que temos visto aparecer discretamente nas mídias nos últimos tempos não é um fato aleatório e sem propósito. Nossos corpos têm permanecido na obscuridade e na clandestinidade por eras, enquanto homens exibem os seus sem constrangimento, literal ou simbolicamente. Vivemos em uma cultura falocêntrica e é impossível abrir os olhos sem se deparar com algum elemento que remeta aos órgãos sexuais masculinos. Por isso, e também para nos livrar de séculos de condicionamento que nos fez odiar e rejeitar nossos próprios corpos, é que precisamos redefinir nossa relação com nossos próprios genitais. Precisamos ser ensinadas e estimuladas a nos conhecer e entender o que gostamos também no campo sexual, como acontece com os meninos desde sempre. Precisamos entender as nossas próprias particularidades e peculiaridades para podermos exigir nossos direitos também na cama. O empoderamento feminino (entendido como fenômeno coletivo pelo qual as mulheres, enquanto classe, atingirão uma posição hierárquica equivalente a dos homens na sociedade) passa também pela exaltação dos nossos corpos, que já foram rebaixados por tempo demais. Não é por diversão que oficinas de masturbação faziam parte das atividades políticas do movimento feminista estadunidense dos anos 60. O pessoal é político, nossos corpos são políticos, nossas vulvas são políticas. E tudo isso fica claro como água nas aproximadamente 140 páginas esclarecedoras e divertidas de A Origem do Mundo.

Banner avaliação A origem do mundo

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.

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2 comentários

  1. Resenha brilhante, inteligente, muito lúcida e embasada. Reflexões urgentes e fundamentais. Sua perspectiva – impressa no texto – me inspira. Sigamos quebrando o(s) silêncio(s).

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