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Dos relacionamentos abusivos e da violência em versos e melodia

É de conhecimento universal que a música é uma arte; uma forma de expressão composta por palavras e notas que, nos mais variados gêneros, servem como canal para transmitir uma mensagem.

Mas nem todos ouvem músicas ou trabalham com ela da mesma maneira — alguns são mais atentos, outros são mais distraídos; alguns veem-na com seriedade, outros com descontração — quando não é um misto das duas coisas. Isso faz com a música esteja constantemente presente nas nossas vidas, contemplando variados momentos e humores. E, por causa disso, às vezes acontece de uma música com tema mais sério alcançar nossos nossos ouvidos e ainda assim não captarmos seu significado furtivo.

Para encerrar a campanha dos 16 Dias de Ativismo, selecionamos algumas músicas que falam sobre relacionamentos abusivos e violência contra a mulher pelas vozes de cantoras que abordam esses temas de maneiras diferentes, mas ainda inteiramente válidas para nos ajudar a compreender as mais variadas formas de manifestação do abuso e os sentimentos que surgem a partir dele.

“Por Causa de Você”, Kelly Key

Para os infantes mais sortudos, “Por Causa de Você” pode ter sido um dos primeiros contatos com um discurso que falava sobre um relacionamento abusivo. O ano de lançamento era 2003, e o assunto levantava muitas controvérsias, especialmente quando os relacionamentos eram voluntários. “Por Causa de Você” faz parte de Do Meu Jeito, segundo álbum de estúdio de Kelly Key, e produz uma quebra no álbum, cujas músicas são em sua maior parte alegres, confiantes e apaixonadas, já que ela costuma cantar para seu público majoritariamente pré-adolescente. Mesmo assim, Kelly Key não falha em transmitir uma mensagem clara por meio da sua música, não importa o quão joviais sejam.

Crianças e pré-adolescentes podiam não entender muito de relacionamentos naquela época, mas era perceptível no tom de Kelly Key que tinha algo de muito errado naquilo que ela cantava, sobre todo o controle de imagem que sofria e a submissão ao namorado. Na música, ela fala sobre ser abandonada por um cara depois de ter abdicado de tudo por ele, desde seu modo de ser e de se vestir até as pessoas de sua vida: “Por causa de você não uso mais batom, rasguei meu short curto, diminuí meu tom. Troquei os meus amigos, por alguém que só me arrasa. Por causa de você, não posso mais entrar em casa”. Há quem a culpe pela inocência, há quem tente arranjar justificativas. Mas hoje não há como nos enganar — nós conhecemos a vítima de uma sociedade machista. A música dispensa traduções e é autoexplicativa.

“Because Of You”, Kelly Clarkson

O quarto single do segundo álbum de Kelly Clarkson foi impactante na ocasião do seu lançamento, em 2005, e ainda é impactante nos dias de hoje. Podemos atribuir parte do seu sucesso à poderosa voz de Clarkson, mas também ao desabafo profundo e às gotas de sentimento que escorrem de cada verso da música. “Because of you” é uma confissão sobre o efeito psicológico de uma relação tóxica, na vida real atribuída ao comportamento do pai da cantora em casa e no casamento. O clipe ilustra uma Kelly Clarkson adulta passeando pela infância, assistindo o pai maltratar a ela e à sua mãe, tratando-as com negligência, indiferença e, por fim, abandono. Ele, que deveria atuar como uma base conjunta para sua família, é o motivo de tanta desconfiança e tristeza guardados no fundo do coração da cantora, que afetam suas relações com outras pessoas ao longo da vida.

“Still”, Macy Gray

Os primeiros versos de “Still” vão direto ao ponto: “In my last years with him there were bruises on my face. In my dawn and new day I finally got away” [“Nos meus últimos anos com ele tinha hematomas no meu rosto. No meu recomeço, finalmente me libertei”]. E com tamanha honestidade (e o embalo típico do soul), acabam impressionando e chamando atenção para a música, principalmente pelo tema que ela aborda.

Às vezes, acabamos embalados pela melodia mais do que pela letra de uma música, e por consequência acabamos também enganados ou desatentos quanto ao conteúdo problemático da sua mensagem. Em “Still”, embora Macy Gray cante sobre ter se livrado de um relacionamento abusivo, ela revela ainda sentir falta de sua antiga companhia porque o amava e considera voltar para ele. E por mais que não pareça nada inteligente, a música representa a complexidade dos sentimentos mesmo com toda a dor e falta de controle sobre o coração. Essa falta de racionalidade acaba levando as vítimas a ficarem ainda mais presas nessa teia de aranha, e nessas horas precisamos entender o quanto as memórias ruins não anulam as boas e que é assim que nos encontramos no meio de muitos dilemas.

“Til It Happens To You”, Lady Gaga

Em uma parceria inspirada, Lady GagaDiane Warren escreveram a poderosa e emocionante “Till It Happens To You”, música tema do documentário The Hunting Ground, de Kirby Dick, que estreou no Festival de Sundance de 2015. O documentário tem por premissa mostrar os inúmeros casos de abusos sexuais que ocorrem em universidades dos Estados Unidos e como esse é um problema que precisa de solução urgente, visto que, só no ano passado, mais de 18% dos jovens norte-americanos relataram estupros ou tentativas de violência sexual em seus primeiros anos nas universidades. No vídeo de “Till It Happens To You” acompanhamos as histórias de quatro jovens que são abusadas sexualmente enquanto vemos o quanto é difícil superar esse tipo de violência.

Coautora dos versos, a própria Lady Gaga assumiu, em uma entrevista ao programa de rádio The Howard Show, ter sido estuprada aos 19 anos por um produtor 20 anos mais velho do que ela, e como foi difícil conseguir sair da espiral de tristeza pela qual passou nesse período. Sessões de terapia e o apoio de amigos e familiares foram os pilares que apoiaram Gaga durante sua recuperação.

O vídeo a seguir pode ter gatilhos de estupro e violência sexual.

“I’m Ok”, Christina Aguilera

Talvez uma das músicas mais pessoais de Christina Aguilera, a cantora escreveu os versos de “I’m Ok” lembrado-se de sua infância vivida em um lar onde havia muito abuso e violência doméstica. A música é intensa e Christina canta sobre como aqueles anos a moldaram e como foi difícil para ela ver sua mãe passar por todo aquele sofrimento. Ainda assim, a cantora diz ter conseguido tirar algo de valioso dessa experiência extenuante, que foi a determinação e o fato de que nunca desistir de seus objetivos por causa de qualquer pessoa, especialmente um homem. Em um dos versos, Christina canta “Strength is my mother for all the love she gave” [“Minha força é minha mãe por todo amor que ela me deu”] e a agradece por ter deixado seu pai, um homem violento, e que ela não sabe se ainda estaria nesse mundo se não fosse por esse ato de extrema coragem por parte de sua mãe. Sair de um relacionamento abusivo não é algo simples e muitas mulheres passam anos presas a um parceiro (ou parente) tóxico por medo.

Em outro verso Christina diz “Bruises fade father but the pain remains the same” [“Feridas somem, pai, mas a dor permanece a mesma”] o que significa que, em outras palavras, mesmo que o tempo passe e a violência sofrida fique distante na memória, o impacto causado por tanto sofrimento permanece e é preciso continuar lidando com tais consequências pelo resto da vida. É um constante processo de cura. “Hurt me to see the pain across my mother’s face every time my father’s fist would put her in her place. Hearing all the yelling I would cry up in my room hoping it would be over soon”. [“Me machucava ver a dor estampada no rosto da minha mãe toda vez o punho de meu pai a colocava em seu lugar. Ouvindo todos os gritos eu chorava em meu quarto, esperando que isto acabasse logo”]

“Luka”, Suzanne Vega

A princípio, a voz macia de Suzanne Vega e os acordes suaves do violão podem enganar o ouvinte de “Luka” sobre o conteúdo da música. Embora soe como uma canção de ninar, a música é o relato de uma mulher que dialoga com um(a) vizinho(a) explicando quem ela é e dando instruções para ele(a) ignore toda a confusão que por ventura venha a acontecer no seu apartamento no meio da noite e não pergunte sobre o que se trata. E, ainda, tenta justificar a bagunça por ser desastrada ou louca. Uma desculpa que ela sabe não ser verdade, mas tenta convencer os outros — e, quem sabe, eventualmente consiga convencer a si própria também. “It’s not you business anyway”, diz um dos versos, ou seja, não é da sua conta.

Não é preciso ser um gênio para saber que Vega está se referindo a violência doméstica por meio da personagem protagonista de sua música. Em especial, ao tipo de mulher que prefere dissimular e esconder a violência que sofre independente do motivo, um caso mais comum do que acredita nossa vã filosofia. Aqueles que a mídia tanto nos alerta. Aqueles que ainda falhamos em prevenir, graças à permanência do domínio do patriarcado, que, por sua vez, também é reforçado pela mídia. Lógica, onde estás?

“Me and a Gun”, Tori Amos

Tori Amos tem uma longa e frutífera carreira. Cantora, compositora e pianista, suas músicas são sempre muito pessoais e abordam com frequência acontecimentos de sua vida, como é o caso de “Me and a Gun”. A música faz parte do segundo álbum da cantora, Little Earthquakes, de 1992, e conta a história do estupro sofrido por ela quando tinha 21 anos. Na ocasião, Tori ainda não era conhecida por seu trabalho e tocava piano em bares, tentando fazer sua carreira acontecer. Em um fim de expediente, um de seus patrocinadores pediu por uma carona e a sequestrou, estuprando-a por horas.

Em seus versos, Tori canta como a experiência foi traumática, “It was me and a gun and a man on my back and I sang ‘holy holy’ as he buttoned down his pants” [“Era eu e uma arma e um homem atrás de mim e eu cantei ‘santo santo’ enquanto ele desabotoou suas calças”]. “Me and a Gun” é uma música forte e há relatos de mulheres que encontraram nos versos escritos por Tori Amos a mensagem de que precisavam, de que elas não eram culpadas pela violência que sofreram. Após sua música alcançar uma popularidade inesperada, Amos fundou a RAINN — Rape, Abuse and Incest National Network —, uma ONG que promove campanhas anuais de conscientização e tem uma linha segura de telefone para vítimas de estupro.

 

“Maria da Vila Matilde”, Elza Soares

Por último, mas não menos importante, não podíamos deixar de mencionar a canção “Maria da Vila Matilde” (subtítulo: “Se a da Penha é brava, imagine a da Vila Matilde”), de Elza Soares, que venceu recentemente o Grammy Latino na categoria Melhor Disco de Música Popular Brasileira pelo álbum A Mulher do Fim do Mundo, lançado em novembro do ano passado. Nessa canção, uma das mais notórias representantes da música brasileira, também uma sobrevivente de violência, assume a posição defensiva dos direitos da mulher. É uma música reacionária, não-levo-desaforo-pra-casa, que incentiva as mulheres a denunciarem a violência doméstica que sofrem, muito embora essa ainda seja uma atitude delicada em grande parte dos casos. A autoconfiança que emana nos versos da música, no entanto, não deixa de ser um forte incentivo para que toda mulher que sofre abuso dentro de casa faça o que tem de ser feito: se manifeste, denuncie.

“Mão, cheia de dedo
Dedo, cheio de unha suja
E pra cima de mim? Pra cima de muá? Jamé, mané!
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”

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Sites envolvidos nessa campanha:

Durante os 16 dias de ativismo, sites envoltos pelo #feminismonerd, se propuseram a discutir as problemáticas em torno da representação de mulheres como uma matriz que reitera os discursos de violência e ódio, quanto veículos que visibilizam a discussão. Sabemos que, apenas a exposição e discussões possibilitam o combate direto, a resolução e identificação do problema. Como reitera a escritora e teórica feminista Audre Lorde: “é preciso transformar o silêncio em linguagem e ação.”

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Texto escrito em parceria por Thay e Yuu

5 comentários

  1. Sabe uma música não tão óbvia que as pessoas geralmente acham romântica e, quando você presta atenção, na verdade retrata um relacionamento destrutivo? All Of Me, do John Legend. Eu mesma costumava achar ela linda, até que um dia caiu a ficha. Pra mim, claramente parece que o eu lírico está em uma enorme dependência afetiva de um relacionamento nocivo. (Been there, done that.)

  2. Uma das músicas com uma das analogias mais perfeitas que eu já vi é Off To The Races da Lana Del Rey, nessa música ela retrata um relacionamento abusivo na perspectiva dela mesma, na época em que se encontrava em um, mas esse relacionamento nunca foi com um homem ou mulher e sim com bebida, da qual ela já foi viciada, e pra deixar isso mais claro ainda de que mesmo ela achando que tudo aquilo era lindo, mesmo sendo vicio, ela usa de trechos de Lolita, que é um livro que fala sobre relacionamento abusivo também. Então todas as vezes que ela fala sobre o “My old man” ela se refere a Johnnie Walker dos Whiskeys que ela roubava do pai. Muita gente acha que essa música é errada por romantizar a visão de um relacionamento abusivo mas essa foi a forma que ela achou de se libertar dos seus pensamentos a visão que ela tinha sobre a bebida, algo bonito mas que destruía ela cada vez mais.

  3. Eu passei por um relacionamento abusivo, abandonei amigos, abandonei planos, cheguei ao fim da picada de ter que emprestar grana para o traste, aguentei o ciúme dele (ele sabia que era ruim p caramba e q eu conseguiria alguem melhor em qualquer esquina, pena q eu nao percebia isso). foram 2 anos de relacionamento abusivo, brigas, ele me colocava p baixo. Mas busquei ajuda com terapia religão e me livrei desse traste. Ele correu atras de mim 1 ano até que eu arrumei um novo namorado (uma benção na minha vida, estabilizado emocionalmente e financeiramente, que faz tudo p sermos felizes).

  4. Uma música poderosíssima com esse tema é Call Me Guilty, da Jazmine Sullivan, que fala sobre um caso onde a mulher não aguentou mais e que pra se salvar, matou o cara. É uma música que raramente passo quando ela cai no aleatório. Traz uma mensagem forte sem deixar de lado a musicalidade. Na verdade o segundo é feito pra que o primeiro seja transmitido de forma ainda melhor. Impossível ouvir a música e ela não te jogar praquele cenário, recomendo DEMAIS.

  5. uma música que fala sobre relacionamento abusivo também é a Cherry Wine -Hozier que parece romântica a melodia mas acaba mostrando a violência dessa parceira com ele e ele aceitando por ama-la. Fora que o clipe é com a atriz Saorsie Ronan mostrando o ponto de vista da perspectiva feminina desse tipo de relacionamento em contraposição a música dele

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