Lançado em meio a corrida eleitoral estadunidense de 2024, que resultou na vitória de Donald Trump, o elevando ao posto político mais importante do mundo novamente, O Aprendiz, do diretor Ali Abbasi (Holy Spider, Shelley), adentra a juventude e início da carreira do empresário, político e celebridade essencialmente americano.
Com Sebastian Stan no papel principal, a produção tem início nos anos 70, quando Donald Trump tenta reerguer o nome de sua família no ramo imobiliário, tanto em razão de problemas com a justiça quanto devido à estagnação do pai no comando dos negócios, ao mesmo tempo em que deseja despontar nesta liderança. Trata-se de um homem que deseja o mundo, mas não sabe como conquistá-lo, apesar de ficar claro como, mesmo inseguro e confuso, se revela ambicioso e até obsessivo em relação aos seus objetivos.
É neste ponto que entra Roy Cohn, interpretado por Jeremy Strong (Succession), um advogado bem-sucedido de Nova York, que, na época, já havia se sobressaído em casos famosos e vai se revelando alguém que se utiliza mais de influência política, ameaças e trapaças do que qualquer outra coisa para chegar aonde deseja. É este o mestre do aprendiz e com quem aprendeu três “regras de ouro”, que passou a ditar sua vida a partir da década seguinte — as quais revelaram também ser o segredo de Trump nos anos posteriores, quando se envolveu na política: atacar sempre que for atacado, questionar a verdade e nunca admitir a derrota.
“Eu tenho três regras para vencer, ok? […] Ataque, ataque, ataque. Se alguém vai atrás de você com uma faca, você atira de volta com uma bazuca, ok? Regra dois, o que é a verdade, Tony? O que é a verdade? Sabe o que é a verdade? O que você diz é verdade, o que eu digo é verdade, o que ele diz é verdade. O que é a verdade da vida? Negue tudo, não admita nada. Sabe o que é verdade? O que eu digo é verdade. E por último, a mais importante de todas, não importa quão ferrado você esteja, nunca, nunca, nunca, nunca, admita a derrota. Você sempre clama a vitória. Sempre.”
O filme se propõe a abordar a relação intrincada entre essas duas pessoas, de forma que o resultado explosivo disso vai se formando ao longo do filme. Apesar de sofrer com a falta de ritmo, especialmente por querer cobrir um longo período de tempo, o roteiro é guiado pela obsessão de Trump em tornar o antigo edifício The Commodore em um prédio comercial de luxo, que valorizaria a cidade de Nova York e o bairro em que estaria localizado.
Neste ponto, trata-se de uma evolução, não somente dos personagens, como da própria cidade, que enfrentava uma crise moral e financeira entre os anos 70 e 80, de forma que a história de Donald Trump se encontra entrelaçada a das paredes de sua torre e daquele ambiente. Era como se os Estados Unidos precisassem de um símbolo para se reerguer e, em nome de seus próprios interesses, Trump estava pronto para se voluntariar a ser este símbolo de prosperidade — prova disso é o fato de, mesmo antes de se tornar apresentador do reality show de negócios, O Aprendiz (1996), manter uma relação muito próxima com a imprensa e estar sempre à frente das câmeras como rosto de empresas imobiliárias prósperas.
Não por outro motivo é a escolha visual do filme, que opta por um quadro granulado e cores sem saturação para retratar a realidade dessa Nova York intensamente coberta pela mídia da época, sem perder de vista o estilo de filmagem, que remete às famosas propagandas dos anos 80, as quais emanam toda a vida e o auge da era do consumo, bem como programas documentais.
Desde o início, quando, na primeira cena, nomeia pessoas de influência que conhece, mas não tem contato, Trump deseja se cercar por um certo de tipo de glamour exagerado e, em razão do tipo de pessoa que se retrata na cinebiografia, nefasto e brega, sendo que suas próprias construções e até a esposa, Ivana Trump (Maria Bakalova), se tornam parte desse quadro de mau gosto pintado por ele mesmo. O luxo e o dinheiro que o cercam o tornam caricato ao extremo, o que é pontuado por Roy Cohn em certo momento, que, por outro lado, se mantém uma figura aparentemente sóbria desde o início — porém, uma vez que há validação de quem o cerca, isso o mantém na linha daquilo que o público vai conhecer no futuro.
Assim, com a evolução do personagem ao longo dos anos, é possível reconhecer os traços de Donald Trump, o político, se formando no homem sem tato e sem influência que, aos poucos, vai deixando para trás. Se Sebastian Stan é sutil no início com os maneirismos e formas de falar e se expressar, durante as duas horas de filme ele vai se aprofundando mais e mais até desaparecer sob os ternos grandes, postura encurvada e feições repuxadas do presidente.
Não se trata de uma imitação, mas de um estudo arrojado de personagem que, em certo momento, chega a despertar o asco — e isto, não somente porque “o resto é história” e Trump é, atualmente, conhecido por escândalos sexuais, uma postura radical e falas problemáticas, mas porque o próprio filme também é História. Muitos acontecimentos foram ficcionalizados, como é avisado no início, mas com base em histórias reais. A misoginia do político, por exemplo, possui raízes profundas quando até a primeira esposa, Ivana Trump, servia à sua obsessão por aparência, resultando, talvez, na pior cena da produção: um estupro marital, que foi relatado dubiamente pela própria mulher durante o processo de divórcio do casal, em 1990 e, também, na biografia Magnata Perdido: As Muitas Vidas de Donald J. Trump, de Harry Hurt III.
Na época, apesar de ter nomeado o episódio como estupro, Ivana voltou atrás, dizendo que se “sentiu violada”, mas o acontecimento não deveria ser levado ao pé da letra ou de forma criminosa: “Em uma ocasião, durante 1989, o Sr. Trump e eu tivemos relações conjugais nas quais ele se comportou de forma muito diferente comigo do que fazia durante nosso casamento. Como mulher, me senti violada. Eu me referi a isso como um estupro, mas não quero que minhas palavras sejam interpretadas em um sentido literal ou criminoso”, declarou após a finalização do divórcio, em 1993.
No filme, a cena explícita ocorre quando Ivana, já sentindo o declínio do relacionamento, dá a ele um livro sobre como localizar o “ponto G” da mulher. Após dizer que não se sente mais atraído pela esposa por conta de sua aparência física, Ivana rebate mencionando como ele “está gordo, feio e careca”, o que o leva a violentá-la. Trata-se de um momento tão incômodo, que sequer parece se tratar do retrato de duas pessoas reais, mas não é o único, pois, em diversas outras cenas, ele a menospreza e comenta sobre sua aparência e a de diversas outras mulheres, as quais, de repente, passam a fazer parte da vida de Trump de forma mais ativa. É como se as pessoas ao seu redor estivessem lá apenas para servi-lo, o que vai sendo acentuado com o passar dos anos e ganho de poder; mas é perceptível, como na vida real, que isso é muito mais notável se tratando de mulheres, as quais Trump se sente no direito de sexualizar e objetificar tanto em público quanto entre quatro paredes.
Ainda, em que pese a controvérsia de Trump sobre sua relação com Roy Cohn residir mais nas questões legais — ou ilegais —, que fizeram para que Trump adquirisse seu status de homem de negócios, se tornando mais e mais sensível com o passar dos anos, quando o primeiro vai ganhando confiança a partir de sua própria experiência, também se dá em razão do fato de o advogado ser gay e ter contraído AIDS no auge do que se tornou a epidemia de uma doença que ainda era encarada com muito preconceito. Apesar de saber sobre a orientação sexual do mentor há anos, Trump provavelmente era o tipo de pessoa que escolhia relevar isso, desde que Roy servisse aos seus interesses e, é claro, não “agisse” como uma pessoa homossexual.
Por isso, apesar de o filme falhar em demonstrar, realmente, quando e porque, especificamente, mentor e aprendiz cortaram relações até se reconectarem ao final, trata-se de um retrato importante e uma abordagem interessante da época, especialmente pelo fato de Trump ser germofóbico (ou seja, ser excessivamente medroso sobre germes, sujeira e contaminação), quanto pelo próprio Roy retratar a vergonha e a rejeição da época às pessoas com HIV. Durante um programa de TV recriado pelo filme, Roy nega os boatos que corriam sobre a AIDS, atribuindo sua doença e clara fragilidade a um câncer no fígado.
Embora haja alguma redenção em Trump em um resquício de humanidade, que, ficcionalmente, o motivou a levar o antigo mentor até a conhecida propriedade em Mara-a-Lago, na Flórida, para seus últimos momentos em vida, também remete a algo muito mais centrado em ego do que qualquer outra coisa. Isso porque, o empresário já havia falhado em cuidar do irmão, Fred Trump Jr., o qual lutava contra o alcoolismo e pediu a ajuda de Trump antes de falecer.
Além disso, trata-se de uma via de mão dupla em relação ao próprio Roy. No último ato, lá estavam criador e criatura, frente a frente, como um espelho, e aparentemente o mentor odeia o que está vendo, residindo aí a complexidade da relação entre o protagonista e este homem do qual não se tem muitos detalhes. Infelizmente, essa ligação é construída e perdida ao longo do filme, especialmente quando o personagem principal faz seu voo solo na vida, retornando apenas ao final, como se Roy fosse o último elo de Trump com o mundo real ou com a pessoa que era antes de se tornar, oficialmente, Donald J. Trump.
Assim, a produção não consegue equilibrar muito bem essa “história de amor” como o fio que liga todas as história da vida dele, inclusive com a esposa, mas demonstra ser um retrato bem acurado do homem e do empresário, que se tornou político no futuro, além de estar bem amarrado à época e ao ambiente em que se passa. Pouco é falado sobre a carreira de Trump na política, pois há um espaço temporal muito grande entre o filme e o ano em que foi eleito Presidente pela primeira vez, mas Jeremy Strong, que dá vida a este homem enigmático — mas, ainda assim, descrito como cruel, ambicioso e sem escrúpulos, que tinha seus próprios interesses sobre o jovem Donald —, costuma dizer em entrevistas que o filme coloca um espelho sobre a América e, por isso, é muito importante.
É esta a descrição mais aguçada de O Aprendiz. Trump é o retrato mais caricato do sonho americano. O povo olha para este homem e deseja ser como ele, viver a vida dele, ter a audácia que ele tem diante das instituições e a liberdade — literal e figurativa — que sua fortuna lhe proporciona. É, então, que o filme se torna bem-sucedido, pois é centrado não somente em sua figura, mas em toda a sociedade que o fez ser quem é. E isso, nos Estados Unidos, nos anos 80 e em 2024, parece ser legítimo — com farsas, falências, misoginia e todo o resto.