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Drama histórico, fantasia e cultura pop em My Lady Jane

Antes da Rainha Elizabeth I, havia Jane Grey. Nova produção do Prime Video, My Lady Jane, aborda a vida da chamada Rainha Esquecida. Nunca oficialmente considerada monarca do Reino Unido, a jovem de apenas 16 anos ocupou o posto por apenas nove dias durante a guerra de poder travada pela Família Tudor, história que a série, de oito episódios, revisita com uma abordagem mais pop e revisionista. 

Se utilizando daquilo que foi assentado pelo tempo em seu favor, a produção aborda liberdade feminina, romance, intrigas políticas, guerras de poder, fantasia e discriminação racial, dentre outros temas, de forma moderna, menos rebuscada e até satírica — um sopro de ar fresco em uma infinidade de produções que retratam a monarquia britânica, ou uma versão do período regencial, como Bridgerton (Netflix).

Apesar de ter sido colocada no jogo de poder entre os Tudor por acaso, antes das disputas políticas, Lady Jane (Emily Bader), como filha de um Duque, desejava simplesmente se dedicar aos estudos, especialmente da medicina, sem jamais se casar. Para ela, o casamento seria sinônimo de uma prisão, um contraponto à liberdade de viver na casa da mãe, rodeada pelas irmãs, desenvolvendo tratamentos naturais para quem a cercava e escrevendo um livro autoral sobre as propriedades curativas das plantas. Com um marido, no entanto, Jane passaria a dever obediência a ele e seria limitada às suas vontades, pois nenhum homem seria condescendente com seu espírito revolucionário. Ou seja, Jane tinha muito a fazer até ser surpreendida pela notícia de que havia sido prometida em casamento ao filho de outro Duque, Lorde Guildford Dudley (Edward Bluemel), para salvar as finanças da família e evitar que a irmã mais nova tivesse que se casar com o patrono e atual proprietário do título de nobreza da família, um parente distante, que continuou arcando com o padrão de vida do clã após a morte do pai.

Convicta de não querer um marido, mas, principalmente, que não deseja se casar com Guildford em específico — que possui e alimenta a fama de beberrão, libertino, apostador, preguiçoso e causador de encrencas, alguém com quem definitivamente não quer se aliar —, a mocinha recorre a tudo o que está ao seu alcance para fugir do destino que lhe é imposto.

No mundo de My Lady Jane, além da guerra familiar e política entre os Tudor, motivada pela sucessão ao trono e a tensão religiosa desencadeada pelo Rei Henrique VIII ao romper com a Igreja Católica e se aliar ao Movimento Protestante, existe uma tensão racial entre humanos comuns, denominados verdádicos, e humanos que podem se transformar em animais, os ethianos. Nesta Inglaterra fantasiosa, subsiste uma verdadeira segregação legalmente imposta por Edward VI, que proíbe a existência das chamadas “bestas”, as quais vivem às margens da sociedade, sendo presas e até exterminadas quando descobertas.

Ao tentar fugir com sua amiga e criada, Jane se surpreende ao descobrir que Susanna (Máiréad Tyers) é uma ethiana, a qual compromete ao ser caçada e levada de volta para casa pela própria mãe. Pela primeira vez, a heroína Jane percebe que seu desejo rebelde de viver de uma profissão digna — mas majoritariamente masculina — e pesquisas científicas é egoísta e extremamente privilegiado, pois, enquanto criada, Susanna estava protegida, porém, ao ter a verdadeira identidade revelada, passa a ter que fugir e se esconder com um grupo de refugiados ethianos.

Paralelamente aos dramas pessoais de Jane, o Rei Edward VI sofre de uma doença misteriosa e uma condição de saúde frágil, que apenas se agrava com o passar dos dias. Na iminência de sua morte e sem herdeiros diretos além das irmãs, Mary (Kate O’Flynn) e Elizabeth (Abbie Hern), ele decide nomear Jane Grey como sucessora ao Trono Britânico, o que o leva a negar qualquer ajuda à esperançosa e, agora, decepcionada Lady Jane, com quem cresceu muito próximo na infância, para evitar seu destino. Apesar de seus esforços diretos, Jane não encontra qualquer saída para o casamento com Guildford e a cerimônia acontece, ainda que fique muito claro que ambos não desejam estar amarrados ao compromisso, embora tenham suas motivações para a aceitação do que se revela um mero negócio entre as partes.

Enquanto o jovem casal se entende (ou tenta, dentre muitas tentativas fracassadas), John Dudley vê seu plano de ascender ao trono, ao menos indiretamente, ser posto em prática quando Edward VI é declarado morto e o testamento é aberto para surpreender a todos pela nomeação de seu sucessor: pela primeira vez, o trono do Reino Unido seria passado diretamente para uma mulher, que reinaria por legitimidade sucessória, embora a nova Rainha não fosse nenhuma das irmãs do Rei — contrariando a lógica da sucessão familiar.

My Lady Jane faz um bom uso de verdadeiros boatos e suposições históricas da época, especialmente no que diz respeito à participação da irmã de Edward VI, Mary, na morte do Rei. À época, apesar da condição de saúde frágil do monarca desde o nascimento, cresceu a possibilidade de que este vinha sendo envenenado para ser constantemente afastado de seus compromissos oficiais até ser, realmente, assassinado. Sob a pose de beata fervorosa e possível governante de mãos de ferro, diferente do irmão, ao lado de Lorde Seymour (Dominic Cooper), ela joga o real Jogo dos Tronos: ambiciosa, Mary vê o lugar que é seu por direito lhe ser publicamente negado e deliberadamente direcionado a uma “estranha”, e continua a ativamente conspirar sob o teto do irmão para tomar seu lugar.

Alguns vilões podem ser apenas maus e desprezíveis, o que é bem representado no retrato aguçado da atriz Kate O’Flynn. Uma sátira perigosamente próxima da realidade elitista, exclusiva e excêntrica da nobreza britânica ou, simplesmente, do famoso 1% mais rico do mundo, Mary não teme pelas consequências de suas ações, tanto por ser parte essencial da construção de seu caráter (ou da falta dele), quanto por seu status socialmente relevante. Não há limites para alguém que dispõe de tanto poder, seja para chantagear alguém abaixo de si na hierarquia monárquica, seja para executar ethianos, pessoas diferentes, como se fossem animais, e o ato não passasse de um esporte. As brincadeiras dos milionários, geralmente, custam caro para a plebe, seja no mundo de My Lady Jane, seja na vida real.

Do outro lado, ao mesmo tempo que ascende ao Trono, Jane tem de lidar com o desejo pelo próprio marido, apesar da aversão à instituição do casamento; sua nova posição de poder e a verdade por trás da aliança com a Família Dudley: além de estarem financeiramente arruinados, Guildford é, na verdade, um ethiano, que não detém qualquer controle sobre sua transformação. Diferente dos demais, ele se transforma todos os dias ao amanhecer e só pode voltar à forma humana ao pôr do sol. De repente, a fama noturna do marido passa a fazer sentido, assim como sua motivação para o casamento arranjado — Guildford apenas aceitou o acordo para que Jane, com sua fama de pesquisadora estudiosa e curandeira genial, encontrasse uma cura para sua condição. Assim como os demais, ele vive clandestinamente, embora do lado mais abastado da sociedade. Apenas a família e seu cavalariço conhecem seu segredo mais obscuro, porém, o fato de os ethianos serem legalmente rejeitados, aliado à forma como não detém controle sobre a própria transformação, o torna um eterno frustrado sobre o próprio destino e identidade e um risco à posição inesperada de Jane na sociedade.

Guildford deseja se livrar do fardo de ser um ethiano, mas, como na vida real, em My Lady Jane, é impossível se desfazer de sua própria essência — seja ela sua forma animalesca fantasiosa, sua sexualidade, sua raça, sua nacionalidade ou sua cultura. No mundo, muitas são as formas de segregar os diferentes e relegá-los a pessoas menos dignas. Em uma sociedade heteronormativa, ser LGBTQIA+ é lutar contra o preconceito. Na realidade ariana de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, ser judeu era sinônimo de morte. Em um Brasil criado sob uma recente herança escravagista, ser negro é conviver diariamente com a discriminação racial. E, assim como em My Lady Jane, inexiste maneira de deixar de ser o que se é, verdadeiramente.

Ansiosa por colocar um fim no casamento arranjado e no que ele representa para uma mulher como ela, Jane aceita o desafio de curá-lo em troca do divórcio. Em partes, ela acredita em seu próprio potencial científico, porém, é possível perceber que, ao mesmo tempo, não deseja se prender a uma nova, excitante e diferente prisão: o desejo pelo próprio marido. Ironicamente, Jane é uma heroína de época e revolucionária, que não comete pecado ou indiscrição moral alguma ao se dar conta do que sente por Guildford. Não há nada de errado em desejar alguém, mas, mais ainda, não há nada de errado com o sexo, com a liberdade entre marido e mulher. Para Jane, no entanto, há algo muito pior na intimidade que cresce a cada dia entre ela e Guildford: a possibilidade de, realmente, começar a ter sentimentos por ele.

A produção faz um bom trabalho em contrabalancear as histórias de cada personagem, servindo às suas próprias subnarrativas, mas também à grande narrativa da temporada. Enquanto Jane lida com as próprias questões, políticas e pessoais, tentando se adaptar ao jogo de poder da Corte Tudor, encabeçado por Mary, Lorde Seymour, Lorde Dudley e a própria mãe, Lady Frances Grey (Anna Chancellor), e fazer o que lhe parece mais justo para os súditos, Guildford lida com questões mais intrínsecas à própria identidade e aos traumas de infância.

Ele é um consorte, por acaso, que não deseja se tornar Rei, e a escolha do roteiro de não tornar o poder um grande jogo entre o casal é inteiramente acertada, indo na contramão de outros dramas, que tornariam a sede pelo trono e/ou a submissão de um sobre o outro o centro da narrativa — como The Crown fez com a Rainha Elizabeth II (Claire Foy) e seu próprio Consorte, Philip, o Duque de Edimburgo (Matt Smith); ou A Casa do Dragão (HBO) constantemente faz com Daemon (Matt Smith) e Rhaenyra Targaryen (Emma D’Arcy) .

Na produção da Netflix, o personagem de Matt Smith demonstra extrema frustração pela esposa ser a pessoa mais importante desta relação, aquela a quem ele deve se dedicar e não o contrário, como seria o comum em um relacionamento patriarcal. Enquanto isso, no mundo fictício de Westeros, Daemon, que sempre acreditou poder ser um rei melhor do que o irmão, Viserys (Paddy Considine), se vê submetido à posição de Consorte, amarrado às vontades de sua esposa, mas também, de sua Rainha. Apesar de sua fama como guerreiro, Daemon passa a agir em nome dela, ou seja, um grande soco em seu ego e vaidade.

No mundo de My Lady Jane, Guildford entende, de pronto, que Jane é agora Rainha, e o trabalho que deve exercer é manter-se ao seu lado para apoiá-la, além de tentar a todo custo não prejudicá-la por ser um ethiano, apesar das manipulações constantes do pai. Mesmo como protagonista, Guildford não participa diretamente dos jogos políticos da esposa, que toma decisões estratégicas e tenta sobreviver por conta própria entre os Tudor, um caminho narrativo menos óbvio para fazer com que a personagem cresça diante dos obstáculos sem estar atrelada meramente à motivação romântica.

Quando se trata de narrativas sobre mulheres é muito comum que as produções mainstream se voltem para motivações exclusivamente femininas. São bastante usados os tropos da maternidade, do abuso sexual, do aborto, do amor romântico. Porém, My Lady Jane não cai nessa armadilha: as personagens femininas da série são mulheres sobrevivendo em um mundo masculino, assim, é possível ver Mary sendo ambiciosa, má e trapaceira em nome do poder; Lady Frances como a chefe da família Grey lutando para sobreviver ao jogo, sem ser limitada pelos sentimentalismos da maternidade, mas motivada pela praticidade que também vem com ela, em uma sociedade que conhece bem; e a própria Jane conseguindo equilibrar sua jovialidade com o dever monárquico que lhe é imposto e que aceita com graça, ao mesmo tempo em que começa a descobrir como lidar com o desejo sexual e os sentimentos românticos.

Em entrevista ao The New York Times, Anya-Taylor Joy revelou que é uma “grande defensora da raiva feminina”. Isso porque, durante as filmagens de Furiosa (2024), prequel de Mad Max: Estrada da Fúria (2015), George Miller a orientou a fazer uma atuação mais fria e introspectiva, o que a levou a convencer o roteirista e diretor a incluir um momento de explosão de raiva em determinado momento do filme, pois mulheres são mais complexas e possuem mais emoções do que a comum fragilidade retratada em tela: “Não estou promovendo a violência, mas estou promovendo a ideia de mulheres serem vistas como pessoas. Temos reações que nem sempre serão elegantes”. 

Na produção do Prime Video, as mulheres são muitas e, provavelmente, a riqueza de personalidades bem exploradas e motivações diversas — sejam elas moralmente questionáveis ou nobres — se dá pela maioria feminina envolvida em sua criação, pois, dos onze profissionais creditados em roteiro, dez são mulheres. Por isso, a protagonista é sensível, mas também determinada; justa, mas muito impulsiva; rebelde, mas jamais fria, o que torna My Lady Jane extremamente interessante de se acompanhar. Há alma e cuidado no que, em muitos casos, é apenas protocolar.

Com o boom das comédias românticas, nas telas e na literatura, é comum a utilização de alguns tropos de roteiro que chamam a atenção do público: o enemies to lovers [inimigos a amantes], o casamento arranjado, o age gap [diferença de idade], o friends to lovers [amigos a namorados], o triângulo amoroso, o fake dating [relacionamento falso], dentre outros. A série cumpre as maiores exigências de algumas dessas convenções de gênero, mas, de alguma forma, não soa como se se tratasse conveniência de roteiro. Pelo contrário, por ter escalado atores relativamente desconhecidos do grande público, Jane e Guildford exalam química em todas as cenas e o desenvolvimento do romance deixa de ser robótico — como em muitas comédias românticas recentes — para ganhar o devido peso na trama, sem adiantar, rotular ou segurar demais os acontecimentos, em um ritmo perfeito.

Como se trata de uma produção que se propõe a revisitar a história desses personagens, a primeira temporada cobre os eventos da real e muito breve ascensão e queda de Lady Jane Grey ao Trono do Reino Unido, embora o faça por motivações distintas. Quando decide reverter as leis de segregação dos ethianos na sociedade, em uma tentativa de se tornar uma monarca conciliadora de seu povo, a nova Rainha clama para si todo o ódio da elite, o que leva a Princesa Mary a obter o apoio de grande parte dos nobres, passando a reunir aliados para, de fato, tomar o Trono, o que faz sem grandes dificuldades, condenando Jane à morte por decapitação — assim como em seu real fim quando, depois de meses presa na famosa Torre de Londres (a mesma onde Ana Bolena ficou), Lady Jane Grey deixou de ser uma real ameaça ao seu posto de Rainha Católica fervorosa para se tornar apenas um nome quase esquecido nos livros de História.

My Lady Jane é bem sucedida no que se propõe, ou seja, revisionar e modernizar uma história pouco lembrada, inserindo nomes conhecidos em uma nova realidade, bem como, conferindo personalidade e humanidade a grandes personagens da História através de uma narrativa dinâmica e pop, com uma narração nada protocolar, a exploração e desmistificação de comportamentos nada politicamente corretos e uma trilha-sonora tão ousada quanto a protagonista demanda.

Tendo o rock como gênero principal, o departamento musical de Rael Jones (Os Miseráveis/007 – Quantum of Solace), está inteiramente representado por mulheres, com uma trilha-sonora oficial apenas de covers, com versões de “The Chain” do Fleetwood Mac, “Tainted Love” de Marilyn Manson, “Wild Thing do The Troggs” e “Stayin’ Alive” do Bee Gees, dentre outras originais como “Wet Dream”, do duo britânico Wet Leg, “All Day and All of the Night” de Kate Nash, “Wicked Ones” de Dorothy, “So Sweet I Could Die” de Lucia & The Best Boys, dentre outras, que se encaixam perfeitamente no tom, ritmo e personalidade que a produção impôs à sua narrativa, o que vale a pena conferir.

Importante, ainda, destacar o ótimo trabalho de figurino de Stephanie Collie, que trabalhou em Peaky Blinders (Netflix) e no recente Argylle (2024), e claramente detém cuidado ao estabelecer as personalidades de cada personagem através de suas roupas. Enquanto Guildford é mais informal com sua típica versão de jaqueta de couro dos anos 1500, a irmã de Jane, Katherine Grey, demonstra ser mais angelical e seguidora de regras do que a protagonista, optando por cores claras e modelos mais comuns para não se destacar — diferente de Lady Frances que, viúva, tem em seu guarda-roupa cores mais vivas e ajustadas ao corpo. Nenhuma delas, no entanto, chega ao ponto de demonstrar tanta rigidez através da imagem quanto a Princesa Mary, que utiliza tecidos mais pesados, de texturas muito bem trabalhadas, utilizando modelos tão bem ajustados ao corpo que chegam a emanar certo desconforto, além de inspirar alguma austeridade luxuosa, que advém de sua posição de poder familiar.

São diversos os detalhes que transformam My Lady Jane em uma série que vale a pena acompanhar. Recém-lançada, trata-se de uma produção que, por esmero, faz com que o público se importe com o destino daqueles personagens, sejam eles meros coadjuvantes, que roubam a cena com pouco, sejam eles os protagonistas, Lady Jane e Guildford Dudley, que retratam um dos “enemies to lovers” mais inspirados dos últimos tempos.