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Com Amor, Simon: a vida é uma montanha russa

Quem consome e estuda arte se depara com Grande Debates que nunca chegam a nenhuma conclusão. Talvez o maior deles seja: para que serve a arte? Alguém fora desse meio pode achar estranho várias pessoas que discutem a vida inteira sem nunca chegar a um acordo, mas é exatamente por isso que é legal discutir a respeito. Se não ser para nada, por que falar sobre? Se não serve para nada, por que a arte nos toca tanto? Se não é para nada, por que nos identificamos tanto com ela? Por que queremos ir ao cinema e ter quadros na parede?

Pensar fora do eixo existência/utilidade é um tanto difícil, mas a reflexão vale a pena. Em tempos como os nossos, em que os grandes debates giram em torno de racismo, machismo, homofobia, falta de representatividade, assédio e outros tantos tópicos sobre os quais ninguém falava direito até pouco tempo — e como todos eles se relacionam com a arte. É incrível como algo que aparentemente não tem a menor utilidade prática pode despertar tantas discussões válidas e nos ensinar tanto sobre como enxergamos o mundo e como podemos contribuir para melhorá-lo. A arte é, também, o que mais nos diferencia de outros animais, o que temos de mais humano. Arte é linguagem, é como nos comunicamos uns com os outros, é como sabemos quem somos. Talvez existir seja a maior utilidade da arte.

Como arte também é expressão e linguagem, muitas vezes ela incorpora discursos políticos e com isso vem outra questão sempre debatida e nunca concluída: existe arte política? Ou arte política é arte? Ou até: toda arte tem que ser política? Quando um filme retrata a história de um adolescente gay, esse filme é necessariamente político? Adaptação do romance young adult, Simon Vs. A Agenda Homo Sapiens, Com Amor, Simon conta a história de Simon (Nick Robinson), um garoto como qualquer outro garoto da classe média-alta estadunidense. Mas Simon tem um segredo: ele é gay e ainda não contou isso para ninguém.

Atenção: este texto contém spoilers!

Com Amor, Simon

Uma das melhores cenas do filme — e também a mais engraçada — é quando Simon, refletindo sobre o processo de se assumir gay, para e pensa: por que apenas quem não se encaixa no padrão “heterossexual” tem que “sair do armário”? Por que a heterossexualidade é normalizada e não a homossexualidade ou a assexualidade? Ou por que a gente ainda não normalizou a ideia que a sexualidade é um espectro e não uma caixinha? Na cena, os amigos de Simon se assumem como heterossexuais para os pais, que reagem de maneiras distintas, mimetizando reações padrões de pais de filhos não-heterossexuais quando eles “saem do armário”. É leve, engraçado e também, de maneira muito simples, coloca em questão valores e tradições muito enraizadas na nossa cultura.

O que não é falado no filme é o outro lado de assumir sua identidade: nem todo mundo pode contar essa história. Ainda vivemos num mundo onde ser é um privilégio. Com Amor, Simon, não pretende ser um filme sobre lutas políticas, tragédias e superação. É sobre dor e crescimento, mas dentro de uma realidade específica. A narração no início do filme já diz: Simon é um garoto como qualquer outro garoto privilegiado dos Estados Unidos; ele tem uma casa, quarto decorado, carro próprio, amigos, pai e mãe que o amam. Apenas alguém que tem a segurança e a rede de apoio que Simon tem pode se questionar sobre o que é normalizado ou não na sociedade, pois quem não tem, precisa lutar para existir.

Por outro lado, é sempre preciso lembrar que qualquer filme de um grande estúdio sobre um personagem que foge da norma homem/mulher-branco-cis-heterossexual é um passo importante para frente e merece ser celebrado como tal. Simon pode ter uma vida de privilégios, mas isso não torna sua história menos válida. Vivemos numa época estranha, em que não há muito conteúdo sendo produzido por pessoas não-heterossexuais o suficiente para ser normalizado, mas também vivemos numa época em que filmes como Me Chame Pelo Seu Nome e Com Amor, Simon são feitos e recebem grande atenção midiática sem necessariamente um propósito político.

Uma crítica do A.V Club, apontou que Com Amor, Simon não fez nada além do que que séries como Degrassi não fizeram antes, pois o filme não pretende ser nada mais do que uma comédia romântica sobre um menino gay durante o último ano de escola. Pode ser um argumento válido, mas também é igualmente válido ver o filme por ele mesmo. Nem todas as histórias precisam ser revolucionárias e originais para valer a pena contá-las. A arte pode ajudar a mudar o mundo, mas também serve como entretenimento. Às vezes, tudo o que uma pessoa precisa é entrar no cinema, dar risadas, se emocionar com o filme e voltar para casa mais leve.

Com Amor, Simon

Simon não contou para ninguém sobre sua sexualidade, até que ele vê um post anônimo no blog dos estudantes da sua escola sobre um menino também gay e que, como ele, não se assumiu. Simon então cria um codinome, Jacques, e começa a se corresponder com Blue. É com Blue que Simon direciona seu discurso no início do filme, é ele o seu interlocutor e igual. Os dois vêm de boas famílias, com boas casas, boa vida, mas ambos guardam um segredo. O próprio Simon se questiona sobre a importância de seu segredo. Ele não quer que as coisas mudem. Ele não quer que seus pais o olhem de maneira diferente, nem seus amigos. Ele gosta da sua vida e quer continuar com ela. Com o tempo, Simon percebe que não é o único a guardar segredos. Blue também tem medo de revelar sua identidade, e seus amigos, apesar de se identificarem como heterossexuais, também escondem seus sentimentos. Na escola, Ethan (Clark Moore) é o único menino gay assumido e Simon projeta nele toda a autoconfiança e coragem que ele acha necessária para revelar sua identidade, mas até Ethan tem suas inseguranças e segredos.

Como um bom filme sobre adolescentes, Simon está em construção e é através de uma metáfora de Blue em seu post, que Simon consegue verbalizar o que sente e racionalizar a partir disso: a vida é como uma montanha-russa; às vezes estamos felizes, lá no alto, outras vezes, estamos tristes e perto do chão. Mas logo subimos. E descemos de novo. Simon está feliz com sua família e amigos. A vida que ele tem o satisfaz, mas ele também teme estar vivendo uma mentira. Ele quer contar para todos o que sente, mas não sabe como nem quando. Quando a troca de e-mails entre Blue e Simon (Jacques) se intensifica, os dois encontram no outro o apoio que precisavam. Simon começa a procurar na escola rostos acolhedores, que poderiam ser Blue, mas nunca tem informações suficientes para solucionar esse mistério. Mesmo sem um rosto, ele se apaixona por seu interlocutor e cada vez fica mais difícil sustentar seu segredo.

Com Amor, Simon

Um dos momentos de maior tensão do filme é a conversa entre Simon e sua mãe (Jennifer Garner) depois de ele falar a verdade para a família. Ele pergunta se a mãe já sabia, se ela tinha conseguido adivinhar que seu filho é gay, ao que ela responde que não, mas que sabia que ele tinha um segredo. Quando Simon se abre para os pais, ele logo acrescenta: “não quero que vocês me vejam diferente”. Sua mãe retoma essa conversa e diz para Simon que ele não está diferente sob seus olhos, e que agora ele pode ser ele mesmo de novo, sem esconder nada. É bonito ver na tela uma conversa franca entre dois personagens que se amam e que querem entender um ao outro. É poderoso ver um adolescente assumindo sua identidade sem nenhuma repressão dos pais. Mesmo fictício, Simon mostra que finais felizes são possíveis.

Apesar do filme ter outro nome, o livro que originou sua história, Simon Vs. A Agenda Homo Sapiens já dá uma grande dica sobre a trajetória de seus personagens. Simon sabe muito bem quem ele é, apesar de não saber ainda como se abrir para as outras pessoas. Simon ainda está descobrindo como existir no mundo e a forma com que ele fica em paz consigo mesmo e se sente pronto para assumir à todos na escola que é gay é, também, a forma que ele encontra de ser mais humano. Simon não está indo na direção contrária da sua natureza, pelo contrário: ele está indo ao encontro dela. Simon está aprendendo a existir, a entender quem ele é e o que ele sente e, assim como todos os outros adolescentes do mundo, Simon e sua história são únicos. Tudo o que Simon precisa é de alguém como ele, alguém que entenda como ele se sente deslocado, mesmo que sua vida seja perfeita. Simon precisa de alguém para se identificar e é isso que encontra em Blue. Blue, por sua vez, valida a história de Simon apenas por existir, pois é só quando Simon encontra seu igual, alguém que compartilha suas experiências, é que ele consegue contar a sua própria história.

Greg Berlanti, diretor do filme, escolheu não sair do molde de outras produções centradas em adolescentes, mas isso não é necessariamente ruim. Ao contrário, Com Amor, Simon mostra que é possível contar novas histórias com uma fórmula já conhecida. Não é à toa que existe um grande apelo para os filmes coming-of-age: as pessoas gostam, se identificam e se emocionam. Nick Robinson, em entrevistas, disse que um dos grandes feitos do filme é iniciar conversas que não aconteceriam com tanta naturalidade. O filme pode ser uma comédia romântica e ainda tocar em assuntos sérios, afinal, não somos seres unidimensionais e somos capazes de ver sentido nas coisas simples. Talvez o grande feito de Com Amor, Simon seja a sua simplicidade, afinal.

Se o propósito da arte é o de existir, que bom que existem filmes como Com Amor, Simon, que é generoso com seus personagens e que respeita suas histórias. Se o propósito da arte é o de existir, espero que alguém encontre em Com Amor, Simon o que Simon encontrou em Blue.

2 comentários

  1. Eu estou na metade do livro agora, porque queria muito lê-lo antes de assistir o filme, e estou adorando. Fiquei empolgada desde o início quando vi que o Nick interpretaria o Simon.

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