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As mulheres descolonizadas em Niketche: uma história de poligamia

Há um amplo sentido muito forte na literatura escrita por mulheres que nasceram em nações que foram colonizadas. Tal como seu país, a sua liberdade se faz em uma luta constante, e é neste cenário que se passa a história de Niketche: Uma História de Poligamia, escrito por Paulina Chiziane, uma das primeiras escritoras oriundas de Moçambique. Suas personagens femininas trazem vivências que se misturam à história de seu país, nas quais os anos de um relacionamento opressor, marcado por traições, se assemelha a um regime entre colonizador e colonizado.

A autora nasceu em Manjacaze, uma vila moçambicana. Como muitos escritores do seu país, participou ativamente da vida política, sendo integrante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), um movimento que tinha como pauta principal a libertação de Moçambique do domínio português. Esse cenário de luta deixa marcas tanto na história de sua nação quanto na sua escrita. Dessa forma, é possível definir sua escrita como decolonial, pois coloca como centro de suas narrativas a mulher negra e moçambicana.

Embora seja uma das primeiras mulheres a publicar romances em seu país, Paulina Chiziane não se vê como romancista, mas sim uma contadora de histórias. Suas narrativas ecoam histórias contadas ao redor da fogueira, histórias de mulheres do seu cotidiano, mulheres reais. Não muito fã de definições, pois, por vezes, elas podem limitar a produção artística, Paulina Chiziane faz uma literatura de peso, sendo a primeira escritora moçambicana a ganhar o Prêmio Camões no ano de 2021, maior premiação da literatura escrita em língua portuguesa. Em 2003, o seu romance Niketche: Uma História de Poligamia ganha o Prêmio José Craveirinha, que homenageia escritores moçambicanos. São as histórias passadas de forma oral que ganham corpo em suas palavras e conquistam espaço na academia.

“Mas o que é o romance para quem vem de uma cultura banto? A minha língua portuguesa é produto dessas duas misturas. Se eu aceitasse ser romancista, aqueles especialistas do romance, no estilo europeu, eles iriam colocar a autoridade deles sobre a minha vida. Eu disse não. O que eu escrevo é parecido com o português, é parecido com o romance, tem muita proximidade. Mas, por favor, me deixa escrever como eu quero. Não sou romancista. Conto histórias.” — Paulina Chiziane em entrevista ao Estado de Minas

Em Niketche, somos sensibilizados pela narrativa pessoal de Rami, uma mulher que se sente abandonada por Tony, seu marido, que possui não uma, mas várias outras mulheres, diferentes núcleos familiares com cada vez mais filhos que quase nunca veem o pai. De início, Rami busca entender o que há de errado com ela. Conforme os anos passam, o espelho lhe devolve uma imagem abatida, cansada do cotidiano de uma mulher deixada de lado. Seus esforços para tentar “salvar” seu casamento são sempre em vão, conforme ele avança em busca de mulheres cada vez mais novas e belas.

As incontáveis traições são combustível para o embate travado entre o coração de Rami e a cultura da poligamia, algo presente nas raízes de seu país muito antes da dominação do cristianismo. Ela, uma mulher criada sob os preceitos do cristianismo, se sente dividida acerca de tal hábito, embora se sinta, em muitos momentos, desamparada em todos os aspectos, inclusive o da religião.

“O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa — sua esposa — intercederia por nós. Através dela pediríamos a benção de uma vida em harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.” 

A narrativa, nesse momento, faz um interessante paralelo acerca da condição feminina nas diferentes regiões de Moçambique. Uma de suas “rivais”, amante de Tony, é uma mulher do norte, e a discrepância entre elas revela um passado marcado pela colonização. Enquanto a região sul, de onde Rami vem, foi muito mais influenciado pelo patriarcalismo europeu, na região norte a cultura local resiste, com certo protagonismo matriarcal. No sul, as mulheres são marcadas pela submissão, enquanto no norte, sua sensualidade é cultuada.

“No sul a sociedade é habitada por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. […] No norte ninguém escraviza ninguém, porque tanto homens quanto mulheres são filhos do mesmo Deus.”

O momento em que Rami reconhece a realidade em que as outras mulheres de Tony vivem é marcante para o desenvolvimento da história. Essas mulheres, que representam vários elementos da cultura de seu país, de origens distintas, vivem em uma situação de extrema vulnerabilidade social. É assim que Rami não mais as enxerga como rivais, mas como iguais. Como a “primeira mulher”, a mais experiente, Rami torna-se uma espécie de mãe para elas. Uma matriarca. Sua palavra faz com que Tony seja obrigado a cumprir com seus deveres de marido e pai, e a união delas faz com que ele se sinta ameaçado, sem o poder que antes possuía.

Niketche

Assim como uma ex-colônia que põe fim ao domínio político e econômico da sua metrópole, o momento de maior força e emancipação dessas personagens é quando superam a vulnerabilidade econômica. Com sua própria força de trabalho, garantem o que está faltando em suas casas, para seus filhos, para a imagem da mulher que querem encontrar no espelho. Percebem que sua rivalidade só alimentava o sistema patriarcal que dita o que devem vestir, o que devem comer, o que devem dizer e sentir.

Paulina Chiziane faz uma literatura extremamente engajada, fruto de um reflexo político que muito marcou a produção literária de seu país. Os escritores, com suas palavras, combatem a força do imperialismo e, com isso, buscam trazer os elementos originários de seus povos para o mundo da palavra. Nesse cenário, de reconstrução de uma nação, ter a representatividade da luta feminina contra costumes patriarcais certamente é de um poder, e ela sabe atribuir tal aspecto na construção de mulheres fortes, mulheres reais, mulheres as quais cresceu ouvindo suas conversas, seus anseios, suas histórias.

“ — As mulheres, de mãos dadas, podem mudar o mundo, não é, Rami?”


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