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4 vezes em que Um Lugar Chamado Notting Hill causou desconforto

Comédias românticas costumam ser o tipo mais “inofensivo” de filme que existe. Sem questões polêmicas, sem muita problematização (pelo contrário), sem nada que possa causar desconforto. É o tipo perfeito de filme para sentar, colocar o cérebro em modo de descanso e esquecer (ou tentar) por aproximadamente 90 minutos que até a própria ideia de relacionamento romântico pode ser questionável sob alguns ângulos. Felizmente, acontece de vez em quando de algum desses filmes trazem uma surpresa bem-vinda com alguma alfinetada certeira a algum ponto importante.

Um Lugar Chamado Notting Hill é, há anos, a minha comédia romântica preferida. Mas foi só das últimas vezes que reassisti ao filme que me dei conta que ele traz algumas críticas pontuais e certeiras a comportamentos problemáticos muito naturalizados na nossa sociedade. Críticas desse tipo sempre trazem algum desconforto e identificação, e por isso mesmo são um ótimo gancho para pensar o mundo em que vivemos.

O que eu vou fazer hoje, então, é listar quatro momentos em que Notting Hill colocou o dedo na ferida (em ordem cronológica).

A competição do sofrimento

Um luga chamado Notting Hill

A história todo mundo conhece. Anna Scott (Julia Roberts), atriz americana famosa, está em viagem a Londres e entra por acaso em uma livraria especializada em livros de viagem em Notting Hill. Coincidentemente, a loja pertence a William Tacker (Hugh Grant), um inglês fofo e solitário desde que foi abandonado pela esposa. Algumas confusões depois, os dois se beijam e ela aceita ir a um encontro com ele — no jantar de aniversário da irmã dele, na casa de um casal de amigos.

Deixando de lado a situação obviamente constrangedora de ter um primeiro encontro envolvendo quatro outras pessoas, tudo parece correr relativamente bem. Até que o jantar está quase encerrado e eles inventam uma ideia incrivelmente estúpida para decidir quem tem direito ao último pedaço de brownie: um concurso de quem é o maior “perdedor patético” entre eles. Um por um, os fracassos e sofrimentos pessoais de todos são listados e comparados, tudo mais ou menos na brincadeira. Chegam à conclusão de que a medalha de ouro do sofrimento vai para o próprio Will — um homem branco hétero de classe média e dono do próprio negócio. Uma vida difícil.

Então Anna resolve reivindicar o direito de entrar na disputa também, e recebe olhares pasmos de todos na mesa. Qual poderia ser a grande dificuldade na vida de uma estrela de cinema internacional? Ela então lista a série de imposições patriarcais que ela sofreu durante a vida e tudo ao que teve que se submeter para chegar até onde chegou na vida e na carreira: dietas, cirurgias plásticas, o fato de que a carreira dela está limitada ao tempo em que ela for considerada bonita e jovem pela sociedade. Ela se emociona, nós nos emocionamos, o constrangimento senta no meio da mesa para distribuir a torta de climão para todos nós. Aí alguém resolve empurrar tudo para baixo do tapete e salvar a noite. A verdade dói.

O que quero dizer? Que a mulher branca e rica de um país desenvolvido merece ganhar o título de Pessoa Mais Sofredora do Universo? Obviamente que não. Mas o dinheiro e o status social não impedem que ela seja afetada em algum nível pela misoginia institucionalizada e onipresente na nossa sociedade. Aquela mesma, que a gente prefere fingir que não existe. E essa cena é maravilhosa demais por jogar isso nas nossas caras.

É sempre brincadeira

Um lugar chamado Notting Hill

Seguindo em frente, incrivelmente parece que o primeiro encontro peculiar foi bem sucedido. Anna adia sua viagem de volta para que eles possam sair de novo no dia seguinte, e ter um encontro mais decente e privado. Cinema e jantar, o clássico adolescente. Tudo corre muito bem, até que um grupo de homens na mesa do lado começa a falar em um tom de voz nada discreto de gozação sobre ninguém menos do que a própria Anna Scott (sem saber que ela está ouvindo).

Obviamente que desse buraco só podem sair muitos erros. Fazendo jus a todas as nossas expectativas, a conversa não demora um minuto para descambar para a baixaria. Com absolutamente zero fundamentos, eles julgam a atriz e sua sexualidade com base em nada mais do que suas especulações completamente infundadas. Ela é uma mulher bem sucedida e em evidência, obviamente que só pode ser uma vagabunda qualquer. Nada distante do pensamento padrão vigente.

Enquanto isso, nós compartilhamos o sentimento de vergonha e mortificação que ela sente ao ouvir tudo aquilo. Mesmo que não seja verdade, mesmo que aquelas palavras digam mais sobre eles do que sobre ela. Porque toda a nossa socialização é baseada em um constante ciclo de culpa e vergonha — não só pelo que fazemos, mas por ser o que somos.

“Lá vai aquele ator famoso com a namorada gorda”

Um lugar chamado Notting Hill

Ao final do encontro do jantar, depois de dar uma resposta desaforada e altamente merecida para o grupo de babacas do restaurante, Anna convida Will para subir até o seu quarto. Ele aceita. Chegando lá, os dois se deparam com ninguém menos que o namorado dela que resolveu fazer uma aparição surpresa. Ele não percebe o que realmente está acontecendo, e a situação constrangedora nesse ponto nem precisa ser explicada. Mas vocês devem imaginar que não é pelo óbvio que essa cena faz parte dessa lista.

Para encobrirem a história verdadeira, Will se apresenta como serviço de quarto. Mais situações constrangedoras, e Jeff (Alec Baldwin) pergunta a Anna o que ela ia pedir para comer, no fim das contas. Ela fala que ainda não se decidiu, e ele acha apropriado “brincar”, ainda por cima na frente de estranhos, recomendando que ela não exagerasse. “Eu não quero que as pessoas falem ‘lá vai aquele ator famoso com a sua namorada gorda‘”. Claro que não, não é mesmo?

Além da gordofobia descarada da frase, ela coloca a mulher na posição de acessório de moda: o valor dela na relação é meramente decorativo, e ela só vale enquanto estiver dentro dos padrões de beleza, fora dele ela seria apenas um motivo de vergonha. Homens ditam como deve ser nossa aparência todos os dias — tanto em nível coletivo, determinando os padrões de beleza que escravizam as mulheres, quanto individualmente, achando que podem criticar a roupa que a mulher veste, comentar os quilos ganhos, o excesso ou falta de maquiagem. E é mais uma vez a consciência do absurdo da frase dita sem nenhum constrangimento, e do quanto ela espelha a nossa realidade, que causa o desconforto geral.

Uma diferença básica de perspectiva

Um lugar chamado Notting Hill

Mais adiante, chegamos a mais um momento digno de nota. Depois do incidente do namorado surpresa, Anna vai embora e Will fica, curtindo a fossa. Alguns meses depois, uma Anna chorosa bate na porta dele, sem aviso prévio, quando um dos maiores medos da maioria das mulheres se concretiza na vida dela: vazaram fotos nuas que ela tirou anos antes; antes da fama, em um momento de necessidade (olha que ótimo exemplo de como é falho o “consentimento” comprado).

As fotos estão em todos os jornais e ela está passando pelos momentos de desespero que todas nós (por experiência própria ou alheia) conhecemos. Will a acolhe, eles retomam os laços e passam a noite juntos. Na manhã seguinte, quando tudo parece bem e ela está conformada com a situação, uma surpresa: a imprensa descobriu onde ela está e dezenas de jornalistas se amontoam em frente à casinha de porta azul em Notting Hill.

Obviamente todo o desespero que parecia controlado volta à tona. Nervoso, Will faz um comentário muito infeliz sobre como ela precisa ter perspectiva, que afinal aquilo tudo não é o fim do mundo, tem gente passando fome na África e coisas do tipo. Sempre fico impressionada sobre como as pessoas começam a se preocupar com a fome na África em momentos convenientes.

O que vem a seguir é Anna jogando na cara dele que aquilo tem impacto direto na carreira dela, e que ela é obrigada a lidar com aquele tipo de coisas há dez anos, então obviamente a perspectiva deles não é a mesma. Fica no ar o fato de que ele é homem, e um nude ou uma foto com pouca roupa na casa de uma mulher aleatória nunca teria o mesmo impacto para ele que tem para ela, mulher. É um caso clássico de falsa simetria. Uma mesma situação pode ter impactos completamente diferentes na ida de pessoas diferentes, o que é hipócrita é minimizar o impacto de uma invasão de privacidade desse nível em uma sociedade que julga e controla perpetuamente o corpo e a sexualidade femininas.

6 comentários

  1. Nossa! Será que só eu enxerguei essas cenas já na primeira vez? Acho até que teve mais alguma cena bem sacada. Mas, como faz tempo que assisti, não me lembro mais.

  2. Parabéns pelo olhar atento e problematizador. Confesso que só prestei atenção a metade dessas situações.

  3. Esse filme é maravilhoso, vejo essas cenas como uma crítica ao nosso comportamento, o filme apesar de antigo retrata bem os dias atuais, infelizmente os pensamentos não mudaram muito.

  4. Normalmente não curto muito comentar em sites mas, sempre tem uma mas, você tem razão. São cenas que passam de certa forma batidas, não a cena em si mas o problema que ela apresenta. Obrigado por lembrar desses detalhes gigantes.

  5. O filme apresenta duas perspectivas, e não apenas uma como refere o texto. Mas enfim, ele de fato é bastante reflexivo…

  6. Gostei das pontuações e análises e vale dizer ainda que o roteiro se constrói com ironia e fleuma típicas do melhor humor inglês (acho que nunca ri tanto assistindo a outros filmes). Também as idas e vindas na relação do casal protagonista até a decisão de ficarem juntos em definitivo me parece totalmente inspiradas no tipo de aproximação cortês da elite inglesa do século 19 registrados com maestria inesquecível nos romances de Jane Austen e congêneres.

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