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O Diário de Myriam: a guerra na Síria pelos olhos de uma menina

Quando Myriam Rawick começa a escrever em seu diário, em 2011, ela tem apenas oito anos de idade e as manifestações contra o presidente da Síria, Bashar al-Assad, haviam apenas começado em Alepo, sua cidade natal. Myriam vê sua rotina se transformar aos poucos e não é capaz de entender completamente o que está acontecendo, mas ela sente o medo criando raízes profundas em sua casa, na escola, em seu bairro e nela mesma. Sua infância estava prestes a terminar e ainda que não compreendesse os motivos pelos quais aconteciam manifestações pela cidade e por que os muros de sua escola apareciam pichados todas as manhãs, ela podia sentir que a vida como conhecia estava por mudar.

Habitada desde 5.000 a.C, Alepo é considerada uma das cidades mais antigas do mundo, fato comprovado por arqueologistas que, por meio de escavações, descobriram alguns dos edifícios residenciais mais antigos do mundo em Tell Qaramel, 26 quilômetros ao norte de Alepo. Localizada entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Eufrates, Alepo sempre possuiu uma posição comercial importante — era o entreposto da rota da seda, entre a Ásia e a Mesopotâmia — e é fruto de aspectos históricos e geográficos que a destacaram entre as outras cidades da região. Ainda que a construção do Canal de Suez, em 1869, tenha sido responsável por marcar o declínio de Alepo como rota comercial, ela sempre será lembrada como uma das maiores cidades do Império Otomano, atrás apenas da Constantinopla e do Cairo. Localizada ao norte da Síria, Alepo já fez parte do império de Alexandre, o Grande, foi governada por gregos e por romanos, além de ter sido conquistada por árabes e mongóis. Seu passado é de lutas, mas também de cultura e arquitetura ímpar.

E é nessa Alepo que a pequena Myriam vive. Uma cidade de cheiros e sabores, uma cidade de malabi, damascos, amêndoas e sorvete de flor de laranjeira. A Alepo de Myriam, antes da revolta popular que teve início após uma série de reformas liberais lançadas de maneira desastrosa pelo governo sírio, é um apanhado de culturas e religiões, de amigos e de família, de uma infância tranquila e saudável passeando com os avós, das missas assistidas na Igreja de São Dimitri e das aulas na Escola Wouround — a “escola das rosas”. É a Alepo de Judi, a melhor amiga de Myriam, que é muçulmana e vive no bairro de Hamidyeh, mas também é a Alepo do irmão Georges, dos Maristas. Alepo é uma cidade de contrastes e é a cidade em que a família de Myriam, cristã de origem armênia, vive há um século desde que fugiram do genocídio perpetrado pelos turcos em 1915, momento que ficou conhecido na História como o Grande Exílio, o Safa Barlik.

O Diário de Myriam

Myriam vive com os pais e a irmã caçula, Joelle, no bairro de Jabal Sayid, na parte norte de Alepo. Em O Diário de Myriam, publicado no Brasil pela DarkSide Books, a primeira entrada é o dia 12 de junho de 2011 e, na vida da menina, era apenas mais um dia de primavera como qualquer outro. Sua avó, Tita, a busca para um passeio enquanto seus pais levam Joelle a uma festa de aniversário. Myriam e a avó tomam sorvete no Haffar, a melhor sorveteria de Alepo, de acordo com a menina, e bebem suco de damasco no terraço ao lado da sorveteria. Myriam narra seu dia a dia em Alepo, suas aulas na escola do bairro, as idas e vindas com seus pais, descreve o mercado de Abu Yasser e os aromas de café, tabaco e chá de maçã que saem do Café Ammouri. Aos poucos, no entanto, a narrativa da rotina infantil começa a mostrar sinais de que as coisas na Síria estão mudando de figura, seja por meio das manifestações que começaram em Damasco, distante 360 quilômetros de Alepo, ou quando o pai de Myriam fica muito quieto e concentrado enquanto assiste às notícias na televisão. “A voz disse que estavam acontecendo grandes manifestações em Alepo. Perguntei a papai o que era. Ele me respondeu que isso queria dizer que muita gente ia para a rua por não estar de acordo com o governo do presidente. Parado em frente da TV, ele parecia hipnotizado. Entendi que era importante, pois ele estava quieto agora”.

Na escola, o diretor e as professoras parecem nervosos quando encontram mensagens pintadas em tinta preta no muro da escola: “a revolução continua”, “fora”. Myriam não pode mais ir à escola sozinha, seu pai se preocupa com o que possa acontecer na medida em que as manifestações se tornam mais violentas e avançam de Damasco para Alepo. Grupos formados por centenas de pessoas passam em frente à escola de Myriam gritando que “nós não vamos ceder” e “Deus é grande”, trazendo confusão à cabeça da menina que não entende, ainda, o que é uma revolução. Myriam sente que o clima está estranho quando seus pais começam a ficar apreensivos em casa e, na televisão, vê grupos de pessoas marchando sobre Alepo. Quando sons de tiros no telejornal fazem a menina saltar de susto, sua mãe desliga o aparelho e diz a ela para não se preocupar.

O Diário de Myriam mostra com as cores da inocência infantil o que um conflito armado e uma guerra civil podem fazer à vida de alguém. Nascida em uma família de refugiados, Myriam acabaria por descobrir por conta própria o medo que fez com que seus antepassados fugissem da Turquia, o mesmo medo que faria com que ela, seus pais e irmã, deixassem o bairro de Jabal Sayid, o lugar em que ela nasceu, viveu e que hoje não existe mais. Por meio da perspectiva de Myriam, acompanhamos as marcas que a guerra deixa nas vidas das pessoas, principalmente crianças: a ONU estima que pelo menos 400.000 pessoas morreram e 5 milhões foram obrigadas a fugir desde o início do conflito na Síria, em março de 2011; desse total, 2,9 milhões de refugiados sírios foram registrados na Turquia, e desse montante cerca de 1,3 milhões têm menos de 18 anos. De acordo com a UN Refugee Agency, dois terços de todos os refugiados do mundo vêm de cinco principais países e são eles a Síria, na dianteira, seguida por Afeganistão, Sudão do Sul, Mianmar e Somália.

“Os cheiros, os gostos, a felicidade agora estavam aqui, sob as ruínas, abafados sob os tetos desabados.”

Em seus escritos, Myriam é capaz de evocar as memórias de uma infância segura e feliz ao mesmo tempo em que demonstra como, aos poucos, manifestações contra o presidente tomaram proporções gigantescas e se transformaram em uma batalha de interesses regionais e globais. Myriam não tinha como saber à época, mas países como Arábia Saudita, Qatar, Turquia, Estados Unidos e Rússia tinham interesses próprios a defender, o que faria com que a guerra civil síria ganhasse contornos diferentes, assumindo tons cada vez mais escuros dependendo de que maneira determinados grupos apoiavam esse ou aquele viés. O que ficava para Myriam, e todos os outros residentes de Alepo, no entanto, era um sofrimento sem fim marcado por longos períodos sem água potável e energia elétrica, escassez de alimentos, noites ininterruptas com bombas e mísseis caindo sobre os bairros da cidade, familiares sequestrados e mortos, famílias inteiras abandonando suas casas em um dos maiores êxodos já registrados desde a Segunda Guerra Mundial. Em determinado momento de seus relatos, Myriam diz que ela e sua família já haviam se acostumado com o som que os aviões fazem ao atravessar o céu, de madrugada: “é como se alguém desse um soco enorme no chão o tempo todo, fazendo as paredes tremer”. O som não é mais motivo de nota ou susto para Myriam que só presta atenção ao barulho quando ele é forte demais, como na noite do dia 24 de novembro, quando o céu ficou vermelho e ela e a família se reuniram à janela para observar.

Foram cinco anos vivendo entre brincadeiras infantis, lápis de cor, boletins escolares, mísseis e bombas. Cinco anos em que Myriam assistiu, pedacinho por pedacinho, a vida como conhecida ser destruída e modificada, levando com ela sua inocência, sua infância e seu lar. Alepo se transformou em uma cidade fantasma, não havia mais ninguém além de senhoras de preto que andavam em seu luto, à deriva pelas ruas, e pessoas armadas. “Quando a gente abre as janelas, não tem um barulho de vida sequer. Não existem flores, não existem cores e até os pássaros já nos deixaram”.

Quando Alepo foi finalmente libertada das mãos dos rebeldes, em abril de 2017, pouco restava da cidade que Myriam conhecia. Retornar ao bairro de Jabal Sayid tinha um sabor amargo que a menina não sabia definir muito bem, uma mistura de tristeza e esperança por dias melhores, a vontade de recomeçar em meio aos prédios em ruínas e às paredes marcadas pelos bombardeiros e artilharia pesada. Naquele abril, havia a esperança de que a guerra estava, finalmente, chegando ao fim e que os dias piores haviam passado — mas não foi isso o que aconteceu. A vitória em Alepo foi apenas um interlúdio de uma guerra que já dura oito anos e não tem perspectiva de chegar ao fim. Philippe Lobjois, repórter de guerra francês que ajudou Myriam a revelar sua história ao mundo, visitou a cidade apenas alguns dias após a menina terminar o relato em seu diário e presenciou o misto de emoção e medo que tomava conta dos sobreviventes. “Nesta metade de 2018, não há nenhuma expectativa de que a paz retorne. Pior. Antigos atores que atuavam apenas nas sombras decidiram assumir papel protagonista nessa disputa que definirá, invariavelmente, o futuro do Oriente Médio”.

O Diário de Myriam precisa ser lido, e sua voz, ouvida. Assim como aconteceu com Anne Frank, setenta anos antes, Myriam transformou-se na porta-voz de um mundo em ruínas, o símbolo de uma infância marcada pelo medo, pela tristeza e pela angústia. Em um momento muito significativo de seu diário, Myriam relembra uma conversa que teve com o irmão Georges onde diz que não tem vontade de perdoar aqueles que fizeram com que ela, sua família, vizinhos e amigos, sofressem. Em sua enorme tristeza, Myriam diz que “foram eles [rebeldes] que decidiram atacar Alepo, […] foram ele que sitiaram Alepo, bloqueando a estrada e nos deixando passar fome durante meses. Foram eles que atacaram nosso bairro e nos obrigaram a abandoná-lo”. Após ouvir a menina com cuidado, irmão Georges diz que para que todos possam viver juntos novamente, será preciso que haja uma reconciliação. E Myriam entende. Entende que sua história precisa ser contada e que os horrores da guerra precisam ser expostos para o mundo todo. Enquanto meia dúzia de líderes mundiais decide pelo futuro de milhares de pessoas, boa parte delas apenas crianças, é preciso ter esperança de que dias melhores virão.

Myriam Rawick é um símbolo de esperança e resistência, uma menina resiliente de apenas treze anos que contou ao mundo a sua história de dor, luto e sofrimento, mas também de sonhos, de cheiros e sabores tão sírios quanto tâmaras e sorvete de creme salpicado de pistache. Aos treze anos, Myriam já sabe reconhecer armas e bombas, sabe como é o som de um míssil se chocando contra a parede de um prédio. Mas ao treze anos Myriam também já sabe que desistir não é uma opção: “todas as vozes da Síria encontram em Myriam a força para se libertarem da culpa de estarem vivas e semearem novas flores em meio às ruínas do que restou”. No dia 17 de julho de 2012, há exatos seis anos, bombas caíam sobre Alepo. Diante sua confusão, Myriam correu aos pais, questionando:

“— Mas quem está jogando bombas em nós?
— Ninguém está jogando em nós. É mais complicado que isso.
— A gente fez alguma coisa errada?”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui

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